Uma instituição sem equidade de gênero jamais vai obter seu melhor, considera Luciana Mota

Klebercarvalho
EntreFios - tecendo narrativas
33 min readFeb 4, 2022

Em conversa com o EntreFios, a delegada federal, mãe e feminista cearense Luciana Carvalho Mota criticou as fortes desigualdades entre mulheres e homens nas instituições militares brasileiras

Por Clarice Lima, David Andrade, João Neto,
Kleber Carvalho e Ludmyla Barros

A delegada federal Luciana Mota / Arquivo pessoal

Por mais que a socidade esteja debatendo, cada vez mais, algumas questões ligadas à igualdade de gênero, a área policial no Brasil parece estar sofrendo um retrocesso quanto ao tema, especialmente no âmbito da Polícia Federal. É o que avalia a delegada federal cearense Luciana Carvalho Mota.

Em conversa com a equipe do EntreFios em 21 de janeiro, a delegada destacou que o machismo se mostrou um obstáculo ao longo de sua trajetória profissional, impactando, inclusive, no resultado do concurso que ela prestou à Polícia Federal em 2004. À época, apenas uma das candidatas mulheres foi aprovada na prova física. Algumas das reprovadas só foram admitidas após entrarem com processo judicial, alegando irrazoabilidade quanto ao teste físico cobrado às mulheres. Entre elas, estava Luciana.

Crimes cibernéticos na pandemia de covid-19

Responsável pelo Grupo de Repressão a Crimes Cibernéticos (GRCC) da Superintendência da PF no Ceará, Luciana debateu, ainda, sobre o crescimento do número de crimes online durante a pandemia de covid-19.

O combate ao coronavírus fez com que a maioria dos brasileiros migrasse seus espaços de sociabilidade para o meio virtual. Trabalho, estudos, amigos e famílias se misturam em diversas conversas por aplicativos de mensagem e reuniões de vídeos. São cerca de 150 milhões de brasileiros ocupando o universo online, segundo dados da pesquisa TIC Domicílios do ano de 2020, um aumento de 74% para 81% da população em relação ao ano anterior.

Infelizmente, esse aumento de usuários também trouxe uma consequência indesejável. A incidência de denúncias anônimas à Polícia Federal sobre crimes aplicados virtualmente também disparou, dobrando de número em 2020, se comparado ao ano de 2019. Esses dados da Safernet Brasil, em parceria com o Ministério Público Federal, demonstram como a vulnerabilidade virtual no país ainda é um problema a ser combatido.

A delegada federal comentou sobre os vários fatores que estão por trás do aumento desse número de crimes. Ela também pontua acerca da sua participação na operação Escudo Dourado, que combate a exploração sexual infantil no interior do Ceará.

Trajetória profissional

Outro ponto de destaque da entrevista foi sua trajetória até se tornar delegada federal. Sua jornada é marcada por diversas mudanças, nos sentidos espacial e pessoal. Foi preciso abdicar de tempos preciosos com a família para seguir um sonho.

Graduada em Direito e especialista em Direito Penal, Luciana Mota iniciou sua carreira como delegada da Polícia Civil na Paraíba. Em 2006, assumiu o cargo de delegada da Polícia Federal, atuando, inicialmente, em Santarém (PA). Atualmente, a delegada coordena o Grupo de Repressão a Crimes Cibernéticos (GRCC) da Superintendência da PF no Ceará.

Confira a entrevista na íntegra e acompanhe alguns trechos transcritos logo abaixo.

Ludmyla Barros: A senhora cursou Direito na Universidade de Fortaleza (Unifor), se especializando na área do Direito Penal. Como surgiu o seu interesse pela área penal?

Luciana Mota: Nossa, boa pergunta… Eu acho que, intuitivamente, eu já sabia o que o futuro resguardava em minha carreira profissional. Na verdade, quando eu terminei a faculdade, eu sempre tive mais facilidade, mais domínio na área penal. E na minha prova da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], acabei fazendo criminal, mas eu não tinha o menor interesse em fazer concurso para a polícia.

“Na verdade, quando eu passei no primeiro concurso, da Polícia Civil da Paraíba, foi que entendi que era o direito penal e a área criminal os meus grandes amores”.

David Andrade: Você começou a carreira penal como delegada da Polícia Civil do Estado da Paraíba e, logo depois, passou no concurso para a Polícia Federal, tendo que ir para Brasília para dar início à sua carreira como delegada federal. Como foi o treinamento em Brasília e como ele afetou sua rotina e sua vida em geral, tanto no pessoal quanto no profissional?

Luciana Mota: Todo concurso da Polícia tem um curso de formação que é um pouco mais longo e um pouco diferenciado das outras carreiras. O de juiz também tem vários cursos de formação. E o nosso, eu brinco que ele é meio em regime BBB [totalmente isolado], especialmente o da Polícia Federal, que é o mais longe de casa. Eu já tinha três filhas quando eu passei no concurso da Polícia Federal, então o primeiro desafio foi a logística das crianças, que, na época, eram crianças mesmo.

Depois de a gente acertar isso, elas ficaram parte com a minha mãe e uma parte com o pai, e eu fui para a academia.

A academia, na época, era um regime de semi-internato. Eu acho que foram mais de três meses, uns quatro meses. Aulas durante um período de segunda a sábado e depois de segunda a sexta; a gente podia, nesse tempo — hoje não pode mais — , sair à noite, mas tinha que chegar antes de 11 horas da noite, senão você dormia fora. [Poderíamos chegar às] 11 horas da noite ou 6h da manhã. Das 11h às 6h da manhã, não podia entrar nem sair da academia.

Então vira de fato um regime de internato, onde a gente é submetida a uma carga de atividades físicas bem intensas, bem intensas mesmo. Eu brinco que eu saí a rainha do anti-inflamatório. Há um medo, é uma fase de muito medo, confusão, porque, como é uma sobrecarga, apesar de a gente ter se preparado fisicamente para o teste, há uma sobrecarga física muito intensa, porque tem muitas aulas práticas de defesa pessoal, tem as quedas… Então é um receio enorme, é o medo de todo mundo — não é nem de reprovar — , é o medo de contusão, porque tem muito, na defesa pessoal, em algumas atividades de tiro, mas é mais defesa pessoal, mas é mais nas aulas de educação física… E a gente passa a academia inteira com aquele estresse de não se contundir.

E, havendo contusão, você tem que pedir desligamento, e aí volta só na próxima turma, do próximo semestre. E não havendo próxima turma… Eu confesso que eu nem nem sei dizer. Então… É um período bem difícil, bem complicado.

Com relação à vida pessoal, quando eu fiz academia no segundo semestre de 2005, a telefonia celular não era como é hoje. A Academia da Polícia Federal lá em Brasília não fica no Plano Piloto, fica numa cidade satélite, numa parte mais afastada.

Então, na época, a maioria das operadoras não pegavam dentro da academia. O telefone público fazia fila, você terminava o dia exausta e ia pra fila do telefone público… Então tinham semanas em que eu não conseguia falar com as minhas filhas e nem com minha família, mandava só o email. Na parte das comunicações, de 2005 para cá, a coisa evoluiu muito. Naquela época, era tudo muito mais precário.

“Nós éramos 700 alunos. […] Houve uma questão polêmica envolvendo a prova física, que reprovou 89% das mulheres, então é um outro fator que deixa a academia ainda mais complexa, porque eram 700 homens e 70 mulheres”.

Foi todo um período muito difícil. Por outro lado, é um ambiente onde está todo mundo com aquela energia da conquista, da vitória, do evoluindo. Então, de certa forma, é também um ambiente leve; ali está todo mundo na história da comemoração da conquista do que vem lá. Então é um misto de sentimentos e toda a vida quando a gente volta na ANP [Academia Nacional de Polícia], para algum treinamento, para dar aula, é um sentimento comum, é sempre emocionante, porque a gente lembra lá do comecinho, quando você tava sonhando com tudo aquilo que já aconteceu, quando você tinha uma série de expectativas… É um BBB, gente, é um misto de muitos sentimentos, na verdade.

Kleber Carvalho: Durante seu período na Amazônia, a senhora foi condecorada com os Prêmios de Colaboradora Emérita do Exército, Comando Militar da Amazônia (2007) e Prêmio de Reconhecimento pelos relevantes serviços prestados ao Batalhão Tapajós, 3º BPM (2006) pelo trabalho exercido na Amazônia Legal. Na sua avaliação, que trabalhos realizados pela senhora resultaram em tais condecorações?

Luciana Mota: Santarém fica no oeste do Pará. Se você pegar um mapa do Brasil, ela fica equidistante entre Belém e Manaus. Essa foi a minha primeira lotação.

Para quem não conhece o organograma da Polícia Federal, cada estado tem uma superintendência, e a sede da superintendência fica na capital. Daí a gente chama “Superintendência da PF na capital”. E aquela superintendência é responsável por diversos municípios. Quando o estado tem uma circunscrição um pouco maior — e aí leva em conta o número de habitantes e alguns fatores geográficos e também processuais — , criam-se delegacias. A delegacia de Santarém, na verdade, era responsável por 22 municípios da região do oeste do Pará.

Tudo na vida é cíclico — a criminalidade, inclusive. Assim que eu cheguei, era muito forte, na região, o tráfico de drogas, porque a droga, na época — hoje a rota é outra — , entrava por Tabatinga, que é ali, no Amazonas, via fluvial, e ia até Belém por rio, que é um combate difícil porque o rio ora está cheio, ora está seco, ora tem um braço numa direção… Difícil de acompanhar porque o celular não pega. É um trabalho muito complicado, o combate às drogas, por uma questão geográfica na Amazônia.

Um ano antes de eu entrar na polícia, Belém tinha pego muita droga, porque a droga só passava por Santarém, não parava, e ia para Belém. Em Belém era distribuído, ou internacionalmente, ou para o Nordeste, Sudeste, enfim. Como houve muita repressão em Belém, o tráfico passou a fazer essa parada e já distribuir em Santarém. E essa mudança no modo de atuação foi exatamente no período em que eu cheguei. Então, assim, não é só porque eu sou uma delegada diferente dos demais que estavam lá, é que tem esse histórico de que Santarém passou a ser o ponto de distribuição em razão da repressão, de o ano anterior ter sido muito efetiva em Belém. Então tiveram muitas ações exitosas de combate ao tráfico de drogas nesse período inicial que eu passei em Santarém.

Depois, quando a gente deu muito flagrante em Santarém, que a gente pegou muita coisa em Santarém, eles passaram para outros municípios para, na verdade, dificultar.

É porque assim: carga vem com 200 kg de cocaína. Aí, dos 200, 70 vão para Belém, 50 vão pra outro canto. Então tem um ponto onde vão chegar os 200 kg. E, durante o período em que eu fiquei na Amazônia, eles ficavam mudando, e esses pontos eram muito próximos a Santarém. Santarém tinha o facilitador de ter muitos aeroportos clandestinos, porque, como a região não é bem servida de estradas em condições de trafegabilidade “ok”, então, por conta disso, houve muitas ações de combate ao tráfico de drogas e nessas ações a gente tinha sempre a colaboração da Polícia Militar. Como o nosso objetivo é muito pequeno e Santarém tinha dificuldade de locomoção do próprio efetivo da Polícia Federal, porque não se locomoviam de carro (se eu ia ter uma ação… Que eu precisava de 15 equipes, não é fácil o deslocamento, ainda mais com os voos de 2006, que não era a mesma malha viária, a polícia não tinha as aeronaves que hoje ela tem, que foram adquiridas em momento posterior), era muito complicado deslocamento em equipes, então a gente fez um trabalho muito em conjunto e muito legal com a Polícia Militar de lá.

A gente teve muitas operações em que a gente atuou em conjunto, com a Polícia Militar junto com a gente, formando equipes mistas, inclusive. Eram dois agentes nossos e dois policiais militares… Eu acho que quase 100% das operações — aquelas que não são flagrantes, as que a gente organizava — tinham parceria da Polícia Militar. E eu acho que foi muito importante, tanto para a troca de informações sobre a criminalidade, como para a valorização do policiamento local. E, como o efetivo deles era muito maior, foi fundamental a colaboração da PM nessas ações. Eu acho que isso aí foi os trabalhos que geraram essa homenagem da PM.

Quanto ao Exército, aí vamos para outro crime. Quando eu cheguei lá, estava muito forte a questão do desmatamento. Esse desmatamento, em 2006, estava no auge. A soja estava chegando ao oeste do Pará e havia a questão da grilagem de terras.

Já na questão do combate ao desmatamento, a logística do Exército é fundamental para as ações. Então a gente contou, muito, com o apoio do Exército lá na região de Santarém, porque também existia o Batalhão de Itaituba, que também era parceiro nessas ações, porque são máquinas que ficam no meio da mata… Então, precisa-se dessa logística mais especializada que eles têm e são muito bons nisso. Nesse aspecto, a gente contou — e muito — com a colaboração do Exército. Eles foram fundamentais, também, para que a gente obtivesse êxito nas ações de repressão aos crimes ambientais, especialmente o desmatamento.

Depois houve uma queda [no desmatamento] até. Inclusive, já perto de eu sair de Santarém, entre 2009 e 2010, a gente já tinha bem menos operações. Hoje, infelizmente, houve uma aceleração na questão do desmatamento. Houve uma época em que, realmente, estava mais tranquilo — tranquilo, tranquilo, o Norte nunca é — mas estava mais calma essa questão dos crimes ambientais. E eu acho que essa homenagem do Exército se deve, também, a essas parcerias no combate aos crimes ambientais.

Ludmyla Barros: A senhora sente que a sua trajetória se tornou mais difícil por ser uma mulher no meio penal? Como era o cenário na época em que a senhora ingressou?

Luciana Mota: Machismo, não preciso nem dizer que tem. Dentro da instituição — o que eu entendo — foi um momento em que houve um equívoco que, até os dias de hoje, não foi reparado e não vejo ainda o reconhecimento da gravidade do que está acontecendo com relação à questão de gênero na Polícia Federal.

Em 2002, houve um concurso da Polícia Federal, e tenho muitas amigas que foram desse concurso. Segundo elas me narraram, na academia, elas eram em igual número. Havia salas em que havia um pouco mais de mulheres do que de homens. Depois eu soube que, na verdade, o número de mulheres naquele concurso de 2002 foi maior do que o número de homens. Inexplicavelmente, ou “explicavelmente”, acho que essa situação incomodou de alguma forma algum setor, mas não quero nem entrar no mérito.

O que aconteceu no concurso seguinte, que foi o meu, foi que houve uma questão na prova física que reduziu o número de barras para os homens — porque, no concurso anterior, de 2002, os homens foram muito reprovados na prova de barras, parece que cobraram cinco barras.

As mulheres, em quase todos os concursos de polícia, quando tem a prova de barra, é uma barra dinâmica, que você fica suspensa e um tempo parada. Segundo a literatura da educação física, seria a prova adequada para medir força de membros superiores para mulheres.

No concurso de 2004, a gente vinha estudando pelo edital anterior, e aí, inexplicavelmente, ou levando em conta um pouquinho o que eu já tentei entender dessa história, o edital, quando saiu, inovou e cobrou a barra dinâmica [nesse momento, a entrevistada quis dizer “barra fixa”] para as mulheres. Barra [fixa] é você ficar pendurado e fazer. Da data que saiu o edital para o dia da prova, era um tempo curto para que fosse possível uma mulher conseguir força pura, porque a barra é força pura, não é condicionamento físico. Você pode estar muito bem condicionado e não fazer a barra. Isso gerou uma reprovação de 89%, no concurso de 2004, das candidatas do gênero feminino.

Não sei — aí que tenho vontade de fazer um estudo — quantas nós éramos antes da barra, se nós estávamos em igual número quando fizemos a prova teórica. Não sei dizer — em 2002, éramos, em números, equivalentes aos homens — a ponto de em 2004 ser, na minha academia, 700 homens para 70 mulheres. Na minha sala, eram 40 homens para 3 mulheres, das quais duas estavam lá por decisão judicial; entre elas, eu.

Eu não fiz a prova, tirei 10, nota máxima em todos os outros testes, zerei na barra e não podia zerar em nada. Uma só passou na barra, de fazer normalmente no dia do teste, e essa uma pesava 49kg. Então, assim, a gente arguiu judicialmente isso aí, de que era um teste irrazoável, desproporcional, discriminatório, que feria princípios constitucionais básicos. Judicialmente, muita gente conseguiu reverter, mas o fato é que muita gente nem foi fazer a prova. A maioria das candidatas.

O Judiciário ora se manifestava pra um lado, ora para outro. Havia uma defesa muito enfática da Polícia Federal nas ações, de que aquele teste era “o máximo”. Eu não sei o que motivou isso. O fato é que, após o concurso de 2004, houve uma decisão judicial que proibia a Polícia Federal de cobrar esse teste físico e, a partir de então, a desproporção entre homens e mulheres nos cursos de formação é absurda. Eu sou convidada a dar palestras, já fiz umas três, e eu faço questão de mostrar — eu sempre me atualizo, sempre pego na internet — a foto do auditório da abertura do curso, ou do encerramento. Você não vê mulher. Você só vê aquele mar de corpos masculinos e, aqui ou acolá, eu até brinco, digo que é “Procurando o Wally” para achar uma mulher ali.

Hoje eu estava até conversando com uma colega que foi do último concurso e ela relatou a mesma coisa: “Na minha sala, eram 40 homens e umas três mulheres”. Então, nós estamos na Polícia Federal em cada vez menor número.

Eu não sei do que será da instituição daqui a 10 anos, porque a gente hoje ainda tem muitas mulheres no concurso remanescente de 2002. Esse pessoal ainda não teve tempo de se aposentar, mas, quando esse concurso chegar no tempo, vamos ser um grupo de polícia masculino, praticamente.

O desenho é esse, não é animador. E, em uma instituição que é formada quase que exclusivamente por homens, não há como a gente dizer que não há machismo. Machismo estrutural tá aí, e a gente é criado sendo machista. Às vezes até nos colegas, cheios de boas intenções, que se acham desconstruídos, você vê. É muito desigual, de verdade. São coisas que, para eles, que são maioria, passam imperceptíveis, mas que a gente sabe.

O futuro não é melhor para essas mulheres que estão ingressando na polícia. Tem coisas muito graves que eu passei, de assédio, enfim, mas isso é reprimido pela instituição, não há acobertamento. Mas tem aquelas nuances, né?

Eu fui para uma operação em Teresina. A pessoa que convocou os servidores fez uma equipe de oito homens e uma mulher, eu. A equipe que organiza a operação lá, reserva hotel para 100 policiais. A equipe não se toca que, dos 100, só tem 8 mulheres e não reserva nossos quartos individuais ou em dupla. E a gente não se conhece porque eu venho de Fortaleza; e a outra, do Maranhão; a outra vem do Pará. Os caras, por exemplo, do Ceará, vêm sete homens, aí eles já fazem assim: “Vou ficar em um quarto contigo, com o outro etc.”. Enfim, o nosso voo chegou tarde e, quando eu cheguei lá, só tinha para mim um quarto triplo, e o hotel estava me cobrando o quarto triplo. Só o quarto já era mais do que a diária. E aí ninguém acha que isso é machismo, não ter quarto.

Como essa situação, a gente passa inúmeras. Falta a sensibilidade. Eu tive que pagar a diária do quarto triplo, porque não houve uma preocupação em entender que nós éramos em menor número, não nos conhecíamos. O nosso alojamento tinha que ser guardado para que a gente tivesse a diária igual para todo mundo. Por que a mulher vai ter que pagar um quarto triplo? Só porque a organização não se lembrou de que não poderia deixar os caras pegarem todos os quartos e deixarem só os triplos para as mulheres? Como essa situação, tem muitas.

Existe um trabalho da área de recursos humanos que tentou entender um pouco essa situação — e aí o trabalho que eu pretendo fazer no meu mestrado, no futuro, seria complementar a esse — onde demonstra a questão dos cargos de gestão. Nós éramos, na época do trabalho, em 2019, 17% do efetivo. Quando você vai para os cargos de gestão de menos importância, de quarto escalão, esse percentual é ok. Somos 17% ocupando cargos de chefia do quarto escalão. Quando você vai para o segundo escalão, nós somos 0% ocupando cargos de gestão. Quando vai para o terceiro escalão, nós somos 5%, ou 6%. Mas existe um DAS [cargos de Direção e Assessoramento Superior], uma função gratificada, que é de assessoramento: chefe de gabinete do assessor geral, por exemplo. Nesse, nós somos 98%. Nos de assessorar os homens, nós somos 98%. Apesar de ser um cargo um pouco melhor, mas é um cargo de assessoramento… Esse estudo está aí, e eu não vejo uma preocupação com relação a isso. E isso me entristece um pouco. E me preocupa.

David Andrade: Em 2019, as mulheres representavam 25% do efetivo da Polícia Civil do Ceará e 3,8% da Polícia Militar [do estado]. Analisando esses números, a gente percebe que tem uma queda de percentual se comparar essas duas esferas, a Civil e a Militar. Como a senhora avalia a participação feminina na Polícia Federal hoje? E esse percentual geral de mulheres servindo na PF segue essa tendência de queda, quando a gente compara as esferas?

Luciana Mota: O que me entristece e me preocupa é que, na Polícia Federal, não há justificativa aparente. Eu tenho a minha percepção, mas não há justificativa aparente para que haja essa queda. Porque os meios investigativos — diga-se o setor em que eu trabalho — estão cada vez mais sofisticados. Então, a cada dia, a gente precisa [menos], nas investigações e na repressão à criminalidade, de força física.

Então, os meios investigativos, hoje, são mais tecnológicos, […], cada vez é menos importante a força física. Entre as atribuições da Polícia Federal, eu acho que, tirando um grupo tático que são, acho que menos de 40 policiais, em um efetivo de milhares, precisaria dessa força física. Não há impedimento de mulher, mas há um teste físico, que é muito complicado para o público feminino. Mas, tirando essa atribuição, as demais, pelo contrário, eu até penso que alguns atributos mais presentes nas mulheres são muito mais significativos e importantes na investigação, sabe?

E aí, quando você passa para as atribuições administrativas — de imigração, de atendimento ao público — , não tem porque essa prova física não ser equânime hoje. O meu sentimento é que o concurso de 2004 foi um marco para que nós, mulheres, sejamos em número cada vez menor, ele meio que afastou mesmo as mulheres. Hoje, a impressão que eu tenho, pelo que eu converso com os candidatos que estão entrando agora, é que as mulheres não estão sequer prestando o concurso da Polícia Federal.

Então, em 2002, prestava; em 2004, também. A gente só foi reprovada, mas, a partir de então, eu entro para a questão que, em 2004, houve também uma delimitação mais significativa, no sentido de primeira lotação. A primeira lotação, necessariamente, é em locais de difícil provimento, que aí você pega fronteiras, regiões de mais difícil acesso. E aí eu acho que essa política de lotação termina afastando as mulheres candidatas. Eu tô falando da Polícia Federal, tá? PM e Civil, eu já imagino que sejam outras questões […]. Penso que não é só aquela questão de dizer assim: “Aí é uma profissão de homens”, porque, em 2002, nós éramos em igual número. Então eu não vejo que, na Polícia Federal, é essa questão como eu acho que é na PM, de ficar incutido na cabeça da sociedade que é uma profissão de homens, que precisa necessariamente de força física. Na Polícia Federal, como a gente já teve uma época em que nós éramos em igual número, não justifica hoje nós não sermos pelo menos em igual número, e aí eu acredito que [isso ocorre] em razão de maternidade, em razão do casamento, as questões da sociedade mesmo, né?

A mulher sempre acompanha o homem no caso de o homem se mudar de estado e o homem não ter o mesmo desprendimento no momento em que a mulher passar [no concurso] e tiver que passar cinco anos em Santarém, como eu passei. O companheiro, ou namorado, ou marido não se predispõe a fazer isso. A questão da maternidade, no meu concurso, eu vi gente que passou 7 anos no Norte e que adiou muito a questão de ser mãe; ou eu, que levei as meninas. E, realmente, a maternidade… Vou nem entrar nessa questão do quão opressor eu acho que é a maternidade, apesar de ser mãe de 3 filhos. Mas a maternidade, quando você vai exercer ela sem a rede de apoio… E a Polícia Federal viaja muito… Aí você não tem com quem deixar os meninos. Já aconteceu isso aí comigo, de eu estar na diligência, em que não pegava o celular, a minha filha foi hospitalizada, teve alta, e eu só soube quando cheguei a Santarém.

Então é muito complicado, e eu acho que isso, esses fatores, agregado ao fato de que a profissão “polícia” é vista como uma profissão masculina. Mas eu acho que, na Polícia Federal, isso é menos, por conta das questões que eu já falei. Eu acho que isso termina afastando candidatas.

A solução, eu confesso, eu não sei. Porque é uma questão estrutural mesmo da sociedade. A gente [mulheres] ser muito mais cobrada nesse cuidado com a família — a maternidade cobra muito mais do que a paternidade. E aí termina que as concurseiras optam por outros concursos que não exijam esse sacrifício aí, nesses primeiros cinco, seis anos. Penso eu que seria isso, mas só minha pesquisa de mestrado para entender melhor o que levou as meninas a se afastarem da Polícia Federal, porque em 2002 não era assim. Então gostaria de entender um pouco melhor sobre isso.

Já a Civil — eu já fui delegada da civil — e a PM, eu acho que, como eles estão mais na rua mesmo, combatendo aquela criminalidade do dia a dia, tem-se ainda no imaginário a história de que é uma profissão de homens, de que é uma profissão perigosa — que, de alguma forma, é — , e essa questão de proteção e força física é mais ligado à figura masculina. Eu acho que isso termina afastando muito as mulheres da carreira policial, o que é uma pena.

Kleber Carvalho: A senhora falou sobre os casos de machismo na Polícia Federal, citou até o caso das reservas dos quartos no hotel. Existe algum movimento, ou algum órgão dentro da Polícia Federal, que busque combater esse machismo?

Luciana: Não! Só eu que, de vez em quando, passo os artigos científicos para minha amiga que é lotada na diretoria de gestão de pessoal.

Eu sei que tem uma pessoa, um delegado, que estuda sobre o tema. Lamentável que seja um delegado [um homem em vez de uma mulher], mas daqui a pouco a gente não vai ter nenhuma mulher pra estudar sobre o porquê de a gente não estar lá. Lamentável.

Mas não existe. E isso é o que entristece mais do que nós sermos em minoria: ver que não há uma preocupação com isso. O futuro vai mostrar o quanto isso vai ser ruim para a instituição. Mas pode ser que, nos próximos anos, o pessoal abra o olho. Daqui a pouco, o pessoal de 2002 vai começar a se aposentar. Por exemplo, uma revista [busca pessoal, tocando o corpo das pessoas] sem mulheres, uma equipe do aeroporto sem uma mulher. Nós temos, em Fortaleza, várias equipes que não têm uma mulher. Eles já estão começando a ter essa dificuldade. Eu sei o que veio primeiro: o desejo, ainda que inconsciente, de tornar a instituição mais masculina, depois do concurso de 2002.

Eu fico tão triste com essa situação. É muito preocupante porque uma instituição sem equidade de gênero jamais vai obter o seu melhor. É no que eu acredito.

Ludmyla Barros: Realmente é muito preocupante. E essa questão dos concursos se estende até os dias atuais. No último concurso da Polícia Civil, apenas 15% das vagas eram destinadas exclusivamente às mulheres. Sobre essa limitação de vagas, quais as consequências que ela pode trazer ao meio policial como um todo?

Luciana Mota: Isso é até um avanço, porque hoje, no concurso da Polícia Federal, não tem essa “cota” de vagas exclusivas para mulheres, que eu acredito que essa é a solução — não sei se a minha instituição, extremamente machista e masculinizada, consega enxergar e aceitar, se ela está pronta para entender que eles vão ter que estimular, em algum momento, as mulheres a irem para a polícia.

E a gente não tem isso em candidatas, esses 15%. [Quando] chega à academia, os índices de reprovação hoje nos testes físicos são equivalentes, homens e mulheres. Não existe mais aquela desproporção do meu concurso, de reprovar um “monte” de mulheres. Então, é mais ou menos, a regra do último concurso que eu tava conversando com uma colega, é 40 para 3. Não dá 10% de mulheres. E não tem essa garantia de que, por exemplo, se a Polícia Federal hoje estabelecesse um sistema de cotas — tipo, 15% vão ter que ser de mulher, ainda que a nota da mulher seja mais baixa que a do homem — já seria um avanço, na minha opinião.

Eu acho que é solução passa também pela mídia, o marketing mesmo, para estimular as mulheres a darem entrevistas, a estarem na linha de frente. Nomear as mulheres como superintendentes, gestoras, para poder estimular que mais mulheres se vejam ocupando esses espaços. Eu acho que é um problema de difícil solução. Mas com soluções que poderiam começar a trilhar um caminho mais fácil. Primeiro tentando entender o porquê de em 2002 nós termos [um número maior de candidatas] e hoje não termos. Se você entender as causas, às vezes a solução fica mais fácil do que se imagina. Acho que é por aí.

David Andrade: No ano passado [2021], a senhora iniciou o trabalho no Grupo de Repressão a Crimes Cibernéticos na Superintendência da PF aqui, no Ceará, e, nesse mesmo ano, a gente viu a intensificação das relações interpessoais via internet [por conta do isolamento social de combate à covid-19] e também um aumento dos crimes cibernéticos. Na sua opinião, qual é a influência das condições impostas pelo isolamento social no aumento desses casos?

Luciana Mota: […] Com o isolamento social, passa-se muito mais tempo na internet. Se a gente for para a parte de pedofilia, as vítimas estão há dois anos sem ir à escola, sem ter uma atividade esportiva… Eu acho que isso é um fator que propicia e deixa elas ainda mais vulneráveis. […] Se a aula é no notebook ou no tablet, ou no telefone, […] isso facilita que o criminoso tenha acesso à criança. Se as crianças em geral que passavam seis, sete horas na escola, quando chegavam tinha as outras atividades, podiam estar socializando com outras crianças e todo esse tempo foi colocado em meios eletrônicos, isso é “mamão com açúcar” para o criminoso pedófilo.

[…] Na questão das fraudes bancárias, eu vejo a questão do auxílio emergencial. A polícia civil também tem atribuição de investigar crimes cibernéticos. A gente na polícia federal trabalha praticamente com duas vertentes de crime. Um é pedofilia e crimes de ódio praticados pela internet […] e [a outra vertente é] quanto às fraudes bancárias, que a gente só atua quando […] é em detrimento de bens e pessoas da União. […] Por exemplo, os benefícios assistenciais geridos pela Caixa [Econômica Federal], pagos por intermédio da Caixa, ou de qualquer outro banco em que a União vá ter o prejuízo, a gente atua.

A forma como se concedeu o auxílio emergencial foi “por favor, me fraude”. O sistema era extremamente vulnerável, propício a fraudes. Para você ter ideia, teve fraude aqui, no Ceará, em que o estelionatário conseguiu receber auxílio emergencial em nome do Neymar, do Paulo Guedes… Ele [o criminoso] pediu [auxílio emergencial] do empresário da Havan [Luciano Hang]. Alguns foram indeferidos, mas outros conseguiram receber, e era uma fraude simplória até, não exigia muito conhecimento tecnológico.

[…] Os cartões de pagamento do auxílio emergencial, quando eles são integrados àquele Bolsa Família, a opção do governo federal foi, para baratear o custo, não colocar o chip no cartão. Foi uma visão extremamente financista, onde não levar em conta que o beneficiário daquele auxílio, por conta de custar três ou seis reais o chip, fica sem a comida porque o benefício dele foi retirado da conta, porque o cartão dele não tinha a segurança do chip. No nosso trabalho, foi assustador. Teve que se criar uma base nacional de fraudes contra o auxílio emergencial para poder fazer os cruzamentos técnicos de IPs [código usado para identificar um computador], de conexão de celular, de pagamentos. […]

A gente teve, durante a pandemia, a inovação o pix. […] Antigamente, a fraude tinha uma conta de passagem. O valor [fraudado] é tirado do correntista, aí passa para uma conta de um terceiro que às vezes nem existe e, dessa conta, você espalha para quem vai de fato sacar. […] Quando ela chegava a essa conta de passagem, se a fraude fosse comunicada rapidamente, a gente conseguia bloquear e aí não havia o prejuízo. Com o pix, quando você olha, o dinheiro já está para cinquenta, cem contas. Isso aí, eu acho que é um facilitador de que a gente não consiga estancar a sangria, porque, quando você vai atrás, o dinheiro já está todo pulverizado. E a questão dos bancos C6 Bank, Nubank, Inter… A facilidade com que se abre conta nesses bancos. Acho que o boom desses bancos foi muito próximo da pandemia ou durante a própria pandemia, e isso aí também repercutiu de alguma forma nas fraudes, assim, [de modo] indescritível. Porque, em nome de se ter clientes, eles abrem conta com quase nenhum dado pessoal […]. Aí eles geram boletos, a gente pode gerar um boleto, qualquer pessoa gera boleto… E aí a galera sai gerando um boleto de uma conta, pagando com a outra… Dificílimo de rastrear.

Eu acho que são esses três aspectos. Nos crimes que envolvem vulneráveis e crimes de ódio, eu acho que a pandemia, o isolamento social e essa overdose de eletrônicos e de ambiente virtual de fato são preponderantes. E nos crimes mais de fraudes bancárias, meu conhecimento não consegue alcançar até que ponto o pix e esses outros — a questão dos bancos —, se a pandemia influenciou ou não para que esses instrumentos chegassem ao sistema bancário. Mas, de fato, eu atribuo a isso o aumento de fraudes bancárias e aos benefícios assistenciais, que estão ligados ao benefício assistencial de emergência, que está diretamente ligado à pandemia. De fato, o nosso número de inquéritos em fraudes bancárias aumentou substancialmente por conta das fraudes dos benefícios, porque o sistema de concessão do benefício é extremamente vulnerável.

David Andrade: Durante sua resposta, a senhora falou um pouco sobre esses crimes contra vulneráveis. Em 2020, os crimes de pedofilia aumentaram numa margem superior a 100% em relação a 2019. A senhora participou da operação Escudo Dourado, que investigou o estupro de incapaz e a divulgação das imagens desses crimes. Tendo em vista as questões emocionais, por se tratar de um tema tão sensível, e tendo também em vista a complexidade do meio virtual, em termos gerais, como funciona a investigação desse tipo de crime?

Luciana Mota: Os crimes de pedofilia são investigados pela Polícia Civil também. Para ser atribuição da Polícia Federal, na verdade, são os que há caracterizado pelo menos […] um potencial de ser transnacional. Por exemplo: uma conversa privada no WhatsApp, até um grupo fechado de WhatsApp. Se não houver nenhum número internacional, a princípio, aquele delito não é atribuição da Polícia Federal, ainda que haja o compartilhamento de imagens. A gente trabalha com casos onde as imagens, em geral, quase que 100% dos nossos trabalhos sobre a pedofilia, as imagens elas têm que estar pelo menos disponíveis.

Eles não vão estar em sites na internet, por razões óbvias, porque essa galera transita na dark web [ambientes online que proporcionam elevado grau de anonimato a quem produz e a quem consome determinados conteúdos]. Mas, na dark web, há uns fóruns só de pedofilia. […] São coisas que a gente não acredita nem que exista. Você escolhe o tema: se é pedofilia com bebê, se é pedofilia com criança de tanto a tantos anos, com meninos de tanto a tantos anos… São meio que categorizados os arquivos, inclusive. […] Na dark web, eles comercializam, eles trocam.

O nosso trabalho é baseado nessas trocas internacionais de arquivos. A Interpol [Organização Internacional de Polícia Criminal] dispõe de ferramentas utilizadas por várias polícias do mundo, que monitoram o tráfego desses arquivos. Esses arquivos têm nomes bem característicos. […] É muito rápido, é igual a pix. Ele está aqui, daqui a pouco está na Austrália, daqui a pouco estão compartilhando, e eles compartilham os pacotes de arquivos, não é só um arquivo[…]. Aí vão se catalogando. Então você já sabe que o arquivo chamado “girl…” tem metadados técnicos que individualizam aquele arquivo. Então, toda vez que aquele arquivo for identificado trafegando na rede ou em alguma apreensão em qualquer país do mundo, haverá um sistema que na hora que você joga apreensão… Por exemplo: lá nos Estados Unidos fizeram uma apreensão de um computador de um pedófilo. Na hora em que eles pegam aquela apreensão e botam para rodar nesse “banco de dados”, falando numa linguagem bem leiga, eles já dizem que os arquivos tais, tais, tais já estão catalogados internacionalmente como de pedofilia. Então só ali já é a materialidade delitiva, só ali você já prova que houve o crime. […] É como se ele recebesse uma chancela de que aquele arquivo é de pedofilia. Você não precisa nem abrir, nem mostrar a foto para o juiz. É como se fosse a chancela de que aquele arquivo é catalogado como pedofilia.

Por exemplo, essa operação Escudo Dourado foi a operação mais gratificante que eu já fiz. Porque foi numa dessas de monitoramento de tráfego que, […] por uma questão do ambiente lá de onde a imagem estava sendo feita, um perito conseguiu identificar de que cidade era é aquela criança. Foi um trabalho lindo, de aula de academia, de curso de formação. A nossa equipe em busca em rede social, fonte aberta… Como a cidade era pequena, conseguiu identificar a escola em que a menina estudava. […] Se passando por oficial de Justiça, conseguiram achar a casa em que foram cometidos os abusos. Eles identificaram o parente, aí o abusador aparecia assim, de perfil… Foi feito um comparativo de foto de Instagram, de Facebook, com o pedaço do rosto que aparecia para provar que ele era ele. […] Quando os meninos, se passando por oficial de Justiça, uma história de cobertura, fingiram que iam avisar o cara que ele tinha ganhado a ação, alguma coisa assim, eles reconheceram um buraco que tinha na parede da casa. Era uma casa bem humilde, tinha caído um pedaço do reboco, e a parede era de uma cor bem característica, acho que era verde, meio verde limão. Na hora em que a esposa do cara abriu a porta, que eles olharam a parede, disse: “Pronto, achamos. Foi aqui, é o cara”. A gente fez as medidas. Representamos pela busca, pela prisão, e esses arquivos, segundo as informações que a gente teve da força-tarefa que faz essas análises, eles já tinham sido identificados em apreensão na Austrália, na França, nos Estados Unidos, no Canadá… Então não era nem só um arquivo, era um bloco de arquivos que o cara tinha compartilhado. Ele nem tinha conhecimento para circular na dark web, conhecimento tecnológico, mais de informática. Mas ele se meteu num grupo aí — parece que de Facebook — e aí o estrago está feito. Na verdade, o estrago já é feito na hora do abuso; com o compartilhamento, fica imensurável. Mas esse caso foi muito emblemático porque, em geral, como a gente só trabalha quando o delito tem pelo menos a potencialidade da transnacionalidade, em geral, a gente pega muito quem compartilha, quem baixa, quem disponibiliza…

Eu não sei se vocês sabem, mas só em você ter o arquivo envolvendo o abuso sexual de criança ou adolescente, só em você ter armazenado, só isso aí já é crime. Você compartilhar um crime é mais grave ainda. Você produzir já é um crime mais grave ainda. E aí tem um estupro de vulnerável em si, que é outro crime mais grave ainda.

Então é muito comum nos nossos trabalhos — como a gente trabalha só quando ele tem pelo menos a potencialidade de transnacionalidade — a gente chegar muito no transmissor, em quem compartilha, naquele pedófilo mesmo virtual. Mas não é tão comum — como é na Polícia Civil — a gente chegar ao abusador em si, porque, em geral, nem todo abusador faz a imagem, a maioria, inclusive, nem faz, só abusa. E aí não é nossa atribuição, a investigação. Não que a gente não possa atuar; pode, sim. Mas, como a nossa atribuição vai dentro desse monitoramento de arquivos, termina que a gente chega… É outro viés da repressão, na verdade, da pedofilia.

Como a gente já tinha conversado na pergunta anterior, é totalmente compreensível por que é que esses crimes mais que dobraram. As vítimas que ficavam ali — antes da pandemia, de forma monitorada — uma hora, duas horas por dia passaram a estar praticamente o dia inteiro conectadas, sem a vigilância devida. Não há como se cobrar dos responsáveis legais nesse contexto onde a aula da criança é no equipamento eletrônico, onde a tarefa de casa é no equipamento eletrônico, a conversa com os amiguinhos é no equipamento eletrônico… Dificulta e muito esse cuidado dos que têm esse dever de cuidado.

Kleber Carvalho: Delegada, a senhora falou sobre o crescimento dos crimes de ódio, e alguns dos crimes que mais cresceram foram os crimes cibernéticos de neonazismo, que, na comparação entre os anos de 2019 e 2020, cresceram cerca de 740%. Denúncias de racismo e violência ou discriminação contra a mulher seguiram esse crescimento, com altas de, respectivamente, 147,8% e 78,5%. Além da pandemia, dessa questão do isolamento social, das pessoas passarem mais tempo com os aparelhos eletrônicos, a senhora vê algum outro fator como impulsionador do aumento desses casos de crime de ódio?

Luciana Mota: Não há como desvincular essa questão dos crimes de ódio de racismo, xenofobia, misoginia, com o momento político que o país passou a vivenciar a partir de 2016, com a eleição de um governo de extrema direita, onde as falas do presidente da República, dos gestores e do estado são falas que meio que permitem. Eu acho que isso é vivenciado no mundo, essa questão política desse modo pendular […], mas não há como desvincular o momento político que a gente vive. Em algum momento aí — de 2016, 2017 —, perdeu-se a vergonha de… Acreditando-se muito na questão do anonimato, de que “ah, pode tudo porque ninguém vai saber quem eu sou”. E aí, juntamente com isso, a gente tem aí um movimento político onde as pessoas que representam o Estado, na verdade praticam falas racistas, xenofóbicas. E quem tinha aquilo dentro de si se achou no direito de externalizar de forma que na minha opinião, muitas vezes ultrapassa a linha tênue, a questão da liberdade de expressão e a opinião para o cometimento de crime.

Eu acho que, de 2017 para cá, a gente viu uma explosão […] e que virou comum as pessoas expressarem pensamentos racistas e xenofóbicos de forma aberta e deliberada na internet. Eu acho de extrema relevância a repressão a esse tipo de crime. A gente vê aí diversas ações do STF [Supremo Tribunal Federal] em conjunto com a Polícia Federal, batendo nesses influencers que estimulam esse tipo de falas antidemocráticas, algumas criminosas que capitulam aí na lei de racismo. A lei de racismo foi amplificada e, no entendimento, entra xenofobia, entra misoginia, entram outras formas de preconceito.

Eu acho que talvez o boom das redes sociais e o movimento político contribuem para que as pessoas deixem de enxergar um limite entre até onde é opinião e onde começa o crime. Dentro dos processos mesmo, eu peguei muitos inquéritos em andamento, e a gente vê manifestações algumas vezes das autoridades que estão imbuídas de combater o crime, ainda com uma visão ultrapassada do tipo penal. “Ah, é brincadeira”; “Ah, é um site de humor”. Hoje mesmo eu peguei um inquérito e eu fiquei assim, chocada. Essa denúncia já existiu outras vezes, não foi na Polícia Federal, foi em um outro órgão em que a denúncia já existia e foi arquivada, onde o parecer era no sentido de que “não, é porque é um site de humor, é isso mesmo”. E eram falas nitidamente criminosas mesmo, que estão enquadradas dentro do tipo penal.

Por outro lado, se algumas pessoas se sentiram no direito de achar que cometer um crime é opinião e aí extrapolaram, eu também vejo algum avanço com relação às interpretações das normas, em que pesa o que eu acabei de falar: que ainda existem algumas autoridades que tem, na minha opinião, uma visão ultrapassada disso. Eu peguei um inquérito em que o fato era de 2015, que era um grupo de WhatsApp, de um pessoal até da Universidade Federal, de um curso que não era de Humanas, eu lembro bem. Você via o nível. […] As conversas tinham um negro, eu sei que o rapaz abandonou a faculdade. Ele era baiano, ele abandonou o curso. E aí você via o próprio posicionamento da universidade, isso posicionamento de 2015, na verdade. Esse inquérito, eu não sei por que razão foi ficando lá, e eu peguei nele está com uns 20 dias. Você vê os posicionamentos da universidade, eu tenho certeza absoluta que hoje não é mais aquele. E o posicionamento da galera do CA [centro acadêmico, composto por estudantes] do curso… Então eu acho, eu tenho a sensação — sem nenhum conhecimento mais aprofundado, nenhum dado técnico ou estatístico aí — , mas eu acho que evoluiu nesse sentido de, se os que eram racistas perderam a noção, eu acho que a sociedade como um todo vem se conscientizando mais de que “oh, essa brincadeira aqui não é mais brincadeira, o legislador resolveu dizer que isso aqui é crime”. Até os meus despachos, eu coloco todos nesse sentido de que, muito embora o site seja de humor, o legislador penal atribuiu um valor naquele tipo de conduta que ele acredita ser crime. Então, eu achando engraçado ou não, eu achando relevante ou não, aquilo ali é crime. E pronto. Está na legislação penal e pronto. Pensa diferente, vai atrás de mudar a legislação. Mas a legislação e o entendimento da legislação hoje, eu acho que ela já evoluiu. A gente teve aí uma involução nesse sentido aí, eu acredito que, devido ao momento político, por isso tantos crimes sendo cometidos. Por outro lado, esse dado que você trouxe, Marcos, pode ser uma evolução se a gente analisar. Não se denunciava. “Ah, não, é só uma brincadeira”.

De repente, esses dados que você traz, que são dados tirados dos sistemas de segurança pública, a gente possa ver […] de repente: “Ah, pode estar sendo cometido mais o crime por essas razões aí que eu estou cogitando”. Mas pode ser também que a sociedade mais consciente esteja denunciando mais também. Tem esses dois lados da moeda. Eu gosto de ser otimista nesse aspecto, de que os entendimentos quanto a essas questões de racismo, xenofobia, machismo, misoginia, acho que ela está evoluindo na legislação do mundo inteiro.

João Neto: E, para finalizar, a senhora comentou agora sobre tomar cuidado com onde a gente clica. Diante disso, a senhora teria alguma orientação sobre como a população poderia se proteger de crimes cibernéticos? E quais medidas tomar se alguém for vítima desse tipo de crime?

Luciana Mota: Primeira coisa que eu recomendo é entrar no site da Febraban [Federação Brasileira de Bancos] e procurar o material que ela disponibiliza. Eles são perfeitos nesse tipo de orientação. O pior é que as fraudes em que eu vejo o pessoal caindo muito hoje em dia não são […] fraudes bancárias em si. Muda muito o modus operandi, porque os bancos vão mudando as tecnologias e os hackers, os “cartõezeiros” vão acompanhando.

Hoje, a gente tem a história desses trojans [ou “cavalo de tróia”, que são links que direcionam o usuário a ambientes virtuais onde alguns dados são roubados], que eles mandam links… Vocês já devem ter visto reportagem sobre “promoções e tal”. Você clica, eles invadem o seu dispositivo e aí obtêm informações. A depender do banco e da forma como o aplicativo é modelado para estar no seu equipamento, ele consegue acessar às vezes a sua própria conta corrente para cometer a fraude, ou ele consegue acessar redes sociais. A última que eu vi foi isso. Eu acho que eu tenho uns três amigos que ou caíram fazendo depósito, ou era a própria pessoa que teve o Instagram hackeado. Nesses negócios de promoção, a pessoa clicou no link, um hacker invadiu o Instagram da pessoa e ele começou a postar no stories como se a pessoa estivesse vendendo alguma coisa e botava o pix, ou pedindo ajuda para determinada ação social, e aí botava o pix. [Colocava] nos stories de uma pessoa que tem muitos amigos e a pessoa é tida como séria. E aí a galera começa a fazer os pixs. Na verdade, a fraude não foi num sistema bancário como um todo, mas ela foi no Instagram. Então o cuidado primordial é no WhatsApp, aquela dupla senha que você bota. Não abrir emails […] de instituição financeira da qual você não é cliente. Aqueles cuidados básicos que a gente vê.

Agora, se foi vítima desse tipo de crime, muitas vezes imediatamente a pessoa vai procurar logo a polícia. É importante a comunicação da polícia, mas a polícia pode até achar o bandido, mas ela não vai achar o dinheiro. Muitas vezes, o povo liga para mim achando que a gente vai salvar… Aí um dia eu disse para um amigo aqui: “Amigo, a gente pode até achar o bandido, mas o seu dinheiro, a gente não vai achar mais”. Então eu acho muito mais urgente você bloquear a sua conta bancária, bloquear cartão, bloquear tudo o que for possível de ser bloqueado; comunicar imediatamente à instituição financeira na qual você tem conta; tentar já procurar o seu gerente para saber para onde o dinheiro foi, porque os próprios bancos têm um sistema de comunicação. Por exemplo, quando não era o bonito do pix, antes do dinheiro sair da conta de passagem, muitas vezes, se a gente comunicasse só “suspeita de fraude”, um gerente comunicando “suspeita de fraude” para o outro, ele já bloqueia o dinheiro. Ele já deixa ali uns dias até fazer uma auditoria, entendeu?

Então é muito importante a comunicação à instituição financeira e, posteriormente, a comunicação à polícia. Mas, sobretudo, para salvaguardar o dinheiro, o importante é você comunicar ao seu banco com a máxima urgência. Porque ele tem como comunicar ao banco que recebeu o dinheiro que aflige a origem de fraude.

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