Inês Aparecida: disposição, simpatia e coragem para enfrentar e avançar

Jonh Hebert
EntreFios - tecendo narrativas
23 min readJul 6, 2023

Em entrevista ao EntreFios, a jornalista e podcaster fala sobre sua personalidade, influências, trajetória profissional, vivências e desafios no jornalismo

Por Francisco Apoliano, Guilherme Azevedo,
Jonh Hebert, Joziane Pontes,
Sara Raquel Araújo e Pedro Paiva

Inês Aparecida no estúdio de TV do curso de Jornalismo da UFC / Imagem: Robson Braga

Inês Aparecida esbanja carisma. Incansável, ela desbrava os turbulentos mares do Jornalismo há quase cinco décadas. De estagiária da editoria de Cidades, no antigo jornal Tribuna do Ceará, em Fortaleza, passando pela chefia da editoria de Política do jornal O Povo, até chegar às ondas sonoras dos podcasts com o fenômeno “As Cunhãs”. Por onde passou, sempre deixou sua marca.

Em entrevista concedida ao EntreFios em 22 de junho de 2023, Inês Aparecida revisita sua trajetória, apresentando as experiências que moldaram sua visão de mundo e sua maneira de “fazer jornalismo”. Durante a conversa, Inês narra algumas vivências que a marcaram, assim como também compartilha um pouco de suas habilidades e técnicas jornalísticas.

Nascida no Crato, cidade na região do Cariri cearense, a pequena Inês cresceu em um ambiente artístico e politizado, cercada pela literatura. Desde criança, a escrita sempre guardou um lugar especial em sua vida. Parecia como se o próprio destino lhe sussurrasse, desde cedo, segredos sobre seu futuro.

Mais do que uma profissional dedicada, Inês nos apresenta uma mulher genuinamente apaixonada por se importar com as coisas, com as pessoas e com o mundo ao seu redor. O que a marcou? Quem fez parte do seu crescimento? “O povo”, declara a jornalista, mergulhando nas experiências que a transformaram em quem é hoje.

Mas, além de sua conexão com as pessoas, Inês também nos permite vislumbrar outros aspectos de sua personalidade. Sua coragem ao enfrentar situações inusitadas, sua habilidade de improvisar quando necessário e seu jogo de cintura para lidar com políticos e fontes complexas revelam uma mulher resiliente e determinada.

Confira a entrevista em vídeo e a transcrição logo a seguir.

Sara Raquel: A gente acabou de apresentar algumas informações sobre você, mas também queremos saber de que modo você mesma se define. Afinal, quem é a Inês Aparecida?

Inês Aparecida: Ah, eu sou eu. Uma pessoa comum. Agora assim… Sou uma pessoa chorona, sensível, às vezes eu sou muito… Tenho uma instabilidade um pouco emocional, não chego a ser bipolar, não, mas é… (risos). Acho que sou uma pessoa normal, que sinto as coisas, que fico indignada com certas coisas. Outro dia eu escutei um jornalista dizendo — o PC Vasconcelos, sobre a vida dele, naquele podcast Vida de Jornalista — que jornalista é uma pessoa que tem que se importar com as coisas. E eu vou roubar isso pra mim. Eu acho que eu me importo com as coisas, tá entendendo? Com as pessoas, com as coisas que acontecem no mundo. Acho que eu sou assim. Me gabei?

Francisco Apoliano: Bom, Inês, dentro dessa perspectiva de construção de quem é a Inês, como você avalia a família? Porque a gente sabe que a família forma uma boa parte de quem nós somos. Então, para você, quais foram as pessoas da sua família — sanguíneas ou não — que você acha que formou quem é a Inês Aparecida?

Inês Aparecida: Tá aí, agora eu me lembrei. Tu falando e eu me lembrando. Eu realmente tive a sorte de nascer numa família, primeiro, que gostava muito de leitura, certo? Muito. Eu tive um tio, que ele era médico e escrevia em jornal também. Era “articulista” que chamava, não era propriamente um jornalista de redação, mas ele era médico e escrevia. A minha mãe também era e passou muito tempo lá, [onde] eu nasci em Crato, ela dava aula de declamação. Ou seja, também cresci vendo poesia, sabe? Ouvindo e tal. O papai era advogado, mas, quando ele foi fazer faculdade aqui, na UFC, ele já tinha 42 anos ou era 43, porque ele trabalhava muito. Aí ele disse: “Poxa, agora eu vou estudar”. Aí, quando ele tinha quarenta e tantos anos, ele fez Direito, também novamente convivendo com livros, e ele estudou em seminário, dizendo o papai que não era para ser padre, não. É porque a mãe dele era viúva pobre, e estudar no seminário era de graça, lá em Sobral. E ele sabia muito português, demais, ave maria. Vírgula… Quando [eu] mostrava as coisas a ele, ele sempre arranjava defeito, logo que eu comecei. Aí eu cresci, mas eu achei legal. Eu cresci nesse meio. E também a questão política. Esse meu tio que eu falei foi candidato a deputado uma vez, e lá no Crato ele também, mesmo sem ter negócio de mandato nem nada, era um ponto em que passavam todos os candidatos. Eu me lembro pequena, eu me lembro de candidatos a presidentes na casa do meu tio. Eu já ficava ligadona. Nunca me esqueço da passagem, na casa dele, do Jânio Quadros [presidente do Brasil em 1961], quando eu era pequena. O Jânio Quadros foi um que passou só sete meses na presidência, renunciou. Um todo doidão, dos óculos fundo de garrafa. Pois eu me lembro. Lembro do general Lott [marechal Teixeira Lott foi ministro de Guerra do presidente Café Filho, em 1954, e concorreu à presidência da República nas eleições de 1960, concorrendo com Jânio Quadros]. Sabe, eu também já convivia muito com política e com livros. Sempre gostei. Sempre vivi nisso e me despertou o gosto por ler e [por] política, desde pequena.

Francisco Apoliano: Nesse sentido de família ainda, você é filha única, conforme você falou no podcast Vida de Jornalista e tudo mais. E aí, nessa questão, o seu pai, o senhor Edson, tinha o interesse que você fosse ou dentista, ou advogada, mas você escolheu ser jornalista. Por que o jornalismo? Por que escolher ser jornalista entre essas opções?

Inês Aparecida: Como eu falei, acho que tu escutou o Vida de Jornalista, eu sempre gostei de escrever, sempre. Aí eu já fazia [disso um] meio de vida, criatura, escrevendo no colégio. As meninas não sabiam… Tem gente que não gosta de escrever, né? Tem gente que não tem jeito. Aí, quando tinha aquelas redações, principalmente “A volta das férias”, que era inevitável e sempre tinha essa redação quando a gente voltava das férias: “Como foi suas férias?”. Aí as meninas: “Ai, que saco!”. Menina, me dá que eu escrevo. Pediam para eu escrever. Aí eu faço. Eu ganhava ficha de merenda, já fazia [disso um] meio de vida. E foi isso, sempre gostei de escrever, não sei se [era porque] eu gostava muito de ler. Eu sempre gostei de escrever, sempre. E gostava também de contar as coisas, que eu acho que jornalismo é isso: você ver e contar. Conte bem direitinho, mas conte. Acho que foi por isso. Não, advogada eu não queria ser, não, Deus me livre! Dentista? Ave maria. Não, dentista quero não, nem advogada. “Não, primeiro você faz um concurso para juiz e fica morando no interior”, num sei o quê. Não, quero não. “Obrigado, papai, viu? Deixe que eu vou fazer jornalismo”. Aí ele dizia era muito: “Não foi opção, não, foi eliminação das outras, aí sobrou o jornalismo”. Não, papai, eu sempre gostei mesmo. Sempre gostei (risos).

Jonh Hebert: Inês, ao podcast Vida de Jornalista, você contou que, no ano de 1972, você quase foi autuada no Decreto de Subversão Estudantil. Dentro desse contexto de ditadura militar, qual eram as suas expectativas como estudante de jornalismo dentro da Universidade Federal do Ceará? Você tinha alguma noção do que viria a enfrentar durante essa sua passagem pela faculdade?

Inês Aparecida: Sim, porque a gente vivia… Estudante principalmente, porque estudante, você sabe, sempre é o que está na linha de frente nos protestos. Eu vivi muito essa essa época, e a gente sabia que, quando fosse para o mercado, ainda era censurada. Isso aí a gente já sabia. Não sei se era muito, já tinha normalizado, sei lá. A gente já sabia que ia ser assim, já ficava pensando como é que ia driblar. E o tal desse decreto, que o pessoal chamava de “AI-5 dos estudantes e dos professores”, que também enquadrava professor, funcionários das universidades [considerado o mais duro dos 17 atos institucionais da ditadura militar, o AI-5 foi instituído pelo ditador Costa e Silva em 1968, resultando na perda de mandatos parlamentares e em intervenções federais em estados e municípios, além de suspender direitos constitucionais, o que intensificou, por exemplo, o uso da tortura contra opositores]. E eu sem saber nem que estava sendo indiciada, sei lá como é que se chama. Aí um professor me chamou, perguntou. “Você que é a Inês Aparecida?”. Eu disse: “Sou”. Ele era da Faculdade de Direito, mas ensinava no Básico também. Aí ele disse: “Olha, pois seu nome está lá para ser enquadrado no 477”. “Valha, eu? O que foi que eu fiz?”. Nunca peguei em armas, nem gosto. Aí ele disse: “Não, é porque aqui, no âmbito da universidade, você…”. E tinha outro amigo meu também, depois ele foi fazer medicina. A gente fazia paródias, menino. Era o que a gente fazia. A subversão da gente era cantar, porque, nessa época, o ministro da Educação [de 1969 a 1974] era Jarbas Passarinho, o nome dele. Foi ele que inventou esse tal de Básico. A gente fazia o vestibular, aí ficava seis meses estudando tudo. Eu estudei biologia, meu povo, cortei sapo, cortei não, porque eu não queria pegar no sapo. Mas eu fiz biologia. O pessoal que ia para a área de saúde estudava Ciências Jurídicas e Sociais, olha a arrumação. Foi seis meses nisso, aí a gente detonava o ministro. Aí a gente fazia música, fazia umas paródias lá e aí foi por isso, porque isso era subversivo. E inventaram coisa. Disseram que lá, no dossiê, tinha mais coisa ainda comigo, coisa que eu nunca nem imaginei, digo: “Eu fiz isso?”. Pois era desse jeito, cismaram, não tinha esse negócio, não…

Joziane Pontes: Bom, Inês. Estamos falando sobre a sua faculdade. E aí eu fui fazer uma pesquisa sobre jornalistas mulheres de forma geral e encontrei o relatório da Abraji, que é a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, que fez um relatório em 2021. Nesse relatório, eles dizem que foram verificados 119 casos de violência contra jornalistas mulheres, e violência de gênero de forma geral. Eu queria saber: quando você entrou na faculdade, nos seus primeiros anos, e também no início da sua carreira, você se deparou com algum tipo de violência por ser mulher, algum tipo de realidade de machismo? Algum episódio que te marcou nesse início?

Inês Aparecida: Machismo sempre tem, né? Acho que não vai acabar tão cedo, infelizmente. Apesar de tanta, tanta luta de nós, mulheres, até encontramos também alguns homens ajudando nessa luta. Machismo sim, principalmente porque, na área de política, mulher fazendo política… Tá entendendo? Aí ficava de piadinha e enchimento de saco. Violência, eu sofri. Foi engraçado. Eu trabalhava no jornal O Povo e fui cobrir uma… Nesse tempo, eu nem fazia [editoria de] Política ainda, fazia [editoria de] Cidade. A gente chama de Cidades, editoria de Cidades. Não sei nem como é que se chama hoje. Editoria Geral? E eu ia cobrir uma coisa no centro da cidade e, quando eu cheguei lá, eu e o fotógrafo, meu fotógrafo, que era o Mauri Mello, lá do jornal, a gente viu um soldado, um PM, batendo no rapaz, menino, e o rapaz sentado no chão, encostado na parede, e eles lá maltratando. Aí eu cheguei — não era nem essa matéria que eu ia cobrir, ia cobrir outra coisa, era a mudança de um bar ou coisa assim. Aí eu digo: “O que é isso? O que tá acontecendo aqui?”. Metida, né? Aí ele: “Não é da sua conta”. Eu digo: “É, sim. Mauri, fotografa aí”. Menina, foi um auê! Primeiro que o soldado veio lá e puxou a máquina do Mauri. Mauri tinha uma máquina com o cordão aqui de ferro, aço, sabe? Não era cordão, nem couro, nem tecido. Ficou com marca roxa que puxou a máquina para tirar o filme. Ainda era filme. Aí eu disse assim: “O que é isso?”. Aí eu fiz assim [simula que está acumulando saliva], juntei cuspe aí [simula cuspida] cuspi nos pés do soldado. Óia, tem juízo não, né, a póbi. Aí ele me pegou com um cassetete bem aqui, e disse assim: “Desacato à autoridade!”. Aí eu disse: “Que autoridade?”. Foi pior, cuspi de novo. Menina… Fui presa, detida. Não tem na rua as guaritas da PM que ficam, às vezes, eles lá em cima olhando? Pois, menina, botaram a mim e ao Mauri nessa guarita e ele me cutucando com esse cassetete. Menina, fiquei com isso aqui [aponta para o corpo] roxo foi tempo, certo? Só porque eu disse isso. Tudo bem que foi chato, eu cuspi nos pés do homem. Marminino, ele torturando o pobre do rapaz. Suspeitou que o rapaz tinha roubado alguma coisa lá na rua. Pobre, só porque era pobre. Eu me lembro que esse rapaz nem era preto, era só pobre, né? Porque, se fosse preto, aí eu acho que tinha era morrido. Aí eu fiquei lá detida. Agora, o pior que eu achei não foi nem isso aí, não, foi depois. Sim, o motorista da gente, do carro do Jornal, viu a confusão e foi avisar no jornal… Eu tive mais raiva foi que o editor, na época, ficou foi fazendo conluio com a PM. A PM pediu para não divulgar, isso era começo de 1980, os anos 1980, ou seja, ditadura… Eu acho que era 1982. [Pediu] pra não divulgar nada. Quer dizer, eu apanhei na rua, nós ficamos detidos e o jornal, porque entrou em acordo com a polícia e o secretário de Segurança, pediu ao editor. O editor nem era daqui, do Ceará. E ele. Eu sempre esqueço o nome dele, era um carioca. Era o editor geral. Pois foi, além da gente apanhar, fiquei doente, de estresse. Mas foi, assim, legal, eu assim presa lá na guarita. Nesse tempo, eu fumava, [então] eu [disse]: “Ah, que vontade de fumar”. Menina, quando eu olho a multidão, tudo com o cigarro na mão (risos). Se eu fosse juntar o que era de cigarro, eu acho que dava bem umas três carteiras (risos). Foi ótimo. Ah, o povo fica do lado da gente, né? Claro que fica contra a polícia. E foi essa violência.

Depois teve uma na Base Aérea também. Houve um acidente em que um caminhão dos bombeiros bateu no avião dentro da Base Aérea e ficamos detidos lá. Só fui sair porque o meu marido da época era bem doidão. [Ele] entrou na Base Áerea, acho que ele quebrou o portão. Não sei como ele não ficou foi preso também. Me deram uma injeção — fiquei com o braço dessa altura [posiciona a mão esquerda em formato de concha ao redor do braço direito] — para eu adormecer. Pois eu não adormeci e eu durmo com qualquer besteira. Se você me mostrasse um Dorflex, eu já tava dormindo. Acho que foi a tensão, tão grande. Pois eles me deram injeção, fiquei com o braço desse tamanho [gesticulando novamente]. Olha, olha aí, o que foi?! Porque não era pra divulgar que, na Base Aérea, teve um erro de segurança. O caminhão do Corpo de Bombeiros, que era um caminhão justamente que ia demonstrar como apagar um incêndio, um caminhão todo bacana e eu estava nesse caminhão. Por quê? Porque cheguei atrasada ao jornal. Estava voltando de uma licença-maternidade das minhas gêmeas. Aí eu entrei num táxi. [Mas] táxi não podia entrar de jeito nenhum na Base Aérea, peguei carona com o bendito caminhão, e o cara lá [gesticula imitando o motorista]. E aí veio um avião lá dentro da Base Áerea e bateu no caminhão. Aí o que foi que eles fizeram? Ficaram prendendo a gente lá dentro. Pra quê? Para não dizer que era militar, né? Os “milicos” do tempo da ditadura. Pra não dizer que teve um erro de segurança. É isso aí, esses machismos e essas coisas, principalmente na política. Tinham essas besteiras. E aí [tem] cantada, assédio… Aqui [no Brasil], eles [políticos] acham que jornalista… Será que tá escrito aqui [aponta para a própria testa] “puta”? Não sei… E político, ô bicho para gostar de assediar o povo. Pense num povo, sabe? Sei lá… Eu tirava de letra, fazia vergonha a eles. Ficavam tudo assim [encolhe-se na cadeira]. Não é fácil, a gente sofre…

Sara Raquel: Inês, vamos falar agora sobre o início da sua trajetória profissional? A sua formação na UFC foi no ano de 1976. Você poderia fazer um paralelo entre sua experiência enquanto jornalista recém-formada com os desafios que os futuros comunicadores irão encontrar hoje?

Inês Aparecida: Rapaz, eu acho que é diferente, né? Os desafios são diferentes. Naquele tempo, o nosso desafio… Eu terminei em 1976, mas em 1975 já estava no mercado porque, naquele tempo, era obrigado a fazer um estágio. Ainda é obrigado fazer o estágio? E lá eu fiquei nesse estágio. Durou sete anos. Fiquei, me formei e fiquei lá nesse jornal. Nesse tempo, era a Tribuna do Ceará. Hoje, vocês não vão enfrentar, o pessoal que vai pro mercado vai ter a facilidade danada de comunicação, né? Ora, se eu ainda fui do tempo do telex [anterior ao fax, era uma espécie de máquina de datilografar conectada a uma rede telefônica que enviava mensagens escritas de um terminal a outro]. Agora, se tu me perguntar como é que era, eu não me lembro mais. Eu gosto de esquecer das coisas velhas. Ora, eu fui fazer uma cobertura em Brasília da votação da emenda das Diretas Já, a emenda Dante de Oliveira. Com telefone, telefone fixo, enfiado. Olha, era um pavor.

Além dessas questões técnicas que a gente tinha, tudo [era] difícil, tinha a questão da ditadura, da censura. A gente podia até estar morrendo de entrevistar. “Onde que vai sair?” [simula que está perguntando ao editor]. “No cesto do lixo” [respondendo à pergunta]. Então tinha esse problema. O problema da falta [de informação] era demais. Já pensou hoje? Você pega, vai ali num Google. Lembro demais que eu fui entrevistar o governador Virgílio Távora. Eu tinha um ano de formada, talvez até menos. Era [sobre] contrato de risco, o negócio que era para perguntar, da Petrobras… Se fosse hoje? Google: o contrato de risco, o que é? Aí nada, menina. A gente tinha que ficar perguntando a outra pessoa que soubesse mais do que a gente. Não tinha. Ainda tinha essa dificuldade de você não ter como pesquisar nada. Agora, hoje em dia eu acho que a facilidade facilitou tanto que o jornalista — eu vejo assim, em muitos casos —, os mais jovens perderam aquele sentido, aquela vontade, aquela garra de apurar, sabe? É um negócio tão fácil… Assim, fácil que perdeu a graça, eu acho. Eu fico às vezes vendo as notícias, e meu Deus. Nada, não disse nada a criatura, nada, está entendendo? Porque eu acho que não apurou, viu ali, deu um aperto ali no celular… Perdeu essa vontade de apurar, de pesquisar, de aprofundar as coisas. Eu acho que precisa voltar a essa garra de se interessar por coisas e se importar com as coisas. Enfim, fez-me entender? (risos)

Joziane Pontes: Inês, você falou que cobria [a editoria de] Cidades no início da sua carreira, né? Também entrevistou governadores. Eu gostaria de saber, entre essas pautas no início da sua carreira, se tem alguma que te marcou, que te construiu, para quem você é hoje, que deixou uma marca que fez você mudar seu jeito de pensar?

Inês Aparecida: Menina, a pessoa, às vezes, quando pergunta essas coisas, “quem foi que marcou?”, aí a pessoa diz: “Entrevistei não sei quem, não sei quem”. Não. Tu sabe o que foi que me fez mudar muito a visão das coisas do mundo? Foi esse tempo que eu passei na editoria de Cidade. Inclusive, eu acho que é uma boa escola. Passei [muito] tempo, menino, eu rodava essa Fortaleza toda. Os bairros, pra cima e pra baixo, sabe? Vendo o povo. Tinha meninos lá na comunicação que eu dizia assim: “Só conhece da [avenida] Barão de Studart pra lá”, ali na Regional II [refere-se à área considerada “nobre” de Fortaleza, na zona leste da cidade]. Nesse tempo, não tinha negócio de regional, não [divisão administrativa da cidade, até 2020, em seis regionais; atualmente, em 12]. Menino, eu digo: “Este povo precisa conhecer da [avenida] Dom Manoel pra trás, pra ali, os bairros” [da periferia]. Não conheciam, sabe?

Eu acho que eu mudei minha visão foi fazendo Cidade, entrevistando o povo, escutando essas reivindicações e manifestações no meio da rua. Me lembro demais do Inácio Arruda [político do PCdoB], depois foi deputado, vereador, senador… E depois se candidatou para prefeito, ele era da Federação de Bairros e Favelas. Ele ia muito lá no jornal. Com aquelas reivindicações de bairros e favelas, sabe? Eu acho que é uma escola, viu, é uma escola. Acho que mudei minha vida foi aí, não foi entrevistando fulano, governador, presidente. Não, foi não, foi fazendo o dia a dia mesmo.

Jonh Hebert: Inês, da mesma maneira como essa experiência na editoria de Cidades marcou a sua carreira, você poderia nos dar um exemplo de alguma ocasião em que você precisou utilizar do seu jogo de cintura para sair de uma situação inusitada? Ou melhorando a pergunta: alguma situação em que você teve que improvisar para entregar o que o seu editor estava esperando de você?

Inês Aparecida: Rapaz, uma vez eu fui fazer uma entrevista, era numa cidade perto daqui. Não sei se era Acopiara ou Aracoiaba, que é mais perto, aqui. Aí era uma senhora que ela era vítima de um erro médico, mas ela não queria dizer de jeito nenhum, nada. Não queria ser entrevistada. Pois, menino, eu fiquei conversando com ela sem anotar um dado, nada, nada. Era assim, como se fosse conversando. Pois eu não decorei tudinho? O nome, o que era, tudo. Tive que decorar as coisas que ela estava dizendo porque ela não queria [ser entrevistada] de jeito nenhum. Mas aí depois a gente convenceu. Claro que eu não fui fazer um texto à revelia da mulher. Depois a gente falou com ela, dizendo que não tinha problema. Pois foi, eu me lembro disso. “Valha, tomara que chegue logo na redação, senão me esqueço”. Se eu beber água aqui, desce (risos). Pois foi, eu me lembro disso, dessa senhora. Parece que tinham deixado uma tesoura dentro da barriga dela. Mas ela, ave maria, um medo. Hoje em dia tem muito mais recurso, muito mais leis que protegem as pessoas. Nesse tempo… E ela era assim, mais do interior, uma pessoa mais simples, acho que ela também tinha muito medo. Me lembro disso. Decorei tudo, tudo, tudo, tudo, no hospital, tudo! (risos). Foi engraçado, foi engraçado.

Francisco Apoliano: Então, Inês, você falou um pouco que já trabalhou com diversos políticos, de presidente da República a vereadores, e essa área da política é uma área relativamente delicada, porque lida com assuntos que muitas vezes o parlamentar não quer tornar público. Quais as técnicas que você desenvolveu para trabalhar diretamente com os políticos? Nessa área do jornalismo político, as técnicas, as manhas…

Inês Aparecida: A gente tem [algumas manhas]. Primeiro tem que ganhar a confiança da fonte, né? É um perigo. Você [não] pode ficar muito amigo do político. Não pode ficar muito amigo que acaba também interferindo. E tem que manter uma relação, e isso é bem difícil. Você ganhar a confiança da pessoa também sem ficar… carne e unha. Para quê? Não precisa, mas tem gente que fica. Tem gente que eu conheço, jornalista de política, menino, mais importante que o senador, que fica se achando porque é amigo de politico. Não precisa ficar no meio. Principalmente porque eles não são amigos da gente, dos jornalistas. Eles têm interesses. Eu me lembro, eu editora de política do jornal O Povo. Menino, era assim: uma puxada de saco… Aí eu ficava pensando: se eu me iludir que isso aqui é amizade… não é, não. No dia que eu deixar esse cargo… Nesse tempo, o jornal ainda era… Assim [gesticula com a mão, indicando algo de estatura elevada] no alto dos prestígios o jornal. Porque hoje em dia até caiu foi muito… Tantas coisas, outras mídias…

Mas era assim [gesticulando com as mãos, indicando grandeza] pesado, queria que tu visse. Presente? Ave maria, ficava com o maior abuso… Aí a gente não deve ficar assim [gesticula com os dedos sugerindo proximidade]… Amicíssimo. Mas deve ganhar a confiança. Aí você tem muitas maneiras. Aí você fica pensando: não é uma coisa fixa, não tem uma regra, não. Você vai conversando, primeiro relaxe o cara, converse… Aí depois craw! Pergunta o que você quer perguntar. E raramente eles me respondem, a maioria das vezes não [respondem]. Você pergunta assim: “Deputado, prefeito, você desviou verba tal?”. Ninguém vai perguntar assim, porque ele vai responder assim: “Eu? não. Eu sou inocente”. Não tem uma coisa que eu possa dizer “faça assim, assim e assado”. Não! Faça não! Não tem. Tem jeito… Agora eles se zangam…

Eu me lembro que o Mauro Benevides [deputado federal pelo PDT desde 2019 e deputado estadual de 1991 a 2014] ficou com tanta raiva de mim, aquele senhor que hoje já tem oitenta e tantos anos, ele nega a idade. Sim, ele estava em Brasília quando o Tasso Jereissati era governador, mas estava sendo cotado para ser ministro da Fazenda. Nesse tempo, Tasso era do MDB. Mauro Benevides, MDB. Ele era um cacique do partido. Aí eu fui para Brasília cobrir, ver se o Tasso ia ser, podia ser, naquele dia ele podia ser anunciado como ministro da Fazenda. Eu chego lá no Congresso, menino… Era esse Mauro Benevides no telefone do gabinete dele, derrubando o serviço do Tasso. Tu acredita? Eu: valha, o homem é do mesmo partido — eu ainda meio inocente — e não quer que o Tasso seja o ministro da Fazenda? Mas não era, não. É porque ele [Mauro Benevides] já estava pensando que o Tasso [na condição de] ministro da Fazenda ia ficar o donão do MDB. Ele ia perder o prestígio dentro do partido. Pois, menino, ele, o Ulisses Guimarães, Deus o tenha, que morreu naquele desastre de avião, nunca acharam o corpo… Então, os caciquezões do MDB derrubando o serviço do Tasso. Aí eu: pam! Escrevi. Eu estava lá para cobrir e disse: “O que eu vi foi isso”. Eu fiz a notícia, que o Tasso nem foi indicado. E fiz um artigo assinado, dizendo, mostrando no comentário que tinha visto isso. O Mauro Benevides passou o dia todinho [imita uso de telefone com as mãos]. Menina, ele ficou com ódio, ligou pra mim. Era telefone fixo.

- Sim, doutor Mauro, eu menti? [simulando uma ligação]

- Mas não era para dizer [engrossa a voz, imitando o político]

- Como não era para dizer? Eu não menti, de jeito nenhum. O senhor poderia reclamar se eu tivesse mentindo, o senhor fez o que está escrito aí [Inês volta a retrucar o político]

Gostam não. Quando falam as verdades, eles não gostam, não. Problema deles.

Sara Raquel: Inês, dadas as transformações nas últimas décadas, a relação entre as pessoas e a informação mudaram. Um dos exemplos é a disseminação de notícias falsas, que podemos dizer, inclusive, que foi muito expressivo na política. Na sua opinião, como o jornalismo deve enfrentar esses desafios?

Inês Aparecida: Deixa eu só voltar, porque parece que apareceu esse negócio de fake news agora. Só não tinha esse nome, mas antigamente também tinha. Eu me lembro de uma cena engraçada. Tudo impresso, porque não tinha rede social, mas tinha mentira. Pronto, você voltando — quem quiser estudar história —, voltando para a época da pré-revolução, 1963, 1962… Antes do golpe militar, na ditadura, tinha muita mentira! Cada discurso… E era tudo escrito no jornal como se fosse verdade, mas era fake news. É porque não tinha esse nome. Carlos Lacerda mentia demais. Se vocês forem atrás, vão ver. Aí, voltando um pouquinho mais pra cá, eu me lembro de uma [história] engraçada. Paulo Lustosa, que foi candidato a governador e foi deputado federal. Ele fez um panfletinho desse tamanho, chamando o Paes de Andrade, que também foi deputado federal e tal, candidato a prefeito de Fortaleza, chamando ele de “Paesgriça”. Mulher, era uma árvore com uma preguiça enrolada. Uma preguiça, o bicho preguiça, só que a cara era o Paes de Andrade. Aí era o “Paesgriça” e também era fake news. Eram essas coisas ridículas que hoje tem, principalmente da extrema direita que bota nas redes sociais, no Instagram. Mas tinha também essas coisas. Sim, o que é que a gente faz para combater. Só com educação. Com educação, desde a escola, mostrando como é que se faz a notícia mesmo e educando as pessoas. Porque o nosso povo acredita em tudo. Se você disser “passou o boi gordo aqui”, muita gente vai e acredita. Muita gente [acredita].

Acho que, fazendo um bom jornalismo, o bom jornalismo serve para combater. Eu não sei de onde era essa pesquisa, mas foi no tempo da pandemia [de covid-19], dizendo que as pessoas estavam procurando se informar sobre a covid na imprensa tradicional. Aumentou muito o percentual que se informa na imprensa tradicional. Aí eu acho [que] é isso: vamos fazer um bom jornalismo para combater isso daí. E também educação, não custa nada para os meninos estudarem nas escolas: “Ó, meninos, é assim a notícia”. Informar as pessoas como é a diferença também. Tem umas pessoas que nunca vão acreditar? Tem! O meu vizinho… Tenho um vizinho que ele não acredita. Aí você tem que mostrar como é, o que é, “olha isso”, “é aquilo”. E a imprensa… Às vezes, eu fico pensando, [a imprensa] local leva para entrevistar umas coisas sem noção, criatura! Como é que pode?

Uma vez, eu disse aqui, para um produtor de uma rádio daqui de Fortaleza: “Rapaz, não me chama para ir para esses debates, não, porque eu não vou mais, não. Não me chame! Vai me botar para debater com uma pessoa que acredita em terra plana, debater com uma pessoa que acredita que a vacina tem o DNA, num sei o quê da maconha. Tu não tá vendo que eu não vou?”. Aí eu acho que a imprensa, essa imprensa tradicional, também tem culpa. Pra que levar um desgraçado que fica falando em terra plana? Não! Tá errado. “Não, tem que ouvir os dois lados” [fala com voz grave]. Que dois lados? Tem que ouvir o lado da mentira? Tu tá entendendo o que eu estou dizendo? É a própria imprensa, essa imprensa tradicional, que eu chamo de “grande imprensa” entre aspas, mangando, [que] alimenta, leva uns idiotas desses para falar. Até que teve uma vez que eu tive uma raiva tão grande que eu fiquei em tempo de matar. Ainda bem que era virtual, a entrevista, ainda estava na pandemia, não dava para eu dar uns cascudos na cabeça do outro. Mas eu acho que isso é errado, alimentar, tá entendendo? [Existem] dois lados, vamos ouvir os dois lados. “Ah, o Francisco não atenta”, aí ele tem direito de ser ouvido. Mas você alimentar uma coisa que todo mundo sabe que é mentira, não. Vai para lá. Dar espaço para esse Giroquina? Giroquina que eu chamo é o senador Eduardo Girão [Partido Novo-CE, apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro], que é a mistura de Girão com cloroquina. Ficar dando espaço para uns idiotas desses? Não. Eu acho também que isso aí é outra coisa que devia ser combatida na imprensa nacional. Não, não vou dar espaço para uma pessoa que tem o pensamento totalmente equivocado, contra a ciência. Não, não dá. Eu acho isso.

Joziane Pontes: Inês, nessa perspectiva de falar sobre assuntos mais delicados, como política, aquele relatório da Abraji que fala sobre violência a jornalistas diz que, em 2021, essas violências aconteceram a jornalistas que em sua maioria cobriam política. Eu queria saber de você nessa perspectiva de falar de coisas delicadas. Teve alguma situação em que você obteve algum off em que você tinha a informação e foi coagida mais veemente a não divulgar? Uma situação que foi mais corpo a corpo, mais presente para [coagir] você [para] não dar a informação?

Inês Aparecida: Não. Assim coagida, não. Tem a época da censura grande, no tempo da ditadura, que a gente já sabia. “Não, isso aí não bota, não”, [isso ocorria] dentro do jornal. Porque [o jornal] já sabia que os órgãos de segurança iam censurar. Mas o pior que tinha era a própria censura dentro do jornal, que geralmente tinha sempre um chefezinho, um editorzinho que queria ser mais real do que o rei, sabe? Já ficava: “Vixe, vai sair isso não”. Rapaz, deixa isso aí, não sabe nem se vão censurar… “Não vamos botar isso, não!”

Eu tinha um abuso disso, porque era pior do que a censura lá de fora. E quanto a essa história da violência contra o jornalismo político, às jornalistas ou aos jornalistas. É assim notório, está a olhos vistos quando foi que começou, quando aumentou isso. [Foi justamente] no tempo em que essa extrema direita ficou aí assanhada. Esses quatro anos do coisa ruim, vou dizer o nome, Bolsonaro. Eu tenho horror a esse nome, a minha boca dói para dizer. Os quatro anos dele, pode reparar, quantos casos de ignorância, de violência, [partindo] dele próprio, que era presidente, dos filhos contra os jornalistas. Insuflando ainda mais. Insuflando a galera quando ele ficava entrando naquele cercadinho, aquela coisa horrorosa. Outra coisa errada que eu acho da imprensa. Para que cobrir aquilo? Ficavam jornalistas de plantão, dessa tal de grande imprensa, para olhar os esparros que aquele homem dava ali naquele cercado. Acho erradíssimo isso. Então, ele fomentou isso aí, fomentou demais o povo da rua. O povo da rua agredindo jornalista. Por quê? Porque eles tinham o exemplo lá do cramunhão [Bolsonaro], tá entendendo? Essa parte aí foi muito isso. Eu não vi o povo, a população ficar contra o jornalista nem no tempo da ditadura. O povo não ficava, não [contra os jornalistas]. A gente [imprensa] tinha a censura dos órgãos censores, da Polícia Federal, que censurava os veículos de comunicação. Mas, como é… Eu fico horrorizada. Fico horrorizada. Vocês repararam naquele deslizamento que teve no litoral de São Paulo, que atingiram um bocado? Foi no litoral, qual foi a praia? [entrevistadores respondem: São Sebastião]. Pronto. Tu viu? Um pessoal de um condomínio lá de luxo, da praia, agredindo jornalista, do nada. O que é que era que os jornalistas estavam fazendo com eles? Nada! Impressionante! Mas fomentado por essa extrema direita, que tem que dizer o nome! Extrema direita nojenta! Se quiserem cortar, é censura!(risos)

Sara Raquel: Inês, hoje você voltou à UFC, local em que, com certeza, há muitas memórias. Mas se hoje, por um momento, você encontrasse pelos corredores de jornalismo aquela Inês Aparecida, uma menina que entrou com sonhos, expectativas e inseguranças, olhando nos olhos dela, o que você diria?

Inês Aparecida: Eu diria para ela: enfrente! Não se iluda, não vai ser mole. Enfrente, avance e não tenha medos. Pronto, eu diria isto.

Sara Raquel: Bom, Inês, antes de finalizarmos essa entrevista, nós gostaríamos de aproveitar este momento para enaltecer você como jornalista de política daqui, do estado do Ceará. O seu carisma, humor e profissionalismo te fazem essa mulher tão forte e, ao mesmo tempo, tão leve. Você é inspiração para a futura geração de comunicadores de política no nosso Ceará. E muito obrigada pela sua presença aqui hoje. Muito obrigada.

Inês Aparecida: Obrigada a vocês. (emocionada)

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Jonh Hebert
EntreFios - tecendo narrativas

Administrador não praticante, projeto de jornalista e surfista nas horas não-vagas.