Estrelinha

Mesmo não estando mais viva para contar sua história, D’Maria merece ser lembrada sempre que possível pela mulher incrível que foi

Por Amanda Andrade

D’Maria ao lado de seu esposo, Gervanio, seu filho, Gervanio Filho e sua sobrinha, Amanda / Gervanio Filho

“Muda a foto da janelinha”. Talvez tenha sido essa a última frase que D’Maria Mesquita Barreto me mandou pelo WhatsApp. Ela tinha “abuso” porque eu raramente trocava minha foto de perfil no aplicativo de mensagem e, como nem ela, nem eu tínhamos outras redes sociais, D’Maria dependia da minha “foto da janelinha” para ver fotografias novas que eu viesse a tirar. Curiosamente, D’Maria não gostava muito de fotos suas. Suas “janelinhas” eram sempre frases de Jesus ou a foto da neta mais velha, Alycia.

Ela era — e ainda é, obviamente — minha tia. Mas não só mais uma tia em meio às sete que tenho. Ela era a “titia”, a única que eu chamava assim. Uma pessoa que, dolorosamente, não está mais aqui, entre nós, mas que teve uma trajetória digna de ser contada em um filme.

D’Maria é a filha número quatro de Maria Carneiro Mesquita e Gerardo Ovídio Mesquita. Nasceu no dia 26 de janeiro de 1974, em Itapajé, no interior do Ceará. Ela, no entanto, já morou em duas localidades bem distintas uma da outra: Baixa Grande, um distrito serrano da cidade em que nasceu; e São Paulo, o estado mais populoso do país e o lugar para onde sua mãe mandou todos os filhos a fim de passarem uma temporada “na cidade grande”.

Na infância e juventude, D’Maria era uma “moça quieta”. Gostava de ficar em casa, bordando e arrumando o lar. A motivação para manter a casa sempre limpa era, além de cumprir o que a mãe determinava, esperar os namorados que teve quando adolescente. D’Maria gostava de deixar a casa “um brinco” para quando seu amor chegasse. Era, no entanto, impossível conseguir essa proeza, morando com seus irmãos mais novos e implicantes, que sujavam o banheiro sempre perto da hora em que o namorado chegaria, frustrando a moça.

O último namorado para quem limpou a casa foi Gervanio Barreto. Gervanio era um homem trabalhador e um companheiro, mas bebia com frequência e, constantemente, sofria acidentes por pilotar alcoolizado. No entanto, ele era o grande amor da moça. Dois anos depois de começarem a namorar, Gervanio e D’Maria casaram-se e tiveram dois filhos: Gervanio Filho e Giovana. D’Maria e a família que construiu com seu casamento passaram por grandes dificuldades, mas também por grandes vitórias.

O casal sempre formava uma dupla, mesmo nos momentos mais difíceis. Juntos, construíram uma casa com um ponto de trabalho: Gervanio era caminhoneiro e fazia fretes para as empresas de material de construção da cidade; D’Maria era a mente pensante, que administrava o empreendimento, fazia as negociações, enquanto cuidava da casa, dos filhos e até da irmã que já era casada, mas muito apegada à irmã mais velha (essa é a minha mãe).

Mesmo com a boa administração feita pela esposa, Gervanio contraiu muitas dívidas. As contas imensas para pagar fizeram com que D’Maria e família tivessem que abrir mão da casa na qual moravam e mudarem-se para um terreno meio abandonado que o pai de Gervanio ofereceu e que contava apenas com uma casa de taipa cheia de ratos.

A dupla “mente pensante e mão-de-obra” que D’Maria e Gervanio formavam tornaram aquele terreno um novo empreendimento: a cerâmica de tijolos Santa-Fé. Fizeram aquele famoso “tirar dinheiro de onde não tem” e, em meio a percalços com trabalhadores, máquinas quebrando e ratos andando pelo teto, D’Maria e o marido fizeram da cerâmica um negócio rentável, que lhes proporcionou alguns bens ao longo dos anos — em especial uma casa.

D’Maria era muito apegada à família que construiu e constantemente lutava por ela, sendo trabalhando arduamente para prover sustento aos seus filhos, sendo frequentando a Igreja, pedindo a Deus que livrasse seu marido do vício. D’Maria sempre tinha um terço na mão e a Bíblia em outra, quando não estava ocupada lidando com as demandas da cerâmica. Suas atitudes deram frutos: a cerâmica fez sucesso, e Gervanio se livrou do alcoolismo, tornando-se “um homem da Igreja”.

A vida, no entanto, começou a apresentar problemas que foram tirando a paz e a saúde de D’Maria. Questões de saúde eram ignoradas por ela, que focava apenas no bem-estar da família. D’Maria, que não gostava de compartilhar suas dores com ninguém além de Deus, sofreu calada até não aguentar mais e dizer que estava doendo.

Sua angústia deu início quando Gervanio contraiu um tumor na perna. D’Maria chorava escondida dos filhos, para que eles não vissem que a mulher forte que ela era estava fraquejando. Depois de alguns dias com Gervanio internado e após muitos remédios, os médicos constataram que o tumor era benigno e apenas uma cirurgia de retirada seria a resolução definitiva. Um momento de alívio em meio ao caos.

Em seguida, veio a doença do pai. Seu Ovídio, um homem lúcido com seus mais de 80 anos, que adorava vender seus produtos da feira da cidade e tinha várias namoradas. Estava doente e ficava, aos poucos, dependente de alguém para fazer as pequenas coisas do dia a dia. D’Maria logo o acolheu em sua casa e, com a ajuda do marido e da irmã mais nova, cuidou de seu Ovídio até o último momento de sua vida. Ela sofreu com a doença e a morte do pai, enquanto ignorava suas próprias dores. Tudo isso em silêncio.

Até o dia em que disse “ai”. Uma das vezes foi comigo, no “emprego” que ela me deu. D’Maria me dava cinco reais para que eu fizesse prancha no cabelo dela. Mas eu tinha que ter muito cuidado, pois sua cabeça doía, embora ela não soubesse o porquê. Os “ai’s” tornaram-se mais frequentes, mas ela não contava para ninguém. Ela dizia sentir uma “gastura” muito grande no peito, uma vontade de vomitar a quase todo momento. Mesmo relutante de ir ao médico, D’Maria foi quase obrigada pela irmã mais nova a ir ao neurologista. Infelizmente, o resultado da visita ao especialista não constatou bons resultados: D’Maria tinha um tumor alojado ao lado do cérebro que estava grande e inchado, impossibilitando a retirada imediata.

D’Maria — ou, para mim, e apenas para mim, titia — faleceu no dia 25 de maio de 2019, duas semanas depois do Dia das Mães. Ela nos deixou aos 46 anos e não chegou a participar de momentos importantes para sua família. Infelizmente, a última lembrança que tenho da minha tia mais especial é um sorriso pequeno que ela dirigiu a mim, no único momento em que ficou lúcida no segundo domingo de maio de 2019. E, agora, sempre quando escuto a música “Estrelinha”, na voz de Marilia Mendonça, não contenho a vontade de olhar para o céu e procurar, mesmo pela manhã, o brilho da estrelinha da minha titia.

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