A vida de dona Maria, do interior à eternidade

Joziane Pontes
EntreFios - tecendo narrativas
4 min readJul 14, 2023

Uma história de resiliência construída com fé e força, da cidade de Capistrano para a capital cearense

Por Joziane Pontes

Dona Maria e sua neta Joziane Pontes

A fome não deveria marcar a vida de ninguém, mas infelizmente marcou o início da caminhada de Maria Porfírio dos Santos, mais conhecida como dona Maria. Nascida em Capistrano, interior do Ceará, em 1931, a pequena Maria, conviveu com a seca e com a constante necessidade de renunciar de suas vontades em vista das necessidades de sua família.

Ainda criança, precisou levantar a enxada antes de poder segurar um lápis, pois precisava esforçar-se para que, por meio do seu suor e o de seus pais, Antônio Profiro da Silva e Regina Fernandes, a miséria trazida pela aridez da terra se afastasse de sua casa. Maria Porfírio tinha mais de dez irmãos, porém somente cinco deles sobreviveram além do período neonatal.

Católica desde a infância e devota, recebeu todos os sacramentos da iniciação cristã em sua cidade natal, inclusive o do matrimônio, contraído aos 20 anos com Raimundo Alexandre dos Santos. O casal teve 12 filhos, mas, devido às condições precárias dos partos de Maria e aos abortos espontâneos enfrentados, somente cinco sobreviveram.

José Porfírio dos Santos — um dos filhos mais novos dela — relata-me sobre as dificuldades que seus pais enfrentaram para sustentar a família. Apesar dos esforços de todos em trabalhar na roça e aproveitar qualquer oportunidade de emprego que surgisse, frequentemente passavam por necessidades extremas, chegando até a passar fome. Mas Maria conservava a fé e estimulava os filhos a fazerem o mesmo.

Em 1965, a seca levou Dona Maria a deixar Capistrano e tentar, pela primeira vez, se mudar com a família para a capital cearense.

José Porfírio lembra que Dona Maria ainda retornou a Fortaleza outras três vezes, devido à seca, mas, na última vez, em 1972, mesmo passando por dificuldades na cidade, os filhos, já adolescentes, não queriam mais se submeter a uma vida de retirantes, repleta de desgastes e incertezas. Decidiram ficar em Fortaleza e se estabeleceram no bairro Cristo Redentor, na região da Grande Barra do Ceará, periferia de Fortaleza.

“Quando voltamos para Fortaleza pela terceira vez, minha mãe soube que o padre Caetano dava emprego para as crianças. Então, ela nos arrumou e nos levou até a porta da casa dele. Quando ele saiu, ela perguntou se ele poderia arrumar um emprego para nós, pois estávamos passando fome. O padre respondeu que o lugar das crianças era na escola e pediu a ela que nos matriculasse. Em seguida, ele conseguiu incluir minha mãe em um programa que fornecia uma espécie de mingau para evitar a desnutrição,” relata José Porfírio.

O Padre em questão nunca dera emprego para crianças. Ele auxiliava os pais mais necessitados da região a encontrarem ofícios mais dignos, com melhores salários, para as crianças não ficarem impedidas de ir à escola por precisar auxiliar nas despesas domésticas. As histórias sobre os atos de caridade do padre Caetano se espalhavam, mas os fatos nem sempre eram retratados como realmente aconteciam.

Dona Maria não queria que os filhos precisassem trabalhar em vez de estudar, como acontecera com ela. Dona Maria passou a lavar roupas para complementar a renda, e a casa da família foi sendo gradualmente construída com muito esforço. Seu riso marcante e alegre estava sempre presente em todas as ocasiões em que a família se reunia.

Sendo profundamente católica, sempre buscou manter laços estreitos de amizade com a “dona Maria do Céu”. Todos os dias, às seis horas, tinha um compromisso insubstituível: rezar o terço.

A casa de dona Maria possuía representações de vários títulos de Nossa Senhora, mas havia um ao qual ela mais se apegava: Nossa Senhora do Desterro. Esse nome remete à fuga de Maria e José para o Egito, quando Herodes buscava encontrar e matar o recém-nascido Jesus.

Conhecendo sua humildade e as desafiadoras viagens que dona Maria fez para escapar da fome, é fácil entender por que ela se identificava tanto com a Maria Sagrada que fugiu para o Egito buscado proteger seu filho.

Com o passar do tempo, os filhos de dona Maria casaram-se, deixando a casa materna, mas a partida que mais a impactou foi a de sua filha Maria de Fátima, que faleceu subitamente em decorrência de um ataque cardíaco. Até hoje, a dor pela perda desse familiar é tão intensa que seus irmãos não conseguem descrever os detalhes do ocorrido.

Após a morte de sua filha, dona Maria começou a apresentar várias doenças, como diabetes e hipertensão, e passou a frequentar médicos, algo que não costumava fazer, pois sempre confiou em remédios “naturais” que aprendeu a utilizar na infância, em Capistrano, devido à falta de acesso a médicos e a medicamentos de qualidade.

Seu coração precisou de ajuda para funcionar adequadamente e, por isso, foi necessário implantar um marca-passo, um dispositivo que auxilia na regulação dos batimentos cardíacos. Ao encostar a cabeça em seu peito, era possível ouvir uma batida como a de um relógio. Depois disso, seu corpo demandava mais cuidados e descanso.

Dona Maria amava seus netos e dedicava seu tempo a eles, contando histórias e transmitindo seus ensinamentos sobre a vida. Era como ela desse sua própria existência como herança aos seus. À medida que se aproximava o dia de sua partida, revelava cada vez mais a força de sua fé na vida e na Eternidade. Parecia estar se preparando para sua última viagem, para um lugar realmente definitivo.

Na véspera de Natal de 2006, dona Maria partiu. Fez sua última jornada, indo ao seu verdadeiro destino. Segundo sua fé, tinha um lugar para ficar e podia contar com a ajuda de “dona Maria do Céu”.

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