Dô, deixa eu te contar daquela vez que…

Isadora Azevedo
EntreFios - tecendo narrativas
3 min readDec 22, 2022

As várias histórias de Cila mostram as vitórias e as derrotas não só de uma mulher, mas de um país inteiro

Por Isadora Albuquerque Azevedo

Maria Auxiliadora Chagas de Oliveira / Acervo Pessoal

Maria Auxiliadora Chagas de Oliveira ou Cila, 59, tem histórias o bastante para encher uma tarde com risadas e olhos cheios d’água. Elas se confundem com o que já foi me dito ao longo de uma vida.

Nascida em Guaramiranga, em 1963, a voz se enrola em entonações míticas para tecer os contos de uma infância alegre, quase impossível. As durezas da vida rural em um país pobre e à beira de um golpe e dos pais, que seguiam a norma de palmadas e cintadas, tornam-se doces em sua língua de menestrel.

Os olhos escuros de Cila brilham ao falar sobre pintar um burro rabugento do seu pai e roubar um pouco do leite que iria para a produção de manteiga que sustentava uma família com tantos filhos que os nomes e as histórias se confundem.

Qual dos irmãos trabalhou como pedreiro, quem se mudou para São Paulo, quantas irmãs ficaram em Guaramiranga mesmo?

Mas o corpo endurece, e as palavras pesam quando relata uma história tão comum: veio para a capital cearense aos 12 anos para trabalhar como empregada doméstica para uma senhora rica. “A velha era ruim, Dô”, relata Cila com a mesma amargura e os olhos apertados ao me dizer que, há menos de um ano, uma amiga sua teve os dedos quebrados pela patroa.

Só mais uma menina negra, pequena e pobre largada em Fortaleza. Treme dos pés à cabeça ao lembrar da vez em que teve o rosto queimado por aquela mulher por um motivo de que nem lembra mais. Emenda essa história com a do dia em que foi atacada por uma raposa, enquanto ainda vivia na serra. A raposa poderia se explicar com seus instintos animais, mas o que diria a mulher?

Cila saiu daquela casa, mas o trabalho doméstico não saiu dela, como não saiu da vida de incontáveis mulheres negras e pobres, que ainda são a esmagadora maioria dos trabalhadores domésticos. Peregrinou de família em família e ri ao me contar sobre filhos bastardos, adultérios, crianças malcriadas. Todo o tipo de vergonha que “só a empregada pode ver”. É uma vingança tão saborosa quanto o café e o cuscuz que dividimos.

No entanto, olha para o celular e levanta de sobressalto. Precisa voltar para casa: vai assistir ao jogo do Brasil com a família. Antes de ir, aproveita para me mostrar uma foto da filha mais nova de jaleco e do neto mais velho na graduação de bombeiro. A educação de Cila foi até a quarta série, e ela só foi aprender a dividir já adulta, mas com as filhas e os netos foi diferente.

Ela lembra de novo que está atrasada e se levanta para me abraçar. Mesmo de tamancos generosos, alcança só os meus ombros. Ainda é pequena, tem menos de um metro e meio de altura, mas carrega uma vida inteira de histórias sobre os ombros.

--

--