Dos sonhos que sonhei

ezeq uiel
EntreFios - tecendo narrativas
4 min readApr 6, 2021

Ouvindo o som dos pássaros nos galhos da mangueira, sentada na sua antiga cadeira, Luiza Gonzaga conta as crônicas das memórias, das dificuldades e dos sonhos que, independentemente da idade, pôde realizar

Por Ezequiel Alves

Luiza Gonzaga / Imagem: Antonio Ezequiel

Nascida no interior do Ceará, na década de 1930, na região da Serra da Ibiapaba e filha de pais vindos do alto sertão, Luiza Gonzaga, com seus lindos 89 anos e com mais de 30 netos, nunca imaginaria realizar tantos sonhos depois de idosa.

Um de seus maiores sonhos, segundo ela, era aprender a ler e escrever. Na década de 1940, não era difícil encontrar pais que não deixassem suas filhas estudarem, o que não foi diferente com a jovem Luiza.

Ela conta que tinha muita vontade, desejava e sonhava em estudar, ler e escrever, mas embora seu irmão fosse mestre de escola, como o chama, e queria muito que ela estudasse, sua mãe não permitia. E, assim, ela conta que nem mesmo ela sabe como aprendeu, pois nunca teve nenhum professor.

Entre folhas velhas de jornais da época e retalhos de cadernos que ela encontrava nas estradas e guardava, contrariando os dilemas de sua época, ela aprendeu a ler e escrever, sozinha e com a ajuda de seu maior professor, Deus. “Eu me escondia e rezava, pedia a Deus que me ensinasse a ler e escrever. Nem eu sei contar direito como aprendi”.

A mais velha de sua localidade e a única viva de dez irmãos, dona Luiza conta: “[todos] foram morrendo, morrendo e por enquanto sou a mais velha daqui. […] Me sinto bem, às vezes eu penso: todas as mais velhas que eu já se foram”.

Com a idade que tem, ela me conta que, na sua juventude, tudo era tão diferente, mas, segundo ela, o tempo ia passando e ela teve que se acostumar com as mudanças e com tudo que via. “Acontece que a gente vai indo, e o jeito que tem é a gente se acostumar, e assim a vida passa”.

Entre tantas dificuldades — e foram muitas —, uma delas foi ter começado a trabalhar muito cedo, desde os oito anos, o que lhe impediu de ter uma infância de apenas brincadeira e diversão. Ia com seu pai para as plantações sobre um cavalo, junto às cargas que seu pai levava para o trabalho.

No entanto, ela conta que, depois de mais velha, pode desfrutar muito da vida e realizar muitos sonhos da Luiza mais jovem. Viajou quatro vezes para Brasília, entre as décadas de 1980 e 1990, onde visitou a torre de TV e outros lugares. Também foi quatro vezes São Paulo, onde realizou um de seus maiores sonhos de vida, que era visitar o Santuário de Nossa Senhora Aparecida. Fala, com muita satisfação, que, em 2019, aos 87 anos, realizou seu sonho de andar de avião. Olhando para o céu e apontando para os nevoeiros de fim de tarde, relembra que via os aviões e sonhava em um dia viajar neles e que, depois, pôde olhar de cima para baixo, da janela de um deles.

Outro sonho que a mãe de 12 filhos realizou foi ver o mar pela primeira vez, em 2018. Embora não tenha andado de barco ou de bondinho, que era um de seus sonhos, pôde sentir a maré e a areia fina da praia e colher várias conchinhas de lembrança, mesmo as ondas lhe dando medo, conta ela. Foram tantas dificuldades, muitas alegrias e sonhos realizados que não consegue se recordar de todas as datas. Em seu caderninho, que ela chama de meu diário, escrevia todas as suas memórias, tanto coisas boas como tristes, o qual ela sempre usava para se recordar dos momentos, mas acabou perdendo-o. Ela afirma, em meio a risadas, que acha que foi uma forma de esquecer do passado.

Ao conversar sobre os tempos sombrios que vivemos, dona Luiza conta que a pandemia de Covid-19 lhe deixou, como diz ela, “ainda mais velha e acabrunhada”. Como sempre gostou muito de passear, sair, ver as velhas amigas e almoçar na casa de suas filhas, está sendo um momento de muita tristeza.

“Quando não tem ninguém, fica tudo tão desanimado, fico triste, desanimada. Comparo a vida como algo que cada vez mais vai emborcando. As tardes se tornam tão compridas, desanimadas… Às vezes agradeço quando anoitece”. Mas como ela mesmo conta, “tudo de ruim que começa um dia acaba”.

Felizmente já vacinada, fala que não ficou com medo de jeito nenhum da vacina e quis, sim, receber o medicamento quando as enfermeiras lhe perguntaram, pois não adiantaria ter medo.

“Hoje eu já sou velha e cansada, mas, quando minha casa tem gente, tenho com quem conversar, não fico deprimida […]. Outra coisa: não tenho medo de morrer, um dia já tive, quando meus filhos estavam todos em casa, mas hoje, com todos já criados, não tenho mais”.

Com a pele frágil, mas com um coração forte e com olhos sempre brilhantes, ela me conta que o que lhe faz mais feliz hoje é sua família, seus filhos, seus netos, as tardes de visitas de suas filhas e os momentos de conversa, risadas e comemoração com seus familiares.

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ezeq uiel
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breves escritas com prazo grande de postagem entre elas. perdão pra quem lê, não ofereço nada alem do que tenho sido. pré-jornalista e pseudo-que escreve.