Trajetória de descobertas, arcanos e reconstruções

Francisco Apoliano
EntreFios - tecendo narrativas
5 min readJul 14, 2023

A jornada que leva Ana Virgínia Dantas (27) do interior da Bahia à cidade de São Paulo: “Minha casa é onde minhas cartas estão”

Por Francisco Apoliano

Ana Virgínia Dantas é estudante de geografia na USP / Acervo pessoal (Instagram: carangueja cibernetica)

São mais de 2.200 km que separam o distrito de São João da Fortaleza, no município baiano de Cícero Dantas, do bairro Butantã, na capital paulista. Mas não é apenas a distância geográfica que se destaca e que atravessa Ana Virgínia Dantas, de 27 anos. Já são nove anos morando no Sudeste do país em busca de libertação, de si mesma, do conhecimento e de uma outra vida na qual ela não somente coubesse, como pudesse ser maior.

No distrito de 2.500 moradores onde Vírginia nasceu, os mitos, os contos, os costumes são tecidos num espaço-tempo próprio de cidades e territórios “do interior”. Naquele lugar, viveu até seus dezessete anos com seu pai, sua mãe, seus dois irmãos mais novos e com outros familiares.

Vista de dentro da casa da família de Ana Virgínia, em São João da Fortaleza (BA)/ Acervo pessoal

A ida para a capital paulista se dá em 2014. Dois anos depois, em 2016, surge a oportunidade de cursar Geografia na Universidade de São Paulo (USP). O território anterior — que, além de pequeno, era limitado em suas noções sobre o que é sexualidade, religião, certo e errado — passa a ficar estreito, e a procura por um novo ambiente que pudesse ser explorado se torna possível com a mudança de cidade.

Mais de dez horas de viagem; do outro lado do mapa, São Paulo. A metrópole possui seus mais de 11 milhões de habitantes espalhados nos seus mais de 1.500.000 km² de território. Tida como “central” em muitos aspectos, a cidade carrega consigo também o marco de ser a cidade fora do Nordeste com o maior número de nordestinos. De longe, um dos maiores fenômenos demográfico do país.

Não precisa morrer pra ver Deus

Na infância, criada em comunidade pelos pais, pelas avós, pelas tias, tinha para si que este mundo não podia ser o único mundo possível. Sempre questionadora, segundo ela. Desde cedo inquiria, inclusive, a existência de Deus. Mas não de qualquer deus, e sim deste que é criado, contado e narrado pelas igrejas. Aquele que manda, ordena, catequiza. Não entendia e não acreditava. Dizia-se ateia por um bom tempo, inclusive. A mudança veio quando conheceu o arte do Tarot. Foi quando se deu ao Tarot de Marselha, por curiosidade de entender as simbologias.

Uma filha de Yansã

Sou baiana. Sou estudante de Geografia. Sou cartomante. Sou do candomblé. As coisas acadêmicas e espirituais me definem bastante. Sou engraçada. Sou expansiva. Sou faladeira.

Em 2020, num caminho onde o tarot já representava uma boa parte de quem ela era até ali, é, então, apresentada ao Candomblé. A partir dos arcanos, das cartas, começou a compreender que o ateísmo não era o que melhor explicava as coisas que a constituíam. Nesse caminho de descobertas, conhece Exu, Yansã, Maria Padilha, terreiros, oferendas, afetos. Um portal se abre na sua vida. Outro mundo possível se apresenta.

“Pra mim, família é uma pessoa ao lado de quem eu consigo ficar confortável sendo eu”.

Com uma família de sangue distante, tanto física quanto emocionalmente, a rede de afetos de Vírginia teve que ser re-criada para dar o espaço e o suporte necessários durante todo esse tempo. Pessoas como Maria, Gabs, Lahire, Lu, Mara, pessoas do terreiro, entre tantas e tantos, foram se estabelecendo como família para ela. Até mesmo a relação com a mãe e com os irmãos precisou se ressignificar após a perda do pai, em 2020.

Passado, presente e futuro: uma linha não tão linear

Mesmo com apenas 27 anos de idade, ela consegue atender ao meu pedido para tentar definir “quem é a Virgínia do passado, a do presente e a do futuro”.

A do passado, diz ela, foi tolhida e impedida de ser que era, de ser lgbt+, de se expressar, de se vestir, de usar a própria voz. Sempre vista como petulante e arrogante, do ponto de vista dos outros — e talvez dela também —, aquela adolescente ainda em construção carregava em si as vozes que diziam “você não pode ser assim”. Não aceitava calada esse processo de poda, mas sentia que criava rupturas emocionais no seu corpo, na sua fala, nos seus amores.

A do presente, é desperta, afirma. Desperta para perceber que quem decide e faz a própria vida é ela mesma. Percebe que possui escolha e são essas escolhas que vão, neste presente, co-criando a sua realidade. A cartomancia entra aqui como uma revelação, e não como uma escolha. A partir dela, essa pessoa do presente se entende como Sujeita e se empodera, inclusive financeiramente.

Sobre a do futuro, diz ela que não sabe, apesar de ser vidente. Apenas pensa e deseja ser uma pessoa melhor. Uma pessoa que quer reconquistar toda a confiança que no passado lhe tiraram. “O futuro a Deus pertence”, diz entre risos.

O Mago (I) e o Diabo (XV)

Certo dia, o jornalista cearense Ronaldo Salgado afirmou que a escrita do perfil de alguém por meio de entrevista é avalizada (também) a partir da idade da pessoa entrevistada. A experiência que carrega consigo faz com que se olhe para a vida de baixo para cima (projetando o futuro) ou de cima para baixo (observando o que viveu).

Ao longo da entrevista, Virgínia me pareceu estar em cima de um horizonte. Sem projetar demais, feito os jovens; nem concluir demais, feito os mais experientes. Sua vida está em construção. Carrega uma ancestralidade que a coloca além. A idade aqui possui um aspecto de Kairós, o “tempo oportuno” que, para os gregos, era diferente do tempo Chronos, o “tempo dos homens”.

“a magia sertaneja é formadora de meu corpo matéria e espírito, do sertão eu vim, das magias da terra fui tolhida e é aqui que minha essência brota. a magia da vidência, das benzedeiras e das faces ocultas da lua que me é morada me ampara, me ensina e me protege. viva o povo sertanejo, viva os caboclos e negros sertanejos, viva o cangaço. viva minha história”

Virgínia Dantas (ou carangueja cibernética)

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Francisco Apoliano
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29 anos — Fortaleza, CE. // Formado em Filosofia (UFC) // Graduando em Jornalismo (UFC)