Lacônica

Bergson Araujo
EntreFios - tecendo narrativas
8 min readOct 29, 2020

Uma conversa de silêncios com Ana Cleine Alves de Araujo

Por Bergson Araujo

Ana Cleine Alves de Araujo / Imagem: Bergson Araujo

Apesar de o título deste texto sugerir o silêncio de uma das partes envolvidas no processo de entrevista, pode-se dizer que a conversa se configurou como partilha.

Saber sobre alguém não é necessariamente saber como é o alguém de modo objetivo, muito menos como esse alguém se vê e fala sobre si.

Fui ao encontro munido de extensas expectativas que, ao longo da entrevista, tornaram-se frustração. E foi incrível. Ver que errei e que consegui aprender fez dessa experiência algo inesquecível.

Talvez essa conversa não chegue ao seus olhos com o mesmo toque que chegou aos meus. Achei necessário trazer pontos e situações do momento da entrevista: a forma como se era falado e o que acontecia ao longo de cada pergunta. Sim, talvez no fim tudo não passe de uma crônica, talvez.

Ana Cleine Alves de Araujo, 38 anos, é filha de Manoel Elinor Araujo da Costa e Maria Alves Ferreira, ambos pescadores e agricultores. Nasceu em Paracuru, município do litoral oeste do estado do Ceará, onde vive até o presente momento. Ana é trabalhadora doméstica, é mãe de dois filhos, é alguém. Apesar de poucas palavras, ela fala um pouco sobre sua trajetória, por quais caminhos andou e como foi percorrê-los.

Como foi a sua infância? É, não foi muito boa, foi… não teve muita infância, mas muito trabalho… só mais trabalho.

Qual tipo de trabalho? Trabalho, cuidando dos meus irmãos e trabalhando na casa de família para ajudar meus pais.

Você gostava? Não.

Por quê? Porque era muito… Às vezes, era muito pesado, era… não tinha [as palavras saem embaralhadas], não ganhava, trabalhava mesmo pra, pra os pais. Trabalhava, mas não tinha… não recebia.

Tinha quantos anos? De 11 a 12 anos.

Como era a vida nesse período, a questão econômica da família? Era muito difícil, não tinha, é… os pais viviam mais da pesca e da agricultura, não tinha recurso nenhum, fora isso, a não ser os filhos trabalhar pra ajudar.

Você tem quantos irmãos? Oito.

Todos eles trabalhavam também? Alguns. Só os maiores, os menores ficavam em casa.

Você gosta do lugar onde vive? Gosto.

O que você gosta de fazer no teu tempo livre? Eu gosto de passear, ir na praia, é… [sussurra a resposta anterior em tom de pensamento]. Passear, visitar, visitar familiares que moram distantes.

Qual a sua relação com seus irmãos atualmente? Boa.

Tem religião? No momento… No momento, eu estou sem religião.

Mas acredita em alguma coisa? Em Deus.

Qual a sua relação com essa crença? Como você se relaciona com ela? É tipo… Eu gosto de crer que só existe esse… Assim?

[Ela pergunta como se eu estivesse esperando uma resposta específica, eu estava?]

Você tem filhos? Tenho.

Quantos? Dois.

Quando eles nasceram? O primeiro nasceu em… A data?

[Quis saber se era necessário falar esses dados]

Oito do cinco do noventa e nove. E a segunda nasceu em trinta do onze de dois mil.

Como foi o processo de criação dos teus filhos? Foi… foi difícil, mas… também foi muito prazeroso, foi muito difícil no início.

Por quê?

[Perguntei interrompendo a fala. O medo de que terminasse ali a resposta era tão grande que eu não percebi que eu iria atrapalhar]

Porque, eu era nova e não tinha muito… não sabia muito como criar, como cuidar.

[interrompo mais uma vez]

Quantos anos você tinha quando teve o primeiro filho? 17 anos e morava longe dos meus pais.

Morava onde? Morava em uma fazenda, um pouco distante, talvez a mil metros.

[interrompo mais uma vez]

Como era a sua relação com os seus pais? Logo no início, não tinha relação, eles cortaram relação comigo quando eu engravidei.

E antes da gravidez, como era a relação? Com meu pai, era boa. Com a minha mãe, não foi muito boa, não me dava, a minha relação com minha mãe nunca foi boa.

Mais um longo período de silêncio. Eu estava preocupado com o rumo da entrevista e me sentindo culpado pelas interrupções. Eram involuntárias, o desejo de ter o que eu esperava estava me tirando a calma e a concentração. Faço mais uma pergunta pautada:

Já passou fome na vida? Não.

A resposta mais uma vez me surpreendeu. Eu esperava um “sim” acompanhado de um relato de um momento que eu carregava comigo. Mas não, foi um “não”. Comecei a perceber que eu estava me projetando demais e não estava querendo saber, só estava esperando ouvir a confirmação das respostas que eu acreditava já possuir.

Tem algum sonho? Tenho.

Qual seria? De ainda cursar uma faculdade e ver os meus filhos formados.

Estudou até qual série? Até o terceiro grau completo.

Era difícil ter acesso à educação no período da tua infância? Era.

Você se considera uma pessoa feliz? Acho que… [palavras embaralhadas em um sussurro]. Sim.

Por quê? É, hoje em dia sim, porque eu posso tomar algumas decisões da minha vida que antes eu tinha medo de tomar. Hoje me sinto mais dona de mim.

Você gosta de ser a pessoa que você é? É… Não, porque…

Dessa vez, não era um silêncio como os outros, tinha um ar de reflexão. E, quanto mais durava, mais eu acreditava que a entrevista havia acabado. Então, em meio às reticências do pensamento dela, naquela reflexão que deixava seu rosto um tanto melancólico, resolvo tirá-la daquela espécie de transe e pergunto o porquê do “não”.

Por quê? Porque… Eu acho que eu sou… é… às vezes muito, muito… não sei, pode-se dizer imatura com as minhas, minhas… com as minhas… atitudes? Não sei… Alguns pontos em que eu me sinto… que eu acho que não gosto de mim.

Essa era a última pergunta pautada para a entrevista. Mais uma vez, um longo período de silêncio. Comecei a me sentir meio frustrado com o resultado. Ela não esboçava qualquer sentimento neste momento. Um de frente para o outro e nenhuma questão a mais. Revisei todas as perguntas e vi que ainda poderia tirar mais alguma coisa dali.

Se você pudesse mudar alguma coisa no teu passado, o que mudaria? Acho que tudo, menos a maternidade.

Aqui entendi que ela não estava vendo a conversa como uma entrevista, mas apenas como uma conversa com o filho dela. Não pelo que ela falou, mas pelo tom e a pausa que ela fez para acrescentar a última parte. Talvez isso tenha deixado ela recolhida, tímida. Ter que se abrir para alguém que já sabe tudo sobre você? É, talvez seja uma situação estranha.

Você gosta de ser mãe? Gosto.

Por quê? Porque eu acho que é prazeroso, é… acho que é um amor, uma coisa que não se explica, simplesmente… é bom.

Essas perguntas que fiz vão em um sentido totalmente oposto ao que eu deveria ter feito. Não de tentar mudar a visão dela, mas de tentar deixá-la mais confortável com a conversa, distanciando mais ainda da imagem de filho para que pudesse me ver ao menos como ator. Mas não.

Como foi ser mãe aos 17 anos? Foi complicado, mas depois de… um tempo, você sente que… senti que não estava mais sozinha. É uma sensação de que você pode ficar só, mas nunca mais vai estar sozinha.

Teve medo em algum momento de não conseguir lidar com a maternidade ou da situação em si? Sim.

[Longo período de silêncio; eu sussurro: “Acho que é isso”]

Qual é o ponto da tua infância que você considera muito importante? Hum… eu acho que na minha infância mesmo de… de bom, que me incentivou é…era quando meu pai me dava carinho, quando meu pai me colocava nos braços muitas vezes. E a que não… que não me… que me deixou, às vezes hoje em dia fraca, às vezes é a vivência com a minha mãe, que nunca me deu carinho, nunca quis… nunca quis meu carinho, acho que essas partes que me deixa… que eu lembro da minha infância.

Como era sua relação com ela? Eu não tenho… ela nunca deixou eu chegar próximo dela, se chegar a ela.

Ela era uma pessoa agressiva? Nunca… Ela sempre fez questão de demonstrar que… não gostava de mim.

Silêncio. Dessa vez, porque me senti desconfortável com a resposta. Era pessoal demais. Eu ainda estava tentando achar as respostas que eu queria, e continuava errando sem perceber. Acredito que tenha sido desconfortável para ela. O silêncio dela transparecia esse desconforto.

Você gosta do seu trabalho? Gosto.

Por quê? Porque… porque eu gosto… é… me sinto bem quando eu estou trabalhando, quando eu estou ocupada fazendo as coisas de que eu gosto… de cozinhar, gosto de limpar…

Desde quando você gosta de cozinhar, de onde surgiu esse gosto? Acho que… acho que desde… de jovem mesmo que eu tenho vontade, gosto de cozinhar, não sei… desde jovem mesmo… eu gosto.

Se você tivesse que se apresentar de uma forma resumida, como você se apresentaria? Eu diria que eu sou uma mulher forte, mas ao mesmo tempo… uma criança… hum… eu acho que sim, uma mulher forte, mas ao mesmo tempo… uma criança que… com tudo… não sei, uma criança que às vezes me sinto frágil, acho que é assim, uma mulher forte, mas ao mesmo tempo frágil demais.

Por que forte? Porque… já tenho suportado muitas coisas… já tenho… tenho lutado por muitas coisas… acho que sim… eu acho que eu tenho… muitas coisas que é pra eu desistir… e eu não desisto…

Eu poderia ter perguntado que coisas eram essas, mas a expressão dela e a forma como ela entregou essa resposta demonstram que não, eu não poderia.

Se tu pudesse voltar ao passado com a mentalidade que tu tem hoje, acredita que as coisas seriam diferentes? Você lidaria de forma diferente com as situações da vida? Sim.

Você acha que as dificuldades que enfrentou no passado foram coisas que marcaram muito de uma forma ruim ou que te ajudaram a crescer? Qual o papel delas hoje na sua vida? Hoje elas me fazem… me ajudam a crescer, me ajudam a pensar no sofrimento e a ser forte… não fazer… sei lá, os meus filhos ou alguém sofrer como no passado eu sofri.

Como você se vê daqui a dez anos? Me vejo… uma mulher bem resolvida, com uma vida mais… como se diz?… uma mulher bem resolvida, uma mulher completa com… tipo assim… com tudo, não sei como fala… uma mulher resolvida com … com trabalho melhor, com estudo, daqui a dez anos…

Eu tento formular mais alguma pergunta, as palavras ficam mais confusas, vejo tudo o que já tenho e não consigo ver o que poderia ter a mais. Releio todas as perguntas, mas nada, nada sai. E então lanço a última pergunta.

Qual foi o maior ponto da tua vida, o que fez tudo mudar? O ponto mais… que mudou toda a minha vida foi o ponto que eu decidi tomar atitude na minha vida, e decidi mesmo contra… mesmo contra o meu esposo, meus pais, eu decidi terminar meus estudos, decidi trabalhar… esse é o ponto mais… principal que… eu vim me sentir forte, eu vim me sentir mais segura… quando eu comecei a tomar minhas próprias decisões…

Tinha quantos anos?

[ela começa a contar nos dedos, e repete o processo algumas vezes, e novamente; com um sussurro, busca uma resposta]

Acho que vinte e… vinte e nove anos?

[ela continua a contagem]

É… vinte e nove anos.

Você se sente uma pessoas livre? Sim.

Silêncio. Reviso todas as perguntas e não falta nenhuma. Não conseguia ver mais nenhuma possibilidade. O silêncio continuou por mais tempo. Não havia mais nada.

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