Catarina Calungueira: a brincante que faz do teatro de bonecos um espaço político

Nicole Giffoni
EntreFios - tecendo narrativas
40 min readJan 28, 2022

O EntreFios entrevistou a brincante de calungas e educadora popular Catarina de Medeiros, que refletiu sobre sua história dentro do teatro de bonecos e sobre os entraves que envolvem ser mulher em uma atividade ainda cercada de estigmas

Por Alessandro Fernandes, Ana Faely, Arine Figueiredo,
Évila Silveira, Nicole Giffoni e Rayane Lopes

Catariana de Medeiros com uma de suas bonecas de Calunga / Reprodução/Instagram

Na convenção social, uma coisa é certa: as brincadeiras de criança devem permanecer assim, para as crianças. Mas, para Catarina de Medeiros, também conhecida como Catarina Calungueira, as coisas são diferentes. Especialista em quebrar os estereótipos sociais, a potiguar deixou o curso de Física para estudar Pedagogia e encontrou a sua paixão no teatro de bonecos. Atualmente, ministra oficinas de construção de brincadeiras com calungas e organiza o Festival de Artes de Ipueira, cidade no Rio Grande do Norte.

Historicamente restrito ao universo masculino, o teatro de bonecos ainda carrega fortes estigmas machistas. Entretanto, Catarina conseguiu conquistar o seu espaço e, em 2019, fez a primeira edição da Revista de Brincantes de João Redondo do Seridó, junto com Lydia Brasileira, uma de suas mestras. Ela também organizou o I Festival de Mulheres Bonequeiras do Rio Grande do Norte e é uma das fundadoras da Rede Brasileira de Bonequeiras.

Para Catarina, brincar é preciso, por ser uma forma de reinventar os mundos, até mesmo para os adultos. “A criança inventa, recria e aprende através da brincadeira. E a gente também. A gente continua levando a brincadeira como algo importante”, considera.

Confira a entrevista na íntegra e acompanhe alguns trechos transcritos logo abaixo:

Arine Figueiredo: Boa tarde, Catarina. De acordo com um estudo no Reino Unido, brincar de bonecas pode gerar diversos benefícios e ajudar as crianças a praticarem interações sociais, e isso auxilia no desenvolvimento socioemocional e pode gerar empatia. Você sente que isso pode ter influenciado a tua relação e as tuas escolhas profissionais?

Catarina de Medeiros: Sim, eu acho que, com relação a isso, eu olho mais pra brincadeira, né? Brincar, eu acho que é uma coisa que todo mundo deveria fazer. Eu acho que brincar é para todo mundo, e essa possibilidade de poder brincar mesmo sendo adulta, eu acho que é a única coisa que mais me trouxe para o teatro de bonecos. Foi essa possibilidade de continuar brincante, de ser uma adulta brincante. E eu defendo essa ideia de que brincar é preciso e que brincar é uma forma de a gente reinventar os mundos. Na Pedagogia, a gente olha para isso e fala que a criança inventa, recria e aprende através da brincadeira. E a gente também não perde isso, né? A gente continua levando a brincadeira como algo importante. Então, brincadeira, para mim, é uma coisa séria e que me trouxe para o teatro de bonecos.

Alessandro Lucas: Catarina, você poderia falar um pouco para gente como foi a sua trajetória acadêmica até chegar ao curso de Pedagogia e trabalhar com educação popular?

Catarina de Medeiros: Eu me interessei por educação um pouquinho antes de chegar ao curso de Pedagogia. Assim que eu terminei o ensino médio, entrei no curso de Física no IFRN [Instituto Federal do Rio Grande do Norte], que não tinha nada a ver comigo, mas foi muito importante para a minha vida, porque lá eu me apaixonei pela educação. Me interessei ali por estudar: “Educação, o que danado é isso?”. E aí acabei passando no vestibular. Ainda era vestibular, gente, não era Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. Foi o último ano de vestibular da UFRN [Universidade Federal do Rio Grande do Norte]. E aí, quando eu entrei na Pedagogia, foi muito importante ter a Pedagogia na minha vida, porque a Pedagogia me abriu possibilidades para vários mundos, né, para vários universos ali. Apesar de ser um curso direcionado à educação, ele é capaz de abrir portas para muitos lugares.

Eu fazia parte de um laboratório chamado Lampear [Laboratório Internacional de Movimentos Sociais e Educação Popular], que vem da palavra “lampejo” ou “relampejar”, como a gente fala aqui popularmente. Tem a ver com a luz e tem a ver com essa multiplicação de olhares. E o Lampear era um laboratório de movimentos sociais, de educação, de economia solidária. E tudo isso é muito importante para a minha vida. Foi a partir desse laboratório, dessa experiência de pesquisa, como pesquisadora, de bolsista nos projetos de extensão em que eu participei através desse laboratório, que eu me interessei pelos movimentos sociais. Fui presidente do centro acadêmico de Pedagogia, fui de um coletivo anarquista também. Participei de muita coisa e até que cheguei aos bonecos. No último ano de faculdade, eu conheci meu companheiro, que é o Ricardo Guti, professor de teatro e bonequeiro também. E aí, através dele, eu conheci Lídia Brasileira e, através dela, eu conheci também a dona Dadi. E aí, quando eu cheguei a essas mulheres, é que a coisa foi ficando mais interessante […]. Então, essas mulheres simples aqui, que estavam pertinho de mim, representavam tudo aquilo em que eu acredito, da força da mulher, enfrentando aí todas as questões sociais que envolvem ser mulher e que mantiveram e mantêm ainda — apesar da dona Dadi não estar mais fisicamente — a força da brincadeira acontecendo. E, no fim da faculdade, meu trabalho de conclusão de curso foi sobre Lídia Brasileira, que ela foi professora da UFRN, hoje em dia já aposentada, mas ela foi professora da UFRN. E lá ela trabalhava com os bonecos, trabalhava com mídias e tecnologias, que é o que a gente chama hoje de mídias e tecnologias. Mas antigamente eram materiais didáticos. Então a mídia que ela usou foi o boneco popular. Então ela ensinou a muita gente, e o meu trabalho foi sobre ela, que se chama Flor da Catingueira.

Rayane Lopes: Catarina, você mencionou agora um pouco de como começou esse processo de gostar da educação popular e de se apegar a isso. Você acha que, hoje em dia, você tenta repassar esses ideais de uma sociedade mais justa e democrática nas suas aulas, nos seus cursos? Você repassa isso? Você acredita que esses ideais ainda estão muito presentes na sua vida?

Catarina de Medeiros: Olha, tem uma coisa que eu acho bem interessante, assim, pensando na faculdade, pensando na cultura popular e na sua pergunta. Depois que eu comecei a olhar para os movimentos sociais. Ao olhar para isso, eu comecei a olhar também para minha família, para o lugar onde eu fui criada, para todo o meu universo ali, pessoal, e que também se torna universo coletivo. Não dá para ser individual o tempo inteiro, né? A gente é um ser coletivo, somos seres coletivos, acredito muito nisso.

Quando eu comecei a olhar para mim, nossa… Eu comecei a me enxergar ali, nos movimentos sociais. Eu vi que na minha rua, quando era criança, tinha uma associação que organizava quadrilhas, tinha o São João do meu conjunto habitacional. Eu fui menina de conjunto habitacional e tinha essa associação que se organizava para fazer festas, para arrecadar recursos, para fazer melhorias e para brincar também. E aí eu fazia bandeirinhas, via o pessoal se mobilizando, e depois isso foi fazendo sentido para a minha vida também, reconhecer essas pequenas coisas ali, ver a minha vó que tem os saberes ali dos chás, das rezadeiras, as mulheres que se organizam desde sempre fazendo boneco para sustentar a família. Então, quando a gente começa a olhar para fora e pensa: “Nossa, tem isso, né, movimentos sociais”. Mas é isso: “Como é que eu posso trazer para a minha vida?”, “Onde eu reconheço isso?”.

E aí também fui buscar as histórias das mulheres da família. Eu tenho uma tataravó que foi uma das indígenas aqui do Seridó que foi caçada “a casco de cavalo”. Isso significa que ela foi caçada pelo “marido” dela. Vamos colocar como “marido dela”. Ele caçou ela, caçou essa indígena, casou com ela e tomou ela para si. E uma das origem de quem eu sou vem desse estupro também.

Então eu acho que, quando a gente começa a reconhecer isso, a gente começa a reconhecer coisas na nossa vida em sociedade que a gente acaba olhando e vendo isso também no boneco.

Porque o boneco popular é muito revolucionário, as brincadeiras populares já nascem no contexto de revolução.

Por mais que elas não falem sobre movimentos sociais, não falem sobre política diretamente, elas são brincadeiras políticas. Só do fato daquele brincante ou daquela brincante estar ali já é um ato político. Poder brincar tendo ali tantas dificuldades — a falta de trabalhos, a falta de recurso, mas mantém a brincadeira ativa — mantém a necessidade vital de poder brincar.

Eu vejo o boneco já como algo político, não tem como olhar para o boneco popular sem pensar em algo político.

Não é só das novas gerações, não. As gerações mais antigas, como a de Chico de Daniel, da própria dona Dadí — que não gostava de bater [em um boneco] na brincadeira dela. Chico de Daniel tem uma cena maravilhosa em que o padre coloca uma igreja nas costas de Baltazar para Baltazar carregar. Então é uma coisa incrível, a igreja sendo literalmente colocada nas costas de um negro pra ele carregar. A exploração de alguém pobre ali tão visível e de forma tão genial. Então o boneco já nasce nessa estrutura de revolução das brincadeiras populares. Não só no contexto de denunciar, não só com esse propósito de denunciar, mas também de poder dar oportunidade para que todos brinquem. Cada um tem o seu ritmo próprio de brincadeira, então já nasce nesse contexto revolucionário.

Claro que vão ter coisas que hoje em dia não são mais aceitáveis: as piadas, boneca sendo arrastada, sem cena, que só entram pra dançar… Tem muita coisa, mas que também são um retrato social. A gente também vê isso, a gente também vivencia essas situações de discriminação, né? Então isso tá dentro do nosso recorte, do nosso convívio social. Então, quando o brincante coloca isso em cena, é porque ele vivencia aquilo. Então é importante também que ele, ou ela, coloque isso em cena para que a gente possa reconhecer que é um retrato social.

Assim como a novela às vezes é o retrato social, o boneco também vai ser. A arte imita a vida, e a vida imita a arte, é esse processo de troca. E, quando eu falo do boneco, eu falo sobre isso, sobre o quanto ele pode ser esse nosso porta-voz, esse nosso caminho de comunicação, comunicante e denunciante. Então, quando eu falo dos bonecos, eu falo por esse lado de observação da minha trajetória, e da trajetória dos mestres e mestras que eu conheço e do quanto ele [o boneco] tem esse potencial denunciante.

Nicole Giffoni: Catarina, como você falou, a sua jornada com os bonecos do teatro de bonecos é muito interessante, é muito bonita sua trajetória. Eu queria saber como é que esse trabalho impacta na sua vida atualmente. Qual o impacto que você sente que tem, em quais áreas da vida você sente que o teatro de bonecos impacta?

Catarina de Medeiros: Então… Ultimamente, o boneco está em tudo, né? É trabalho, é diversão, é família também. Eu tenho filhos, eles dois estão juntos. Quando eu tô fazendo boneco, eles também estão juntos querendo fazer. Então são família também, os bonecos às vezes nascem com um nome, e eles vão continuar assim dentro da brincadeira. Então os bonecos estão dentro da família, fazem parte de quem eu sou e das minhas lutas. Hoje a rede de bonequeiras do RN é onde eu tenho atuado um pouco mais porque ele tá aqui, tá próximo. E a rede de bonequeiras brasileiras é onde eu tenho atuado mais tentando fazer outras mulheres, tentando trazer essas histórias dessas outras mulheres para perto. É isso que a gente acaba ficando ali um pouquinho. A gente vai juntando, somando e hoje tem sido o meu caminho. Os bonecos tem sido meu caminho de atuação e de estar no mundo. Eles têm me ajudado a caminhar e a atuar e denunciar também. São esse meu apoio. Eles estão em tudo.

Rayane Lopes: Catarina, o teatro de bonecos popular do Nordeste foi reconhecido agora, no ano de 2015, como patrimônio cultural do Brasil. E no Seridó Potiguar, há bonequeiras e bonequeiros históricos. Você poderia nos falar um pouco sobre esses artistas, a importância deles para a memória e para a manutenção dessa atividade até os dias de hoje?

Catarina de Medeiros: Sim! Nossa… Ter esses mestres aqui, pra gente, é um grande presente. Nós temos mestres e mestras espalhadas aí, pelo país inteiro, mas especialmente aqui, no Nordeste, que é onde a gente tem a grande concentração desses brincantes. Por isso que é teatro de bonecos popular e tradicional do Nordeste, justamente por ter essa ligação muito forte aqui. E aqui, no Rio Grande do Norte, a gente conhece como Calunga ou João Redondo. No Pernambuco, é mais conhecido como Mamulengo; Babau na Paraíba; Cassimiro Côco no Ceará e também Calunga, né? Cada um tem um sotaque, assim como a gente. Eu tenho aqui, no Rio Grande do Norte; vocês têm sotaques diferentes, por serem do Ceará; e, mesmo estando no Ceará, [vocês] também têm sotaque e jeito de falar diferente [mesmo entre vocês]. E o boneco também.

O boneco popular vai contar as histórias do lugar, vai contar as histórias das pessoas daquele lugar. É muito autobiográfico.

Aqui, no Rio Grande do Norte, o boneco popular é o boneco que tem mais força, é o boneco que está mais organizado, é o boneco que está abrindo mais caminhos e mostrando a força dos mestres e das mestras. Nós temos muitas raízes bonequeiras aqui. Nós temos o nome de Chico de Daniel, que é reconhecido nacionalmente pela graça, pela inteligência, pela maestria no domínio da cena, no domínio dos textos e na manipulação dos bonecos. Então Chico de Daniel é uma grande referência daqui, do teatro de bonecos popular, e deixou dois filhos também brincantes e mais um bonequeiro também de Assú, que é Chicó. Então tem essa raiz de Chico de Daniel que é muito forte. Tem a raiz de Bastos Calungueiro daqui, do Seridó, que é onde eu moro, uma região mais do interior do estado. E essa raiz de Bastos Calungueiro é uma raiz muito forte. Ele foi um mestre que inspirou dona Dadi Calungueira, a primeira mestra reconhecida.

Então, até 2015, a gente não tinha nenhuma mestra reconhecida, nenhuma mestra do teatro de bonecos popular. Essas mulheres até então não apareciam. Mas, depois do estudo feito por Graça Cavalcanti, pesquisadora daqui, do Rio Grande do Norte, ela chegou até Dadí Calungueira, que era de Carnaúba dos Dantas. Ela foi bonequeira, uma grande mulher que foi parteira, sindicalista, foi carvoeira, poetisa, artista plástica de mão cheia. Uma mulher incrível e de uma simplicidade impressionante que nos deixou ano passado. Mas seu legado é grandioso. Uma mulher que é reconhecida também nacionalmente pela força, pela atuação dentro do teatro de bonecos e por inspirar muitas mulheres, não só mulheres, mas também muitos homens, como Raul do Mamulengo, que é um dos grandes nomes daqui, do Rio Grande do Norte, principalmente na construção dos bonecos. Raul fala que foi dona Dadi que colocou ele pra brincar. Então dona Dadi é uma mulher muito forte, muito presente em todas nós. Em todas nós, mulheres, não só do teatro de bonecos popular, mas de todas as formas de atuar dentro do teatro de animação.

Dentro dessa raiz de Bastos Calungueiro, também tem o mestre Marcelino José Limão de Cruzeta, um grande mestre também, que a brincadeira dele é muito parecida. Acho que, quando a gente fala do mestre e dessas raízes, é porque as brincadeiras são muito parecidas. A gente vai brincando ali com a pessoa, vai entendendo como é a brincadeira, vai entrando no jogo. Dentro dessas raízes, também têm Manuel do Fole e Manuel de Dadica, que são outros grandes mestres de Serra Corá, daqui, do Rio Grande do Norte. Tem o Caçuá de Mamulengos. Tem muita gente aqui, no Rio Grande do Norte, muito mais de trinta brincantes dentro da associação.

E, nesse período de pandemia, a gente ficou sem o festival de João Redondo, mas esperamos que, ano que vem, a gente possa retornar com esse festival, que é um festival que reúne todos os brincantes de João Redondo, da brincadeira popular de bonecos na cidade de Currais Novos. É um festival belíssimo, onde a gente vê várias aberturas de mala. O mestre brincante abre a mala, mostra todos os seus bonecos e fala sobre a sua trajetória. Então é um momento muito importante, onde a cidade recebe a brincadeira de boneco popular em meio à praça pública, que fica lotada. Então, é uma forma também de disseminar ali a brincadeira, mas também de atrair novos públicos, chamar pra olhar pra esse patrimônio que é belíssimo.

Rayane Lopes: Catarina, você falou agora dessa tradição que os bonequeiros históricos já passaram para vocês que são mais novos. Você acha que agora essa tradição já está sendo passada com mais facilidade para as mulheres? Porque essa atividade era majoritariamente masculina. E agora você acha que as meninas mais jovens já se identificam mais com as calungas, com essas brincadeiras mais do que antes? Ou você acha que ainda tem um tabu, um receio?

Catarina de Medeiros: Então, quando comecei no teatro de bonecos, no primeiro festival que eu fui, só tinha eu de mulher. No segundo, já apareceu uma outra mulher. Foi por uma briga também, sabe? É uma questão de espaço. Parece que, quando uma mulher tenta entrar em um outro espaço que ela queira, tudo que ela vai começar, parece que ela tem que começar do zero, né? Não tem espaço, não tem referências. A gente tem que criar e buscar, ver quem são essas mulheres. Acredito que a gente sempre esteve dentro da brincadeira. Bastos Calungueiro brincava com Olindina, a companheira dele, que eu soube recentemente. Essa mulher nunca foi falada. Essa mulher, a história dela nunca foi registrada. Então eu tenho pesquisado sobre essa mulher por isso, porque a história dela foi inviabilizada. Ela foi colocada para escanteio também porque para nós, mulheres, a sociedade joga um peso, da casa, dos filhos.

Tantas questões que eu percebi que a participação feminina era sempre colocada ali de lado, a gente sempre esteve presente, não tenho dúvida em relação a isso, mas que a nossa presença sempre foi colocada no cantinho, quando dava, “não, agora não”.

Nós precisávamos cuidar do filho, precisávamos acordar no outro dia, porque as brincadeiras duravam horas, começavam no fim do dia e acabavam no outro dia de manhã. As mais tradicionais, então, era uma noite inteira de farra e que, às vezes, a mulher era impedida de estar naquele meio.

Eu acredito que sempre estivemos presentes, assim, fazendo a costura da boneca, fazendo as bonecas de pano, que sempre fizeram parte também da brincadeira. Então a gente sempre esteve, só que é como sempre ali, “não, depois”, e nunca aparecíamos. Hoje em dia, eu olho pra brincadeira e vejo que outras mulheres têm se interessado pelo boneco popular, pelo teatro de animação também; que o machismo, com todas essas questões que deixam a gente doente, não tá só no teatro de bonecos popular, tá em todo lugar. É no teatro de animação, que vai do teatro do boneco popular até o teatro de sombras, de sombras ao teatro de objetos. E na rede de bonequeiras, a gente fez um levantamento, em um formulário, falando e perguntando sobre isso, sobre como é esse machismo do teatro de animação. Ele tá em todos os lugares, porque tá em todos os lugares mesmo, não só no boneco popular. O boneco popular é um recorte muito pequeno, de todo esse movimento que acontece contra nós, inconscientemente, mas que acontece.

E sobre as brincadeiras populares, pras pessoas mais jovens, né?

Eu tenho 28 anos e eu percebo que algumas pessoas sentem vergonha de falar que são brincantes populares, porque tem o preconceito de que são pessoas desinformadas, pessoas que fazem isso de qualquer jeito, que tem uma visão um pouco pequena e restrita em relação às brincadeiras populares.

Mas que eu vejo que não, que são pessoas que têm uma uma formação muito grande em relação à vida, conhecem muito da música. Muita gente é autodidata na música. São tantos saberes que eu acho que as pessoas precisam olhar com um pouco mais de atenção pra isso, para reconhecer as brincadeiras e para disseminar. Agora, em relação à rede, especificamente a rede de bonequeiras e a nossa atuação, eu vejo que outras mulheres estão chegando. A partir dessa visibilidade, tem tantas mulheres que conseguem tirar um pouco do sustento ali, pra tirar um pouco dessa brincadeira, desse trabalho, né? Ver isso como trabalho também.

A arte também é trabalho. Não é só diversão, é muito trabalho, na verdade. Às vezes, a gente passa horas fazendo, pensando numa cena que dura um minuto. Então, é olhar isso como trabalho e olhar para esse trabalho como uma forma de sobrevivência, de subsistência ali, tanto para o corpo quanto para a alma.

É um trabalho que a rede vem desenvolvendo, vem cutucando as mulheres. E a gente vê cada vez mais mulheres interessadas em fazer teatro de bonecos e também pesquisar sobre o assunto. Além de brincar, a gente percebe mais mulheres ali, chegando pra pesquisar e registrar essas histórias da brincadeira popular e das histórias dessas mulheres.

Arine Figueiredo: Catarina, no meio da sua fala, você citou que às vezes essas brincadeiras duram horas e, agora há pouco, você também citou que, às vezes, vocês demoram horas pra fazer um pedaço de tempo que dura segundos, minutos. É sempre assim? Sempre tem uma preparação ou às vezes na brincadeira e no teatro pode rolar um improviso, outra modalidade? Sempre tem um roteiro, sempre tem um bloco a se fazer ou vocês também têm essa parte de improviso quando vocês vão fazer a brincadeira?

Catarina de Medeiros: Essa é uma ótima pergunta. Na verdade, as brincadeiras mais antigas é que tinham essa duração de uma noite inteira. Hoje, a gente brinca mais ou menos uma hora, uma hora e meia. É o tempo máximo que a gente fica, pelo tempo da vida e pelo tempo dos festivais, que hoje tudo é mais acelerado. Então, a gente não consegue ter essa brincadeira de uma noite inteira, depende dos lugares. A gente já foi pra festivais em que ficou a noite assim, vendo brincadeiras, a gente chegou a brincar também, mas eram com outras pessoas, que é bem legal também quando isso acontece. Brincadeira de uma noite inteira de forró, de Boi de Reis, de João Redondo acontecendo. É muito bom, muito gostoso.

Com relação à brincadeira, como a gente vem de raízes brincantes, a minha brincadeira tem um pouco da brincadeira do meu companheiro, que tem um pouco da brincadeira de Chico Simões, que foi com quem ele aprendeu. Então, a gente tem uma base, como se a gente tivesse já o nosso corpo. O corpo e a mente, ele reconhece, né? Catirina, que é a minha personagem principal da brincadeira, a minha companheira, ela tem o nome dela, ela entra em cena, e eu já sei o que ela vai fazer. Ela já tem ali uma base construída, de tempo ali, de repetição.

A brincadeira, a história, ela é a mesma, mas, assim como a vida, ela também tem as suas modificações, ela tem espaço para improvisação.

A gente já conhece o que vai ser feito, mas tem as principais características do boneco popular, que são a interação e a capacidade de mudar. Se a gente chega num lugar, a gente procura ali saber o nome do lugar, saber as pessoas que são mais brincalhonas. Então a gente cita essas pessoas na brincadeira e modifica o roteiro de acordo com o tema. Às vezes, a gente vai pra alguns lugares pra falar sobre violência, então a gente muda um pouco a brincadeira para esse tema. Então ela tem uma base estabelecida, mas que essa base é muito maleável, ela é muito aberta para que seja modificada.

Tem horas em que a brincadeira é muito direcionada para crianças se tiver muitas crianças na plateia, mas tem horas em que essa mesma brincadeira vai ser direcionada a adultos. Se o público for mais adulto, ela tem um outro ritmo, tem outras piadas, tem outras personagens que aparecem. Então é uma brincadeira que tem ali a base, mas que é muito maleável. Ela tem esse esse tempo de “agora eu quero fazer outra coisa”. E pode. Nela, cabe a improvisação, cabe a resposta do público. Se o boneco pergunta, o público responde. Porque tem esse diálogo muito forte. O boneco pergunta, ele espera a reação do público, espera que o público tenha uma resposta. “O que o público tá dizendo?”, “Será que eles gostaram disso?”, “Será que eu pergunto isso?”, “Bato ou não bato?”. Porque a gente precisa perguntar também sobre isso. Tem uma cena que eu acho bem bonita, sobre essa participação do público. Meu companheiro foi para um seminário e pediram pra ele fazer uma cena curta sobre direitos humanos, e aí entra o capitão João Redondo, o patrão, essa figura tão horrível, que está, inclusive, na Presidência [da República], essa figura cruel. Então entra outro personagem, e eles começam a discutir, aí o boneco pergunta, o boneco que representa aquilo que a gente acredita ser o melhor: “Bato ou não bato?”. E o público do seminário sobre direitos humanos começa a gritar: “Bate, bate, bate!”. E a cena acaba aí. Que é muito bom, porque, em um seminário de direitos humanos, você discute isso, e as pessoas dos direitos humanos falando “vamos bater”. E tudo bem, né? Porque é na brincadeira. Mas tem os momentos: quando tem criança, a gente não bate; mas, quando é adulto, a gente leva essa discussão. O boneco do patrão apanha mesmo, porque todo mundo tem vontade de bater nesse patrão que está destruindo tudo. Então, na brincadeira, a gente consegue trabalhar isso, porque é o momento de a gente trabalhar as nossas angústias, essas nossas inquietações, as nossas raivas, né? Então é um momento importante de o boneco representar também esse momento de “ufa, o patrão apanhou”. Pelo menos na brincadeira ele apanhou, ele foi punido ali pelos seus crimes e pelos seus erros. Então tem esses momentos também. E, nas cenas, às vezes, a gente fica o dia inteiro, acorda de noite pensando no boneco, às vezes. Boneco não deixa a gente dormir. A gente acorda pensando: “Nossa, e se o boneco fizesse isso, ia ser legal, né?”. Então ele faz ali parte da vida. Acontece alguma coisa, aí você lembra: “Nossa, isso aqui pode ser legal pro boneco”. Então é contínuo assim, não para.

Alessandro Lucas: Catarina, pelo que você vem nos contando sobre o teatro de bonecos, ele é uma atividade que interage muito com o público. E me parece que acaba sendo uma atividade diferente do teatro tradicional como a gente conhece, que o acesso foi destinado por muito tempo às classes dominantes. Na sua avaliação, o teatro de bonecos deveria estar mais próximo dos espaços convencionais, como os teatros tradicionais, ou a rua e as casas de cultura popular são o seu ambiente por definição?

Catarina de Medeiros: Tradicionalmente, o boneco popular acontecia na casa de alguém. Há 80 anos, [ocorria na casa] daquele patrão que tinha mais dinheiro, convidava o bonequeiro calungueiro. Esse calungueiro amarrava ali a rede dele, o lençol, e ia brincar. Ele era contratado. O fazendeiro ali pagava uma quantia, e quem estava lá também tinha dinheiro e colocava o dinheiro lá na mão do boneco, ajudava. E normalmente era num salão, era algo mais fechado. A minha avó materna falou que nunca viu João Redondo quando era criança, porque ela falava: “Olha, minha filha, eu não assistia porque o boneco acontecia na casa de quem tinha dinheiro, e a gente não era convidado, né?”. Porque você tinha que ser o morador ali da fazenda ou amigo do fazendeiro, tinha isso também. Brincadeira era pra quem tinha dinheiro, e ela falou que nunca viu. Já o meu pai, que tem 65 anos, viu, mas também viu porque a família dele morava em um sítio onde tinha uma pessoa, o patrão ali, novamente, que contratava e que levava pra fazer festas. Quando tinha alguma coisa, era um momento de festa, era um acontecimento. Ter o João Redondo, ter o boneco ali, era um acontecimento assim, incrível, porque tinha um forró, tinha muita coisa, era uma festa gigante. E ele falou que viu algumas vezes, porque ia pra fazenda e ele teve mais acesso. Já pras pessoas de 30 anos, 28 anos, como é o meu caso, eu não vi boneco quando era criança. O boneco sumiu nessa época, ficou um pouco mais guardadinho. Então aqui, na região, esse boneco foi um pouco pras escolas também e ganhou a praça. Ele também mudou e saiu do espaço fechado do contrato e foi para a praça, pra tentar trazer esse público também, pra tentar sobreviver ali de outros jeitos. Na praça, na escola, isso em diversos lugares; em alguns, pra falar sobre temas específicos, como saúde. Dona Dadi foi muitas vezes brincar em CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] e secretarias de saúde para falar sobre os temas relacionados ali. Temas mais específicos, por contratos, tinham essa coisa do contrato, que era “você vem, e a gente paga”. Mas esses espaços vão se modificando o tempo inteiro.

Eu vejo boneco como algo para qualquer espaço, ele é assim. Como a história é sempre maleável, como tá sempre disposta a mudar a forma, o lugar onde acontece a brincadeira também está disposto a mudar. Tem brincadeiras em praças públicas, normalmente são lugares um pouco mais controlados, isso na brincadeira do boneco popular, ali, do João Redondo, que a gente tem a tolda. Então tem os espaços, ele não é tão da rua, tão do espaço aberto. Ele é pra todo mundo. Mas a gente procura lugares mais concentrados também, porque, como ele tem uma história contínua, a gente precisa que o público fique ali um tempo. Então ele é pra rua, é pro teatro fechado. Para todos os lugares, ele é algo que está sempre se modificando e aberto para estar em todos os lugares.

Arine Figueiredo: Catarina, ver você falar sobre o público me lembrou o início [da entrevista], quando você falou que a inserção das mulheres havia um estranhamento deles falarem “não, depois”, “você tem que cuidar da família”. Em relação ao público, você percebe algum estranhamento quando eles veem as bonequeiras?

Catarina de Medeiros: As pessoas às vezes estranham, ficam naquela: “Nossa, mas é uma mulher”.

Muitos festivais anunciavam o nome do meu companheiro e o meu nome não, apesar de estar ali, construindo boneco, fazendo boneco, amamentando dentro da tolda. [Apesar] de estar ali e as pessoas não falarem meu nome. E eu tive que brigar ali.

Mas eu vejo que é raro isso acontecer. Acontece, mas as pessoas olham e não comentam tanto. Mas é uma conquista de um espaço para que a gente possa se apresentar, anunciar o nosso nome, colocar o nosso nome nos cartazes, nos folders. Nos primeiros festivais a que eu fui, não saía meu nome. Eu estava lá, trabalhava fazendo tolda, enfeitando tolda, colocava o boneco, fazia muita coisa, e não saía o meu nome. Eu tive que brigar, parece que é uma briga constante para que a gente possa estar ali. Mas vale muito a pena a gente estar lá.

Quando as pessoas olham também [surpresos positivamente] e falam: “Nossa, é uma mulher, né?”. Muita gente se surpreende, gosta, se reconhece. Tem uma coisa que eu acho incrível, que é esse espaço, essa relação com o público, essa identificação e esse longo caminho até chegar. Eu tenho dois filhos, e eu e meu companheiro brincamos; então, a gente tem que ter uma dinâmica ali de como cuidar dessas crianças. Às vezes, minha mãe ajuda também, eu tenho essa ajuda também materna de estar outra mulher ajudando. E quem são essas pessoas, né? Tem uma rede de apoio, e essa nossa rede de apoio é uma rede muito grande para que essa mulher chegue lá. É necessário, senão vai ficando mais difícil. “Nossa, agora eu preciso me apresentar, com quem eu vou deixar meu filho?”; “Se eu for levar eles, como é que eles ficam?”. Então, tem toda uma construção até a hora de chegar ali, na frente. “Quais são as minhas horas de trabalho?”; “Como eu vou trabalhar em casa?”. Eu trabalho em casa. Então, eu preciso organizar o meu trabalho aqui com as crianças, o trabalho que uma casa exige, o trabalho do teatro de bonecos, da pesquisa.

Tem um caminho que é muito longo até a gente chegar à hora da apresentação, até lidar com o público. Então eu acho que, às vezes, as mulheres também se surpreendem: “Nossa, como é que ela consegue?”. Eu escuto muito isso de muitas mulheres, porque é uma surpresa, a gente tem tanta coisa, né? E, mesmo que não faça tanta coisa ali, naquele momento, a gente continua o trabalho mental. A gente tem uma sobrecarga mental também, a mulher tem que continuar. Não dá pra abandonar na cabeça. Então, o caminho é muito longo, e essa relação com o público é muito importante. Quando a gente pode estar ali e o público olha pra gente e diz: “Nossa que massa, né? Ela conseguiu, ela tá aqui, tá dando certo!”.

Nicole Giffoni: Acho que a história da mulher na sociedade é com essa carga mental, de ter que se colocar, de lutar mesmo para poder fazer parte, porque, se não nos mobilizarmos, infelizmente não terá quem lute pela gente. Que bom que agora está mudando, que você teve essa coragem de lutar pelo seu espaço, mas você comentou que a mulher faz várias coisas, que você tem várias atividades para administrar ao mesmo tempo. Nas nossas pesquisas, vimos que muitos calungueiros precisam manter dois empregos para poder pagar com o próprio salário as apresentações, as viagens, e eu gostaria de saber, na sua perspectiva, que tipo de políticas públicas deveriam ser desenvolvidas para incentivar a prática do teatro de bonecos. O que você pensa sobre isso?

Catarina Calungueira: A gente fala que tem que ter o roçado, que é o roçado mesmo [atividade remunerado], o outro trabalho como professora, como qualquer outra coisa, porque isso não vale só para o teatro de bonecos, serve para muita coisa. Se você resolve ser artista, a família já começa a chorar [risos], porque vai achar que você vai passar fome, já começa a agonia, porque as pessoas não olham para a arte como trabalho, acham que o artista trabalha por amor. Às vezes tem essa ideia, de que não é trabalho, você está ali e dizem: “Vamos, vem brincar aqui por divulgação”. Você faz isso porque gosta, mas o certificado não é suficiente, tem todo esse jogo de a arte ser tão desvalorizada pelas pessoas, que não entendem que é uma profissão. É brincadeira, mas brincadeira é coisa séria, né? Isso aqui custa tempo, custa estudo, custa muita coisa. Então, primeiro tem essa desvalorização em relação à arte, o desmonte nacional, porque hoje nós não temos mais o Ministério da Cultura. A gente tem um secretário Nacional de Cultura que não ajuda, e isso chega também aos estados e municípios de uma maneira precária. Nacionalmente, a gente está assim. Em nível estadual, temos uma melhora, principalmente aqui, no Rio Grande do Norte. Mas e as prefeituras, como elas lidam? Como elas trabalham a cultura e a arte nos seus municípios? Nós temos aqui, na minha cidade, uma secretaria de Cultura, que é uma coisa rara entre os municípios. Normalmente, há um coordenador de Cultura, que é alguém que está ali, mas ao mesmo tempo não, que se responsabiliza por contratar os grandes artistas, os grandes nomes para fazerem as festas locais. Na minha cidade tem a secretaria, mas nós não temos um conselho, nós não temos um fundo municipal de cultura. Tem muito ainda a ser organizado, para que esses artistas, para que esses bonequeiros, mestres e mestras, tenham apoio. Então, ter o reconhecimento como patrimônio material é uma coisa importantíssima. Mas e o fomento à disseminação desses saberes? É importante que os municípios tenham suas secretarias, conselhos municipais de cultura, fundo municipal, plano municipal de cultura e um calendário cultural da cidade, para que isso seja garantido. Eu já ouvi de figuras políticas da cidade que a existência de uma lei que obriga a contratação de 50% de artistas locais em festas do município era muito privilégio, era algo que, “nossa, para que tudo isso? É desnecessário, é amarrar, eu não gosto de coisa amarrada”. Não, não é amarrar, é dar uma garantia para que essas pessoas sejam valorizadas pela sua arte, pelo lugar onde elas pagam impostos, pelo lugar onde elas vivem, porque isso também retorna para a economia. Quando você é contratado pela sua cidade, você mora nela, então você vai pagar o IPTU, você vai comprar os mais diferentes bens nesse lugar, entender que ajuda a todas as outras áreas da nossa vida a se movimentarem, a se desenvolverem melhor, a compreender que a arte é trabalho, que movimenta muito dinheiro. No nosso país, nas cidades, em todos os lugares, a arte movimenta, sim, e isso precisa ser reconhecido, precisa ser valorizado e precisamos abandonar a ideia de que a arte é “mais ou menos”. É preciso colocar as coisas num caminho de valorização e de respeito. Eu vejo que aqui, por exemplo, onde eu estou, poderia ter tudo isso, o conselho, o fundo, o plano, mas que não há, porque é mais confortável você manter as pessoas dentro de um cabresto, é mais fácil dominar, mover as pessoas para onde você quer que elas se direcionem, quando elas não têm emprego, quando elas não sabem o que é uma economia criativa, quando elas não sabem como se movimentar, se sustentar. É mais fácil você dominar quem está perdido, quem está ali, solto, sem rumo. A escassez de políticas exige que a gente se una cada vez mais. Por isso, eu defendo a importância da Rede das Bonequeiras, da Associação Potiguar, da Rede de Bonequeiras Brasileiras, porque, quando a gente se une, a gente se fortalece, conseguimos caminhar com mais força, sabendo para onde a gente precisa e quer chegar.

Alessandro Fernandes: Catarina, eu vou aproveitar para te perguntar sobre a realização do 1° Festival de Mulheres Bonequeiras do Rio Grande do Norte, do qual você foi a idealizadora, que aconteceu no ano passado [2021], e por motivos da pandemia foi realizado de forma on-line. Como surgiu a ideia de fazer esse festival? Como foi a experiência de estar com mulheres bonequeiras do Rio Grande do Norte no primeiro evento que reuniu as profissionais?

Catarina Calungueira: Então, esse festival foi um presente, uma responsabilidade imensa nossa. Recebemos financiamento da lei Aldir Blanc, tivemos muito trabalho para reunir essas mulheres, mas foi gostoso de fazer. Conseguimos juntar bonequeiras de várias partes do estado, indígenas, negras, de várias áreas, para que a gente pudesse fazer esse festival acontecer. E, mesmo aquelas que não participaram, que estavam ali assistindo, acabaram somando à rede, começaram a conhecer um pouco mais, a gostar da ideia de estarem juntas por causa do festival. Algumas mulheres, que não brincavam, que não faziam teatro de bonecos, que só faziam a confecção deles, acabaram se envolvendo no teatro, usando o festival para brincar dentro da internet, que é outra coisa, é muito diferente, porque a brincadeira precisa de uma interação, ela precisa do público ali presente, precisa da resposta desse público. Então a gente teve que se reinventar de muitas formas, aprender a lidar com as ferramentas que nos possibilitam estar no ambiente digital, aprender a divulgar, aprender a fazer os vídeos, editar, enviar. Foi um movimento de muita aprendizagem também, de muita força sendo gerada, de muita união sendo criada. Esse movimento de pensar em rede é algo que a gente vem aprendendo. Estamos indo bem e podemos melhorar cada vez mais. O festival está quase com um ano, vai fazer agora, em janeiro, e estamos todas nós com muita vontade de nos encontrarmos pessoalmente. Assim que possível, isso vai acontecer, com calma, com segurança. Esse evento agregou muitas mulheres, então foi o momento de a gente mostrar as bonequeiras do Rio Grande do Norte, que elas existem, sim, e temos força para fazer muito mais. Foi um momento bem importante que deu oportunidade para outras mulheres. Este ano vamos estar dentro da Feira Internacional de Artesanato daqui, do Rio Grande do Norte, que acontece em Natal. Iremos estar lá com o estande que nos foi cedido. Estaremos juntas fazendo esse trabalho de fortalecimento econômico, que também é importante.

Alessandro Fernandes: Como o festival repercutiu dentro do universo dos bonequeiros, entre os homens?

Catarina Calungueira: Então… Eu senti bastante falta do público masculino daqui, do Rio Grande do Norte, principalmente os bonequeiros do estado. Foram pouquíssimos que compareceram e visitaram nos momentos do festival, que foram muitos. Tivemos conversas com bonequeiras que confeccionam, apresentações, homenagens à mestra Dadi; à mestra Benedita das Bonecas, que é uma indígena de Lagoa do Tapará, aqui, no Rio Grande do Norte; e à Lídia Brasileira. A gente homenageou essas três mestras, fez um movimento muito grande e que eu senti pouca participação masculina. Nós víamos ali, nos comentários, na própria divulgação do evento, nas discussões, um pouco dessa falta da participação dos homens. No entanto, foi também muito importante que a gente tivesse o nosso festival, porque, quando acontecem, são de maioria masculina, e boa parte das pessoas que participam desses festivais são desse público. A gente mostrou um festival onde só mulheres brincaram, onde só mulheres falaram, e isso foi bastante significativo, porque a gente mostrou que estávamos ali.

Rayane Lopes: Catarina, você fala muito sobre o trabalho que realiza no dia a dia. A gente gostaria de saber um pouco mais sobre como são os seus horários, já que você não trabalha de carteira assinada. Você é microempreendedora. Existe algum contrato com alguém a quem você presta serviço? Nos conte sobre essa vida de artista e, ao mesmo tempo, de empreendedora.

Catarina Calungueira: O caos [risos]. Só o caos. A gente tenta controlar. A gente tenta cuidar desse caos todo, de aprender mesmo a ser artesã, mas também têm as questões pessoais. “Nossa, eu estudei tanto tempo na faculdade, fiz especialização e estou aqui…”. As crises também por estar tentando me virar como microempreendedora, como artesã, como bonequeira. Então eu tenho a vida ali para cuidar, a casa, tudo, e os horários mudam muito. Eu tenho tentado aprender em relação a isso: como me organizar, como organizar os horários, mas eles mudam muito porque a rotina às vezes se altera também, da casa, de todo mundo, das construções de fora também, das produções… Agora eu tenho trabalhado na produção para levar para essa feira. Têm dias em que eu consigo fazer muita coisa, mas têm dias que não. Então é um aprendizado cotidiano. O fato de a gente estar em rede, estar ali com outras mulheres, é bom por isso também, porque a gente faz essas trocas. “Como é que vocês se organizam?”; “E agora como é que a gente faz?”; “Será que é legal ter? Será que não?”; “Como que a gente se organiza?”. Temos que aprender a se inscrever em um edital, aprender a organizar um currículo, um portfólio. Têm todas essas aprendizagens aí, como estar dentro do Instagram, dessas redes sociais, como divulgar nosso trabalho. A gente tem que se vender o tempo inteiro. Então são muitas coisas que giram em torno do trabalho. Mas é isso… A gente segue no caos, na inquietação e na tranquilidade. São momentos de confusão e de calmaria também, mas que são cheios de aprendizados. Eu acho que, quando eu tiver 80 [anos], [talvez eu] seja um pouco organizada ou tenha desistido de organizar as coisas. É um trabalho e uma tarefa bem difíceis.

Nicole Giffoni: Muito interessante isso das redes sociais, que você falou. Como é que funciona? Vocês fazem divulgação, tem uma página? Como é essa relação do teatro com as redes, os usuários… É popular?

Catarina Calungueira: Olha, essa é uma relação que a gente teve que aprender na pandemia: como se relacionar com ferramentas de comunicação, com esses aplicativos todos, com as mídias, como criar cartazes, como editar vídeo. Então foi um aprendizado que a gente teve que ter. Todo mundo teve que se adaptar a tudo isso. A nossa rede tem uma página, quem quiser conhecer… Nós temos no Instagram uma página que é um pouco mais ativa, que é “As bonequeiras do RN”, “@bonequeirasdorn”, se quiser acompanhar. Eu também tenho a minha página: “Catarina Calungueira”. A gente tem canal no YouTube também das bonequeiras do RN. Então a gente foi criando esses espaços. A coisa está acontecendo aqui, nas telas, na internet, então a gente precisa desses espaços para divulgar o nosso trabalho, para se comunicar. A rede surgiu no WhatsApp, então a gente tem esse histórico que nos ajudou a criar muitas possibilidades de atuação, de venda, de união, de comunicação mesmo, de se envolver ali e lutar por ideais comuns. Então a rede surge pelo WhatsApp e hoje ela se mantém atuante. A gente troca informações, a gente se reúne através da internet também, pelas distâncias geográficas, e a internet tem sido esse ponto de divulgação dessas bonequeiras. Nem todas estão dentro da internet, nem todos os mestres e mestras têm acesso à internet. Então a gente tem que dar um jeito também de colocá-los dentro da internet, e a associação também tem um canal no YouTube, que alguns mestres foram entrevistados, mestras que nunca tinham aparecido na internet e que estão lá também. Então é uma forma de a gente estender esses caminhos. A internet tem possibilitado essa abertura de novos caminhos e de novas possibilidades, de presença, de venda, de cooperação.

Nicole Giffoni: Saindo um pouquinho desse assunto, a gente vê que, atualmente, questões como LGBTQIfobia, o racismo, o machismo, têm sido pauta de muita desconstrução nessa sociedade atual. Eu queria saber como é que se insere no teatro de bonecos. Você acha que o teatro tem mudado as suas narrativas para seguir nessa desconstrução ou você acha que ainda tem muito desses preconceitos nas narrativas do teatro de bonecos? Como é essa vivência?

Catarina Calungueira: Essa é uma pergunta bem interessante. A gente sempre conversa sobre isso em muitos momentos antes de produzir o teatro de bonecos. É algo que vem sendo desconstruído, vem sendo repensado por muitas pessoas, principalmente as novas gerações do teatro de bonecos têm olhado para isso e tem tido esse cuidado. Principalmente aquelas pessoas que já têm um envolvimento em movimentos sociais olham para isso e pensam o boneco de outro jeito. Mas que ainda tem como um retrato social, como um recorte social da vida daquela pessoa. A gente encontra todos os tipos de situações. Coisas que são legais e coisas que não nos representam mais, coisas que a gente não quer mais ver e que, mesmo assim, são retratadas, são colocadas em cena. Mas eu vejo muito mais a desconstrução. Muito mais o boneco batendo do que o boneco sendo preconceituoso, sabe? Porque existem na sociedade o que existem nas pessoas, é muito autobiográfico o que aparece. Bonecas sendo arrastadas em cena, bonecos se referindo ao outro de forma preconceituosa em relação à sexualidade, em relação à cor de pele. Existe? Existe. Mas porque é um retrato social e vai ter. É importante que a gente consiga observar isso, olhe para isso e diga: “Não quero mais isso. Não, isso na minha brincadeira, não acho legal”. Que a gente possa conversar sobre isso também com outras pessoas. É um pouco mais difícil falar isso para um mestre. Não vou chegar a um mestre e falar: “Não, mestre, o senhor está errado, não brinque assim”. Eu não tenho esse direito, porque, por mais que a gente discuta isso… Claro que, dentro de uma roda, a gente discute. Mas eu não vou chegar para um senhor que brinca há 60 anos e falar para ele: “Não faça assim”. Porque eu não tenho esse direito, é o retrato social dele, é a autobiografia dele sendo apresentada. Às vezes, para que a brincadeira dele aconteça, ele usa desse recurso que, pra gente, não é legal, mas que é a forma como ele aprendeu e a forma como ele vem trazendo a brincadeira dele. Então a gente precisa também reconhecer onde a gente está, onde aquele mestre, aquela mestra está inserida, porque é um recorte social, um recorte biográfico que a gente precisa respeitar e entender e compreender que ele está falando disso porque, no lugar onde ele está inserido, talvez isso seja muito forte, seja algo que precisa ser trabalho muito além. Então é importante observar. Agora sim, para as novas gerações, não vou deixar que isso passe despercebido por alguém mais novo do que eu ou alguém da minha idade, né?! Não dá mais. Quando chega a alguém que está aqui, algum colega que está começando ou que tem uma idade parecida, não dá. A gente chega e vai lá no “mano a mano”. Não dá mais. A pessoa, às vezes, passa despercebida, como a gente comete erros em relação a tudo. A gente é preconceituoso e preconceituosa o tempo inteiro. Então, como a gente comete erros, todo mundo está sujeito a cometer esse erro. Cabe à gente olhar para o erro e decidir se vai continuar errando ou se vai tentando melhorar ali, tentando acertar.

Arine Figueiredo: Realmente. Isso puxa muito a questão do âmbito político-econômico. Nós sabemos que nós estamos enfrentando um cenário de diversas dificuldades. Todo esse cenário político-econômico e também de pandemia afetou de alguma maneira o trabalho das bonequeiras e do teatro de bonecos?

Catarina Calungueira: Sim, bastante. A gente ficou sem lugar para brincar, sem lugar para se apresentar, sem os nossos espaços, sem o público, sem as políticas públicas que nos acolham, que nos ajudem a caminhar, a desenvolver o nosso trabalho de outras formas. E isso ficou muito difícil. A lei Aldir Blanc ajudou. Tiveram coisas ali que deram certo suporte. Quem não depende ali do teatro de bonecos para ter o seu sustento garantido conseguiu passar por esse período de uma forma menos conturbada, mas eu conheço muita gente que trabalha na rua, nas feiras, inclusive o nosso amigo Emanuel bonequeiro, daqui, de Caicó. Ele trabalha exclusivamente nas feiras, com teatros de bonecos e outros tantos mestres e brincantes de diversas áreas. As próprias bonequeiras que fazem bonecas e que vão para as feiras, que estão direto nas feiras vendendo suas bonecas, também foram bastante afetadas. Então a gente teve que se reinventar, pensar e olhar para a internet novamente. Como é que a gente pode vender a brincadeira, os bonecos na internet também. Então foi um momento de reinventar os espaços. Quem conseguiu olhar para isso, porque nem todo mundo conseguiu olhar para internet ou teve acesso à internet, a um celular bom, algo que possibilitasse isso. Então tem muita coisa aí que vai levar um tempo para que seja reconstruída. Esses espaços, para que a brincadeira volte a acontecer, esses espaços onde a gente possa se reunir.

Alessandro Fernandes: Como você avalia, Catarina, o futuro do teatro de bonecos no Brasil, especialmente em meio a esse cenário tão conturbado que a gente está vivendo agora?

Catarina Calungueira: Então, essa é uma pergunta interessante. Eu realmente não sei, são processos bem lentos. A gente tem a internet agora como um caminho. Já aconteceram vários festivais do boneco popular, do teatro de animação, em várias áreas, em vários momentos. A gente conseguiu isso no teatro de animação do país. A gente conseguiu se unir através da internet, no WhatsApp novamente, no grupo chamado “Brincantes de teatro de bonecos”, na Rede de Bonequeiras. Aqui, no Rio Grande do Norte, nós temos a Associação Potiguar, a Rede de Bonequeiras. Então a gente tem uns núcleos ali, uns suportes que têm nos ajudado a pensar e têm feito já coisas na rua ano passado, né? Num período mais tranquilo, mas a gente vai aos poucos, né? Esse caminho vai sendo reconstruído aos poucos. Voltar pra rua, voltar para espaços com grande público, fazer um processo bastante lento. Agora a gente tá vivendo uma epidemia de gripe também, junto com a covid-19. Então, como a gente vai voltar pra rua, né? Como a gente vai voltar pra feira? Como a gente vai voltar pros espaços onde a economia criativa, a economia cultural tem que acontecer? Precisa acontecer. Então essa volta é pequena, ela é cuidadosa ali. Então a gente tem que se reinventar, né? Como vai ser essa volta, esse público… E como a gente vai construir esse nosso trabalho, é um processo de revisão e de reconstrução assim muito grande. De até onde eu posso ir. Até onde é permitido, né? Até quando a gente vai ter que manter esse público restrito também. Como a gente vai fazer para reunir essas pessoas todas, num festival presencial onde a maioria dos brincantes tradicionais são senhores e já são mais velhos? Então, como a gente cuida de tudo isso, né? Tem sido um aprendizado para todos nós do teatro de animação como um todo. Como fazer esses festivais, como fazer esses encontros acontecerem, como fazer a brincadeira continuar.

Nicole Giffoni: E como é que ficou a questão do público? Diminuiu, aumentou? Como é que está?

Catarina Medeiros: A última apresentação que nós fizemos, presencialmente, foi em outubro [de 2021]. Faz um tempo, né? Porque essas apresentações com pessoas estão bem reduzidas, né? Então, a nossa última foi em outubro e, assim, o público ficou com saudade. A gente teve que marcar os espaços onde as pessoas iriam ficar. A gente fez uma sequência de três apresentações e é muito bom. A gente sente que o público tem saudade, vontade de estar ali e tentar pegar nos bonecos também. Principalmente as crianças ficam felizes por essa volta, de poder ver o teatro, né? Do teatro também entrar na rua, também estar ali ao alcance. E tem uma coisa interessante sobre o público: o público agora é o público que tá ali junto, presencialmente, mas ele também é um público virtual, né? A gente ganhou esse outro público que está distante e a gente pode fazer a transmissão ao vivo da brincadeira, do espetáculo e que a gente pode marcar um espetáculo ali fechado pelo Google Meet, né? A gente ganhou outras possibilidades, mas que ainda precisam ser melhor exploradas. Que já não é teatro, já é uma coisa filmada, já tem uma outra característica, é mais audiovisual e menos teatro. Na verdade, já é um enquadramento, né? Porque o teatro está ali. Quando é presencialmente, é teatro. Quando alguém está filmando, já é outra coisa, já lhe dá um direcionamento específico, já passa a ser outra coisa. Então, o público tá nesse momento aí do presencial, o público virtual. Como a gente direciona o olhar desse público virtual também, né? O que a gente quer que o público virtual veja e o público presencial também. Então, têm esses caminhos aí pra gente poder estudar e ver como atuar.

Rayane Lopes: Catarina, ao longo da sua fala, você falou de muitas dificuldades que os calungueiros enfrentam. A gente quer saber se, durante essa sua trajetória, você já idealizou alguma coisa que você pensou “nossa, isso aqui ia ser incrível”, mas que você foi totalmente barrada por questões financeiras ou até mesmo burocráticas. Já teve alguma situação? Você pode nos contar?

Catarina Medeiros: Então… Nesse momento de união aí, com as mulheres, não. Eu posso dizer que sou muito sortuda, porque o que eu queria fazer, que era o festival e de fazer isso acontecer... Era uma vontade desde 2019. A gente conseguiu fazer ano passado, 2021. Então, ter conseguido isso foi uma grande vitória. Era um desejo muito grande que isso acontecesse, e ele aconteceu. Agora eu vou planejar o próximo. O segundo festival é o meu próximo projeto. Meu próximo desejo é que a gente consiga realizar esse segundo festival de mulheres bonequeiras do Rio Grande do Norte. E aí eu digo se vai dar certo ou se deu certo ou não. Mas eu confio que a gente vai conseguir, sim, nessa união, nessa força coletiva, fazer o nosso segundo festival. Mas, nesse sentido, não. Eu fui bem sortuda e fui ali brigando também, além da sorte também. Contei com a minha vontade de querer que as coisas aconteçam, e a gente conseguiu ter esse festival acontecendo. E a rede sendo ativa ali, trabalhando para que a gente consiga avançar cada vez mais e mostrar aí a força dessas mulheres bonequeiras.

Nicole Giffoni: Pode dar algum spoiler pra gente se esse festival vai ser presencial, se vai ser online?

Catarina Medeiros: Então, a gente ainda não tem ideia de como vai ser. A gente tá no processo de organização. E eu tô pensando como vai ser a estrutura e como captar os recursos para que ele aconteça. Virtualmente ou presencialmente. A ideia é que seja híbrido, que tenha um pouco do festival presencialmente e um pouco do virtual para quem tá longe. Porque o nosso festival foi para o país inteiro, né? Muita gente de muitos estados conseguiu ver, participar, perguntar, estar junto, por causa da internet. Então, a ideia é que tenha esse envolvimento da internet ali junto, né? Principalmente no seminário, a gente quer fazer essa discussão também com pesquisadoras, com pesquisadores, sobre a brincadeira, sobre a presença feminina. Então, a gente quer que ele tenha essa característica híbrida ali, mas que é cedo para falar sobre datas, porque a gente precisa se organizar bem em relação aos recursos financeiros e sobre toda a dinâmica de como ele pode acontecer.

Arine Figueiredo: Catarina, quando você fala sobre essa possibilidade que a internet dá, de chegar a mais público, me remete também a convidados. Como foi citado anteriormente, essa brincadeira, esse teatro de bonecos, é uma cultura do Rio Grande do Norte, mas também está presente no Ceará, em outros estados daqui, do Nordeste, especialmente. Vocês têm a pretensão de chamar outros brincantes de outros estados e fazer essa mistura de culturas de um estado para outro? Isso seria para esse festival de agora ou um plano futuro? Quais as suas perspectivas para esse próximo festival em questão de estrutura?

Catarina Medeiros: Para esse segundo, a gente vai caminhando devagar. Eu acredito que é importante essa troca de saberes, essa troca com outros estados, mas que seja uma troca ainda virtual com outros estados, com pessoas um pouco mais distantes. Pelas questões financeiras também de como resolver isso financeiramente, né? De como trazer essas outras pessoas, especialmente essas outras mulheres, que a vontade da rede de bonequeiras é que a gente possa fazer o nosso encontro nacional de mulheres bonequeiras, mas que ainda tá no plano das ideias. Mas o nosso aqui vai ser um festival ainda com nós, do Rio Grande do Norte, que é um momento onde a gente vai conseguir se conectar, se conhecer pessoalmente. Porque muitas de nós não se conhecem pessoalmente, apenas virtualmente. Então, seria esse momento de a gente se conhecer pessoalmente e de fazer essas trocas ainda internamente. Porque o Rio Grande do Norte é imenso e tem várias mulheres de várias áreas do Teatro Popular, mas também de outros tipos de teatro, de bonecas, né? De outros tipos de teatro de animação. Então, a gente faria primeiro essa troca entre nós, que vai ser o momento do presencial, esse momento de a gente se reconhecer, de poder estar junto e ver o trabalho da outra de perto. Mas com certeza essa troca virtualmente, né? No seminário ou em conversa sobre construção de bonecos, que essas outras mulheres de outros estados com certeza estarão presentes ali pra gente poder fazer essa troca inicialmente virtualmente. Mas, num futuro próximo, a gente quer, sim, que elas venham pra cá, que se apresentem, que a gente possa fazer essa troca, que é muito importante.

Nicole Giffoni: Para a gente finalizar, eu queria saber o que nós, como estudantes e cidadãos, podemos fazer para ajudar a expandir e dar mais visibilidade a uma atividade tão bonita e tão importante quanto o teatro de bonecos. Tem alguma coisa que a gente possa fazer?

Catarina Medeiros: Como a gente está falando em expansão, está falando em rede — e rede é uma coisa maravilhosa — , a partir da rede, a gente consegue ir pra todos os lugares. Eu vou contar uma história no meio do caminho, já que você falou sobre expandir. Quando eu era criança, eu adorava brincar na rede. E ia para todos os lugares da minha espaconave. Era meu barco, era o lugar onde eu dava cambalhota na rede. E quem brincou na rede, quem balançou numa rede sabe que a rede é uma coisa maravilhosa de estar junto. A gente balança, mas tá ali, né? Permanece nesse cuidado também, abraça e tá junto. Então, essa rede tem esse significado gostoso, assim, da gente poder balançar, mas continuar unido. Continua nesse caminho de possibilidades. De reinventar, de estar junto. E, se vocês quiserem fazer algo pra que essa rede possa chegar a mais mulheres, eu convido a conhecerem a rede de bonequeiras do Rio Grande do Norte. Ver as nossas páginas na internet, a redes de bonequeiras do RN, a rede de bonequeiras brasileiras também, tá? Lá vocês conseguem chegar a outras mulheres, chegar a esse público e entender como é que essa brincadeira acontece. Conheçam também o teatro de bonecos popular e pesquisem sobre isso. Conheçam esses mestres e mestras que têm histórias de vida lindas, que têm muito para oferecer, muito pra gente olhar e dizer que se reconhece. Olhar pra história do outro ali com respeito, com compreensão. A gente se reconhece também e olha pra nossa própria história com mais amor, com mais cuidado. Então, convido a vocês para que conheçam um pouco dessa história dos mestres e mestras do brinquedo do João Redondo, da Calunga, do Cassimiro Coco, do Mamulengo, do Babau, do João Minhoca e que vocês possam conhecer e brincar. Brinquem, gente, brinquem, porque brincar é sempre bom.

--

--