Dora Gadelha: “A escola pública é uma luta permanente na história da educação no Brasil

Guilherme Siqueira
EntreFios - tecendo narrativas
23 min readJul 25, 2022

Em entrevista ao EntreFios, a professora aposentada do IFCE e militante da luta pela educação fala sobre sua trajetória acadêmica e sobre os anos em que participou do movimento estudantil da Uece

Por Giovana Feitosa, Guilherme Siqueira, Júlia Moita,
Letícia Ávila, Ryllery Marques e Victor Bernardino

A imagem mostra Dora Gadelha, uma mulher branca, de óculos e cabelos pretos. Ela usa uma camisa branca com a frase “Lute como uma garota” e gesticula com os braços. Está falando em um microfone, com uma bateria musical à sua direita e somente um fundo preto a suas costas. A foto está em preto e branco.
Dora Gadelha / Acervo pessoal

Doutora em educação brasileira, a professora Dora Gadelha, durante toda a sua carreira, ensinou história de maneira crítica para seus alunos. Com várias vivências no campo da educação, lecionou em instituições federais em diferentes estados do Brasil. No estado onde nasceu, contribuiu de maneira significativa ao ser uma das criadoras da JAC, a Mostra Interdisciplinar Juventude, Arte e Ciência do IFCE.

Durante sua licenciatura em História pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), nos anos 1980, participou do movimento estudantil, durante o período da ditadura militar no Brasil. Dora fez parte do Centro Acadêmico de História e do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Uece. Militou juntamente com seus colegas por uma educação pública de qualidade e crítica.

A equipe do EntreFios recebeu Dora em 1º de julho para falar sobre sua carreira na educação, sua relação com os movimentos sociais e suas vivências no campo educacional.

Confira a entrevista na íntegra e alguns trechos transcritos a seguir.

Vídeo da Entrevista com Dora Gadelha

Guilherme: Nós entendemos que sua história com a educação atravessa vários anos e muitos projetos. O que exatamente lhe levou a cursar história pela Uece?

Dora: Bom, a minha história com a educação vem de casa, né? Eu sou filha de professora. Minha mãe viveu muitos anos na educação, na educação primária, num período da história da educação do Brasil que ainda era tudo muito difícil. Ela era de Fortaleza, mas ela dava aula no interior. Então eu fui criada num ambiente de educação, valorizando bastante a educação e sabendo que tudo de melhor para a minha vida poderia e deveria vir pela educação. Então, eu sempre fui muito focada.

Minha mãe, com a educação mais antiga, obrigava a gente a decorar tabuada, fazer cópia, escrever ditado. Minha mãe era muito durona e assim eu fui estudando. Mais na frente, eu fui entendendo melhor esse caminho da história na minha vida. Não foi de imediato, eu fui entendendo aos poucos e depois eu fui ligando os fatos. Então eu entendi, por exemplo, na minha sexta série, eu recebi um livro de história. Esse livro de história tinha imagens, ele era meio que em quadrinhos e rapidamente eu folheei aquele livro todo, eu li tudo. “Tudo” que eu digo assim, né? Folheei todo, li muitas coisas e me interessei. E eu tinha muita dificuldade com matemática, então eu acho que o meu caminho das ciências humanas foi sendo traçado assim, até eu chegar à Universidade Estadual do Ceará, que foi um marco na minha vida. Fazer história, estudar história e me tornar professora.

Giovana: A senhora falou sobre a influência da sua mãe como educadora. Quais foram as suas principais influências e inspirações dentro da educação, além da sua mãe?

Dora: Essa educação veio da minha mãe, né? Da minha tia, de uma família que gostava de educação, mas quando eu chego à Universidade, a gente vai conhecer autores, autores da história, autores da ciência, autores da política. E esses autores foram importantes na minha formação como uma professora de história que olhasse para a história de forma crítica, de uma forma não decoreba.

Eu fui formada e eu estudei num período do Brasil em que história era completamente desvalorizada — se ainda é hoje, imagine algum tempo atrás. E esse conteúdo era muito feito do que nós, historiadores, chamamos de “positivista”. Ou seja, a gente decorava fatos, decorava datas, nomes. Então a história focada no vencedor, em quem fazia história. Quando eu chego à Universidade, fora um pouco da Universidade, já na minha militância no movimento estudantil, eu vou conhecendo outros autores e vou trazendo uma história mais viva, mais dinâmica. Educadores, como Paulo Freire, foram fundamentais na minha vida para entender uma educação como eu falei: viva, dinâmica, construída pelo estudante.

E do ponto de vista da história, autores como Le Goff foram importantes para trazer a ideia de uma história que não é só do ponto de vista do vencedor, mas das pessoas comuns, como nós todos, que fazemos história em algum momento da nossa vida.

Ryllery: Dora, durante a sua atuação como professora, a senhora ensinou em diversas instituições e estados. Aqui no Ceará, no Piauí, no Rio Grande do Norte e também na Bahia. Qual desses lugares a senhora considera que teve o maior impacto na sua trajetória profissional?

Dora: Eu digo assim, o Piauí foi o primeiro, então foi o meu marco. Eu fiz um concurso e eu passei, então aquilo ali foi fundamental na minha vida, aquilo ali determinou meus caminhos, de quase 30 anos. Então foi fundamental na minha vida.

O Rio Grande do Norte tem uma importância porque nós, dos Institutos Federais, sabemos a importância que é a Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte. É uma das melhores, muito bem estruturada, muito bem organizada. Então foi muito importante.

Na Bahia, foi um momento de conhecer um estado que eu não conhecia, de uma realidade que eu não conhecia. Então, foi muito enriquecedor conhecer a cultura da Bahia, que foi muito importante para mim.E o Ceará, porque era minha terra, né?

Victor: Na condição de professora que atuou em diversas turmas ao longo da sua trajetória acadêmica, a senhora deve ter vivido situações singulares. Você poderia destacar alguma situação em sala de aula que lhe marcou bastante?

Dora: Eu coloco uma muito importante, já nessa luta antirracista. Eu acho que o professor tem que se colocar. A gente da história não acredita nessa neutralidade, na história não. O professor tem determinadas posições e uma delas é ser antirracista. Eu lembro de um aluno, há muito tempo, ele foi meu aluno no ensino médio, e uma vez eu viajei. Voltei e trouxe algum material do movimento negro pra ele. Muitos anos depois, ele me mandou uma mensagem, tava num momento difícil lá no IFCE, ele mandou uma mensagem que ele dizia que tinha sido fundamental aquele momento em que eu trouxe aquele material pra ele. E que ele lembrava que eu tinha chegado, tinha cumprimentado, tinha dado um abraço nele, tinha falado assim: “Ó, lembrei de ti, isso é muito importante pra ti”. Ele disse que, naquele momento, era realmente muito importante para ele, que aquilo ali para ele era a identidade que ele tava assumindo e tinha sido muito importante. Então, eu levei isso como uma grande lição na minha vida, porque eu fiz aquilo de forma tão espontânea, tão natural e eu estava realmente tocando o coração de um aluno, tocando a vida de um aluno.

Giovana: A senhora ensinou em várias instituições, que eram as escolas técnicas, hoje são os institutos federais. Qual ou quais razões fizeram a senhora permanecer tanto tempo na rede federal de ensino?

Dora: É importante essa pergunta. No meu caso, trabalhar em uma instituição federal era a possibilidade de ter um pouco mais de condições de ensino. Nós todos sabemos que a educação sempre passa por momentos delicados. As verbas nunca são suficientes, a gente tem vontade de fazer coisas, essas coisas não podem acontecer por falta de dinheiro, por falta de verba. Então, apesar dos pesares, a escola técnica — quando eu entrei era escola técnica — tinha uma qualidade diferenciada e até hoje tem. Ela tem uma qualidade diferenciada, no sentido de ter mais oportunidades, para o próprio professor. Dentro da escola, eu pude fazer meu doutorado, dentro da escola eu pude fazer várias aulas de campo, viagem com meus alunos. Então, isso dá qualidade para a educação, isso traz qualidade para a educação. Então, trabalhar numa instituição pública federal fez toda a diferença na minha vida, além de facilitar esse meu deslocamento de estados, como era uma instituição federal eu podia sair de uma e entrar na outra, sem problemas burocráticos, isso aí foi mais tranquilo pra mim.

Ryllery: Dora, a senhora passou bastante tempo como professora efetiva no IFCE, inclusive contribuiu de maneira significativa para a história da instituição, onde, em 2021, encerrou seu tempo como docente. Uma das suas contribuições foi o desenvolvimento da JAC, que é a mostra interdisciplinar Juventude, Arte e Ciência do IFCE. Como foi o processo de criação desse projeto?

Dora: Esse projeto é assim: a gente brilha o olho quando fala dele. Ele é um projeto que nasceu de três professoras: eu, a Fabiana e a Cristiane. Depois um grupo foi incorporado: professora Kilvia, professor Gilberto, professor William, professora Michele e agora a professora Nubélia. Nós formamos um grupo que, primeiro, entende a educação como uma educação crítica e criativa. Então, a nossa ideia de avaliação era uma avaliação que passasse pela construção do conhecimento. A JAC nasceu dessa ideia inicial: vamos fazer um projeto porque cada uma das três professoras, que eu citei, a gente já fazia algum projeto, já trabalhava de alguma forma com as turmas. Nós fomos nos conhecendo aos poucos no IFCE e depois a gente viu que as três faziam trabalhos parecidos. Então a gente pensou: vamos pegar nossas turmas em comum e vamos apresentar no auditório. E, pra nossa surpresa, foi maravilhoso, o auditório lotado, os alunos que participavam e os alunos que foram assistir. A gente viu a importância de um trabalho dessa natureza, e esse trabalho só cresceu, outros professores passaram a participar. Os alunos fazem apresentação artística com os conteúdos trabalhados em sala de aula. Então, mais uma vez, pra pergunta que foi feita anteriormente, assim um dos momentos mais importantes, foi um momento que veio da JAC. Tinha uma turma, a primeira turma, a primeira apresentação da JAC, era uma turma que trabalhava a disciplina de história comigo e a disciplina de biologia com a professora Cristiane. A professora Cristiane trabalhava vírus e eu trabalhava os anos 1980, e vamos procurar aqui como que a gente vai unir as disciplinas e, do nada, os alunos falaram: “Ah, professora, tranquilo, né, anos 1980 aí, com história e o vírus da AIDS, o HIV, com a questão da biologia”. E nós fizemos uma das apresentações mais marcantes da JAC. E era a primeira, né. Eles subiram naquele auditório e trouxeram os anos 1980, a chegada do vírus da AIDS, esse impacto que trouxe pra minha geração. Vocês sabem disso pelo que vocês estudam, a minha geração viu isso chegar, e eles conseguiram trazer isso. Foi uma emoção imensa para os professores, sobretudo para os professores, que viveram aquele período. Então, a JAC traz essa importância para o protagonismo do jovem, para a pesquisa, para o conhecimento através da pesquisa do estudante. Quando eles chegam para montar uma peça, e uma peça com conteúdo, eles estudaram bastante, eles pesquisaram, eles entrevistaram pessoas, eles saíram procurando imagens da época, então tudo isso faz com que a educação tenha uma qualidade muito maior, e é por isso que a JAC é tão importante.

Victor: Em algum momento, a senhora pensou em trilhar outro caminho que não o da educação?

Dora: Não, nunca, nunca, nunca pensei em nada diferente da educação. Eu falo isso completamente segura. Pelo contrário. Na verdade, a sala de aula, o convívio com os alunos, o estudo, ele me fez, cada vez mais, entrar no mundo da história, compreender muito mais a história, muito mais do que quando eu era aluna, quando eu era estudante de história. Quando eu fui pra sala de aula, eu via a grandeza e a importância de ensinar história, de trazer o conhecimento para os nossos alunos e a minha relação muito salutar com meus alunos. Então, eu acho que nunca, nunca, em momento nenhum me vi fazendo qualquer outra coisa a não ser dar aula. E dar aula, no meu caso, muito focado na juventude, eu trabalhei bastante com ensino médio e com ensino superior, superior nos semestres iniciais, como professora de história da educação nos cursos de licenciatura. Então, eu acho que essa ligação com a juventude enriqueceu muito meu trabalho. E eu jamais faria outra coisa, a não ser dar aula mesmo.

Guilherme: Falamos agora da sua formação em história, pela Uece, onde a senhora se graduou, em 1987. Durante aquele período, a senhora se envolveu com o movimento estudantil. Qual foi exatamente o seu envolvimento com o movimento estudantil durante a sua graduação?

Dora: Esse aí é um capítulo muito importante da minha vida. Eu passei muitos anos na Uece. Eu passei muitos anos porque eu fiz a graduação e fiz a minha primeira especialização, que foi história das ideias políticas. Logo que eu entrei na Uece, eu chego à Uece nos anos 1980. Os anos 1980 foram muito impactantes no Brasil, porque eu costumo dizer que, de certa forma, eu sou de uma geração privilegiada porque a geração dos anos 1960, a geração dos anos 1970, elas viveram o pior período da ditadura militar no Brasil. Então, a militância era muito difícil, era muito complicada para aqueles jovens que foram perseguidos, que foram presos, foram torturados ou então calados, muitos sequer podiam fazer militância, a perseguição era muito grande. Os anos 1980 fazem essa transição, a gente chega ao final dos anos 1970, início dos anos 1980, com a crise profunda na ditadura militar, os movimentos operários explodindo no Brasil, a greve do ABC, famosa greve do ABC, ela traz uma nova etapa para a história do Brasil. A ditadura caminha para sua crise e, na metade da década de 1980, termina. Então, eu tô na universidade nesse período, militando de forma muito ativa. Eu me torno presidente do centro acadêmico de história e depois vice-presidente do DCE da Uece. Foi um período muito rico, porque a militância não era só dentro da Uece, era dentro da Uece, mas era também Fortaleza. Então, a gente fazia, por exemplo, uma passeata que saía do Centro de Humanidades [da Uece, próximo à Avenida 13 de Maio, no bairro de Fátima], passava na escola técnica [na Avenida 13 de Maio, no bairro Benfica], passava na UFC e ia até a praça do Ferreira [no Centro]. Então, havia um movimento muito intenso dos estudantes, e eu participei de forma muito ativa desse movimento. E foi esse movimento, eu digo, que foi esse movimento que me fez crescer tanto, entender tanto a sociedade brasileira, entender tanto a necessidade dos movimentos sociais, entender a necessidade da juventude de participar de forma efetiva das transformações sociais. Por isso que os meus alunos sempre tiveram de forma muito aberta a participação. Eu sempre conversei com eles sobre isso, eu sempre falei bastante sobre isso, porque eu acho necessário que a juventude tenha consciência política, que ela trace o seu próprio caminho. Então, dentro da universidade estadual, eu tive essa oportunidade, essa oportunidade foi fundamental para o meu crescimento como ser humano e como ser político, numa sociedade que estava em transformação.

Giovana: A senhora falou exatamente da geração que veio antes da sua. Então, a senhora iniciou nos movimentos estudantis em um período delicado da história do nosso país, onde estar dentro dos movimentos sociais era um risco. Em algum momento a senhora pensou em não entrar ou não estar mais presente ali naquela militância?

Dora: A tua pergunta é importante, sabe? Porque muitas vezes as pessoas, sobretudo quem estuda o movimento estudantil, olha muito para as gerações de 1960 e 1970. Eles foram fundamentais, eles foram importantíssimos, eles tiveram uma contribuição muito grande. Mas a nossa geração faz essa transição, onde você ainda está no passado e já está vendo coisas do futuro. O passado pra nós era ainda repressão.

Por exemplo, a gente fez passeata em que a polícia esteve presente, e a polícia prendeu a mim, aos estudantes, nós corremos da polícia muitas vezes. Aqui mesmo, na avenida da Universidade, aqui em frente ao curso de vocês, nós tivemos passeatas com muita perseguição. Eu não vou dizer que não dava medo, porque dava. Imagina você, com o corpo pequeno, franzino. E eu que sempre fui muito pequena, muito franzina.

A gente tinha medo disso, mas, por outro lado, nós tínhamos muita esperança. Nós tínhamos muita vontade de transformar o país, então havia muito a ideia do coletivo, dos movimentos estudantis como movimentos de coletivo, movimentos que eram ligados a outros movimentos sociais, não tava só dentro da universidade.

Tava na universidade, mas estava também nos movimentos de mulheres, estava também nos movimentos dos operários, nos movimentos contra a carestia. Desses movimentos que aconteciam fora da universidade, nós também participamos.

Então era comum, por exemplo, “ah, vai ter eleição de um sindicato, sindicato operário”; vamos pra lá, vamos conhecer os operários, vamos distribuir material, vamos ajudar os operários que estavam participando do sindicato. Isso era muito importante, mobilizava muito a juventude nesse período.

Victor: Em que momento a senhora percebeu a importância tremenda de participar de um movimento estudantil na ditadura?

Dora: Na época, a gente tinha um sonho, a coisa da utopia: nós vamos fazer a mudança neste país, nós acreditamos na mudança, nós vamos transformar o país, nós somos jovens. Com força, com garra, com determinação. A gente acreditava realmente nisso. Isso nos fazia colocar o sonho. Éramos jovens que realmente sonhávamos que existiria uma utopia.

A gente tinha uma frase: “Sonhos, acredite neles”. Era um lema pra gente. Então a gente tinha muita ideia do sonho. A nossa geração foi uma geração que abria mão de muitas coisas individuais para ir pro movimento. Então, só pra vocês terem uma ideia, assim, festas, noitadas, a gente abria mão de muitas coisas pra pintar faixa, produzir uma nota pra distribuir pros alunos. A gente ia numa gráfica, tentava conseguir dinheiro, fazia a reprodução de uma nota, porque não tinha internet, né? Não tinha WhatsApp, Facebook, Instagram, não tinha nada disso. Então o material era escrito e distribuído, a gente sabia da importância disso.

Mas eu acho assim: eu fui ter uma ideia maior da minha geração com o distanciamento histórico. Eu acho que isso é importante, e vocês vão passar por isso. Eu sempre falei isso pros meus alunos: não tem uma geração que foi mais ou menos importante. Eu não estou dizendo que a minha foi mais ou foi menos importante. Ela cumpriu um papel histórico, como as outras e como a de vocês cumprem um papel histórico. Vocês vão perceber isso daqui a algum tempo. “Que que eu fiz?”, “como é que foi minha minha participação?”, “como é que foi o meu período histórico?”, “que que estava em jogo no Brasil nos anos 2020, 2021, 2022?”, “o que que estava acontecendo no país?”, “com que a gente podia participar ou não?”.

Eu percebo isso como um distanciamento histórico. A minha geração cumpriu um papel, ela foi muito importante, e eu acho que foi muito bom e muito rico eu ter vivido todo esse período. Ter ido para os congressos da União Nacional dos Estudantes [UNE], ter ido para os encontros nacionais dos estudantes de história, ter ido para reuniões em nível nacional.

Então eu conheci pessoas do Brasil inteiro. Eu tenho hoje um grupo, que nós temos uma relação, que é um grupo nacional. Nós fazemos encontros de dois em dois anos, pulamos aí por conta da pandemia, mas acabamos de voltar de Minas Gerais com o encontro desses jovens não jovens hoje, né? Mas que foram jovens nos anos 1980 e que militaram, então nisso eu acho que nós tivemos uma contribuição muito importante.

Guilherme: E como a senhora avalia a atuação do movimento estudantil nos dias de hoje?

Dora: Eu imaginei que vocês fossem perguntar isso. Sempre que eu estou em alguma discussão, alguém pergunta sobre isso.

Eu acho assim… Nós vivemos uma outra etapa histórica. Eu acho que atualmente as questões de comportamento, as questões antirracistas, as pautas LGBTQIA+, essas questões são fundamentais para a geração de vocês. Isso tem que ser colocado em pauta, ser discutido, ser pensado. Eu acho que a juventude hoje, a militância é completamente diferente da minha época. Acho que as entidades estudantis perderam um pouco, não da sua importância, pelo contrário, cada vez mais ela tem muita importância; mas eu acho que existem outras formas também de militância.

Os coletivos de estudantes, os coletivos juvenis cumprem papéis importantes nessa trajetória. Mas eu queria dizer assim: é muito importante que vocês pensem sobre o papel de vocês, no tempo de vocês, na época de vocês. Com que vocês podem contribuir? Eu acho que isso não pode ser deixado de lado de forma nenhuma, que cada juventude, cada etapa de juventude, cada etapa histórica tem um papel, e vocês têm muita coisa a contribuir. Com a vontade, com a garra, com essa coisa que é peculiar do jovem. O jovem tem muitas vezes coragem, determinação, vontade de mudar as coisas. Então eu acho que o papel atual trabalha nesse campo de mudança, que é tão necessária para a sociedade brasileira.

Ryllery: A senhora fez especialização em História das Ideias Políticas pela Uece. Como essa formação contribuiu para o desenvolvimento da sua mentalidade crítica e de liderança dentro dos movimentos?

Dora: Olha, a primeira importância desse curso [é que] foi o primeiro curso que eu fiz depois da graduação. Eu saí da graduação e já entrei direto nessa especialização. Ele foi importante pra mim por vários motivos. O primeiro [é que] me colocava muito na pesquisa, porque, na minha graduação, como eu falei pra vocês, minha graduação foi limitada. Eu tive problemas, assim, em relação ao período histórico. Ainda, nós tínhamos ainda muitos professores com a mentalidade muito positivista. Então eu fiz o curso tranquila, terminei. Mas, quando eu chego à especialização, eu me deparo com a necessidade da pesquisa. Então, foi o primeiro impacto de pesquisar, de escrever, de pensar como elaborar uma monografia. Então isso foi a primeira importância. A segunda é essa que você falou: foi esse mergulho nas ideias políticas. Esse mergulho em autores que a gente começou lá em Platão, Sócrates… E fomos trazendo a Filosofia Política, ao longo da história, Maquiavel, Rousseau… Até chegar a [Antonio] Gramsci. O meu trabalho foi sobre Lenin, teoria do partido. Então, esses autores são muito importantes, é muito importante conhecer, não ter medo de estudar. O conhecimento político é fundamental. A gente se preocupa muito quando colocam a política como uma coisa ruim pra juventude, e não, é necessário conhecer, estudar Platão, estudar a Filosofia Política, estudar a Teoria Política. Então, foi muito importante para mim esse curso de especialização. Eu parei, eu escrevi, eu li, eu fichei livros e isso faz uma diferença muito grande na formação. Então, não esqueçam isso, é muito importante a leitura, escrever, sabe? E pensar como isso é transformado, por exemplo, em artigos, em monografias, em TCCs, esses trabalhos acadêmicos.

Giovana: Como foi falado, o seu período ali, no movimento estudantil, foi de extrema importância na sua vida e, também, tendo ali participação significativa na sua jornada na educação. Durante esse período em que a senhora participou do movimento estudantil, qual o momento lhe marcou mais?

Dora: O movimento estudantil, ele foi muito importante de uma forma geral, mas eu acho que a minha gestão no DCE foi muito importante porque, assim, eu brinco que a gente não tinha paz um dia. Nós atuamos muito, então era uma militância muito aguerrida. Eu tive a sorte de ter uma diretoria, um grupo que fazia parte do DCE, muito atuante. E isso não era tão comum no movimento estudantil. No movimento estudantil, a gente tinha muitos militantes, mas, assim, era tanta coisa pra fazer que acabava um indo pra um lado, outro pro outro e era difícil uma gestão começar com uma diretoria e ir até o final. E eu tive esse privilégio. Tanto na minha gestão no C.A. de História, como na minha gestão no DCE. Então, isso é muito importante porque nós tínhamos uma sintonia muito grande, eu e o Paulinho, que era o presidente na época, e todos os outros militantes do DCE. Eu acho que isso foi muito relevante e, também, a minha militância no grupo de que eu fazia parte. Além do DCE, eu fazia parte de um grupo político que se chamava Juventude Caminhando, em homenagem à música do [Geraldo] Vandré, Pra Não Dizer Que Eu Não Falei das Flores. E a “Caminhando”, ela me preparava. Nós fazíamos muitas reuniões, nós fazíamos muitas discussões sobre a conjuntura nacional, sobre o movimento estudantil, então isso, de certa forma, trazia uma preparação muito grande pro estudante. A gente não ia pra uma assembleia, pegava o microfone e falava da nossa cabeça, a gente falava porque já tinha discutido, já tinha pensado, já tinha sido debatido em grupo no coletivo. Algumas pessoas se destacavam mais, elas apareciam mais, as pessoas têm características diferentes, algumas escrevem mais, algumas falam mais. Vocês sabem disso, entre vocês, vocês sabem disso. Tem gente que tem menos timidez, tem gente que é mais tímida. Isso é natural, isso é normal. No movimento estudantil também era assim. Então, alguns falavam com mais facilidade, pra frente. Alguns faziam articulações, alguns viajavam e tinham essa ligação nacional. E eu participei de muitas dessas questões. A Caminhando me fez conhecer o Brasil, conhecer outras pessoas, militar com outras pessoas, participar de reuniões de congresso… Isso enriqueceu muito a minha vida de ex-militante.

Guilherme: Professora, em uma homenagem à senhora, na ocasião de sua aposentadoria no IFCE, a senhora fala do seu desejo em desenvolver uma pesquisa de pós-doutorado, e a senhora menciona que um dos possíveis temas seria o tempo que a senhora passou dentro do movimento estudantil da Uece. E eu queria perguntar, agora, se esse é realmente o tema que a senhora está desenvolvendo no seu pós-doutorado na Universidade Federal da Bahia, a UFBA.

Dora: É, é exatamente isso. Há muito tempo que eu queria estudar o movimento estudantil da Uece. Primeiro, porque eu guardei muita coisa de historiadora. Eu fui guardando aquele material, né? Material que era distribuído, as notas, os programas de chapa. Esse material todo do movimento estudantil que, sobretudo no meu período, era muito intenso. Tudo virava uma nota, tudo era material escrito. Então esse material, eu guardei. E uma das vezes, quando eu voltei pra Fortaleza, esse material, eu fui selecionando, fui guardando de forma natural. Fui lá fazendo minhas pastinhas, aquelas pastas que todas nós temos. Hoje está tudo digitalizado, mas eu tinha nas pastas e aí tinha lá “DCE UECE”, “Movimento de Mulheres”, “Movimento de História”, e aí eu vi que aquilo ali era muito rico. E uma das vezes em que eu voltei, a traça tinha comido o material. Eu fiquei muito apavorada. Isso pra um historiador é um caos, né? E eu fiquei muito desesperada. Falei: “Esse material tem que ser digitalizado”. E consegui. Aos poucos, fui digitalizando, consegui uma aluna, uma bolsista, fui pagando, fui fazendo e fui guardando esse material. Quando eu fui fazer o doutorado na época, eu até tentei. Pensei em fazer, mas eu tava trabalhando com educação ambiental, acabei indo pra questão ambiental. Mas eu fiquei, eu guardei. Aquele sonho que você guarda. E aí, quando eu me aposentei, eu falei: “Agora eu vou fazer isso, eu vou fazer com pós-doutorado porque…”. Ter o pós-doutorado, ele é uma pesquisa, né? Então, você tem a liberdade de fazer a pesquisa da forma que você pensa. E aí eu cheguei à Universidade Federal da Bahia tenho uma ligação como eu falei pra vocês com a Bahia, por causa do IFBA. Eu passei um ano no IFBA, conheci uma professora que tinha feito um trabalho na Universidade Federal e me levou até o professor Maurício, Maurício Brito, que tinha feito um trabalho sobre o movimento estudantil nos anos 1960. O movimento estudantil no início dos anos 1960, não a juventude dos anos 1960 de “meia oito”. Não trabalhou essa geração. Trabalhou a geração anterior. E aí eu entrei em contato, falei e a gente já se deu superbem de imediato. Falei pra ele que eu queria escrever sobre a minha geração, falei que eu tinha um material. E eu estou, nesse momento, já faz quase um ano que eu tô trabalhando nisso, já fiz as entrevistas com todos os ex-presidentes do DCE da Uece durante os anos 1980 e estou agora entrevistando uma das principais correntes políticas desse período. Vou escrever um artigo. Devo terminar no fim do mês de julho agora. Tô superempolgada. Assim, foi um trabalho que eu esperei muito para fazer, é uma emoção muito grande. Cada entrevista que eu faço com os meus colegas, meus amigos, ex-militantes assim como eu, nós compartilhamos esse momento histórico tão importante. Então é uma alegria, é uma emoção e eu queria muito fazer isso e eu tô muito feliz porque eu tô escrevendo sobre a história do movimento estudantil na Uece nos anos 1980.

Victor: E fora do meio acadêmico, há quais projetos a senhora tem dedicado seu tempo?

Dora: Eu participo de um grupo chamado Emaús Terra e Luz, é um grupo de um professor da Uece também, né? O professor Pádua e vários outros estudantes de um movimento que trabalha com a questão ambiental, de reciclagem, de reaproveitamento. Então, como eu já trabalhei um pouco com a questão ambiental, eu fiquei feliz de ingressar nesse grupo e trabalhar essa questão. Continuo um pouco ligada ao Instituto Federal com a JAC ainda. Não me desliguei da JAC, eu me aposentei, mas eu continuo. Tô nesse movimento e por enquanto, assim, eu tô terminando o pós-doutorado. Quando eu terminar o pós-doutorado, eu vou pensar em como utilizar melhor meu tempo e como aproveitar o que eu aprendi tanto na universidade e no Instituto Federal. Quando eu acabar, vou trabalhar melhor com isso.

Giovana: Dora, a senhora é uma professora que possui lutas por uma educação pública de qualidade, libertadora e crítica. Como a senhora encara os ataques e a descredibilização que as instituições públicas de ensino recebem em nosso país?

Dora: Eu acho que é um dos momentos mais delicados da história da educação neste país. Da história do país como um todo e da história da educação. É muito triste. Eu, como educadora, fiquei muito surpresa quando eu fui vendo aos poucos alguns alunos serem contaminados por uma visão tão terrível da própria instituição pública, e eu estou falando de uma professora de instituição pública. Alunos que estão dentro de uma instituição pública. Então, quando você começa a ver algumas imagens ou algumas notícias que fazem tão mal para o ensino público no país, isso é muito triste. Eu acho que talvez para a geração de vocês e, voltando aí pra importância de vocês, para a importância da geração, isso é um grande desafio: mudar essa mentalidade e colocar, e trazer à tona a importância da escola pública. A escola pública é uma luta permanente na história da educação no Brasil. Nós vamos ter, somente nos anos de 1946 até 1964, um momento em que nós vamos ter algumas das lutas sendo ali conquistas. E muito agora bem recente, quando nós vamos ter algumas mudanças na escola com o ingresso de estudantes de origem pobre, alunos que vão precisar de bolsas, que vão ter bolsas. Então, isso era uma coisa muito recente e com todos esses ataques à educação, isso nós vamos perdendo. Então, esse momento atual é o momento em que nós perdemos recursos para a educação pública, momentos em que professores são negligenciados, são discriminados. Isso é muito triste para um professor, pra mim como professora. Quando eu vejo essas coisas aparecendo, é triste demais. Então, eu acredito que vai ser uma luta muito grande, a defesa intransigente de uma educação pública gratuita, de qualidade, libertadora. Mas isso é possível, no momento do coletivo, no momento da urbanização coletiva, no momento em que as pessoas se juntam, isso é possível. Sozinho não conquista nada. Mas, no coletivo, é necessário colocar para a situação, para a sociedade brasileira a importância de uma universidade federal. A UFC tem um papel fundamental na história do país, ela não é uma universidade do Ceará, é uma universidade que tem importância para o país. Da mesma forma, o instituto federal, os institutos federais no país. A mudança que aconteceu de um instituto federal que só existia nas capitais e, de repente, nós temos vários institutos federais em várias cidades do interior. De você ter uma Unilab [Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira], lá na cidade de Redenção. Essas instituições federais são fundamentais, porque uma escola pública é necessária por ser gratuita, porque nós vivemos numa sociedade em que nós não temos condições financeiras suficientes para todos. Então, ela é necessária ser gratuita e é pública, porque é uma instituição que traz pessoas de diferentes condições sociais, de diferentes religiões, de diferentes condições culturais. Isso é fundamental para a escola pública. Quando você tá numa escola que só tem um tipo de mentalidade, ou de religião, ou de pensamento cultural, ou filosófico, ou econômico, você vive numa bolha. A instituição pública se mistura na melhor situação, no melhor do que é você viver com pessoas que têm condições sociais, econômicas, culturais e religiosas diferentes. Isso é fundamental para o crescimento do ser humano, porque o respeito passa por esse conhecimento, quando você reconhece que o mundo não é só o teu, existem outros mundo e eles são bons e ruins. São outros mundos. Não são melhores nem piores do que o seu. São outros. E a instituição pública federal traz muito isso, a instituição pública, numa forma geral, e nós que fazemos parte de uma instituição federal, ela é fundamental para trazer esse mundo e trazer uma educação de qualidade.

Ryllery: Agora, pra finalizar, fazendo um apanhado geral da nossa conversa, com base em toda a sua vivência, que força a senhora considera que a educação pode ter na vida de um indivíduo?

Dora: Ela traz o conhecimento, a informação. E isso é suficiente? Não. Porque, infelizmente, tem pessoas que têm acesso ao conhecimento, acesso à informação e, mesmo assim, a gente vê que cometem coisas horríveis. Mas a educação transforma vidas. Quando nós falamos isso, não é uma frase de efeito. Ela transforma vidas. Eu passei todo esse meu tempo no Instituto Federal, eu vi pessoas se transformando através da educação, através da sua condição de técnico, de um ensino técnico, ou de um ensino tecnológico, ou, mais na frente, de uma licenciatura, porque o instituto também tem licenciatura. Então, quando você vê pessoas se transformando, transformando a sua vida com emprego, com empregabilidade, com condições materiais, com acesso à cultura, ao conhecimento, você tá numa instituição que propicia a você uma aula de campo, um documentário, um filme, isso é muito importante, gente. Isso é fundamental. Às vezes, o estudante não tem a ideia do impacto de um documentário. Então, como professor, como instituição, é muito importante esse acesso. Então, esse acesso transforma vidas. Esse acesso transforma o ser humano tanto materialmente — tô falando de condições materiais, de empregabilidade, como eu já falei — , como a condição de vida, de ser humano, do respeito, da tolerância, da igualdade, da fraternidade, de valores humanos que são tão fundamentais para a vida em sociedade.

--

--

Guilherme Siqueira
EntreFios - tecendo narrativas
0 Followers

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Ceará. Interessado em pautas internacionais do interesse comum. Apaixonado por fotografia e histórias humanas