Melquíades Júnior: “Sem inquietude, não há jornalismo”

Milenna Murta
EntreFios - tecendo narrativas
19 min readDec 5, 2023

Em entrevista ao EntreFios, o jornalista e empresário compartilha suas experiências acadêmicas, profissionais e pessoais, além das conquistas que alcançou durante sua trajetória

Por Arthur Paz, Clarisse Vieira Barbosa, Ellen Alves,
Henrique Jordan, Iasmim Melquíades,
Isabelle Barros, Isabellyvasconcelos e Milenna Murta

Melquíades Júnior no estúdio de TV do curso de Jornalismo da UFC / EntreFios

Entusiasta da vida desde pequeno, Melquíades Júnior sempre teve o sonho de mudar o mundo. Jornalista preto nascido na cidade de Limoeiro do Norte, no Ceará, denomina-se “sonhador”, “observador” e “contador de histórias”. Graduado pela Faculdade Integrada do Ceará (FIC), em Fortaleza, coleciona diversas conquistas nacionais e internacionais.

Vencedor do Prêmio Vladimir Herzog, na categoria Melhor Produção Jornalística em Texto, o profissional acumula narrativas de destaque envolvendo temáticas cidadãs. “Viúvas do Veneno” e “Chagas, a vida após o barbeiro” estão entre suas séries-reportagens premiadas, sendo a primeira de cunho nacional e a segunda, internacional.

Em entrevista concedida à equipe de reportagem do EntreFios em 14 de novembro de 2023, Melquíades Júnior retorna ao ambiente acadêmico para recapitular sua trajetória, transformando o narrador em protagonista. A partir das vivências de sua infância, de seu gosto pela leitura e de sua vontade em se desafiar, o entrevistado relembra as realizações e expõe suas expectativas quanto ao futuro.

Confira a entrevista em vídeo e a transcrição logo a seguir.

Iasmim Melquíades: Melquíades, nessas mais de duas décadas de carreira, você deve ter vivenciado várias nuances do jornalismo. Quais são os sentimentos que você tem ao estar de volta ao ambiente acadêmico?

Melquíades Júnior: Olha, é bem interessante que, quando a gente chega a isso, duas décadas, vinte anos de jornalismo, a gente olha para trás e se vê vinte anos atrás e nas outras pessoas que nos tornamos no meio do caminho até ser quem nós somos hoje. Eu diria que, ainda hoje, quando olho para trás, vejo os meus erros, os meus acertos, aquilo que talvez eu fizesse de uma outra forma e outros do mesmo jeito, mas eu continuo um entusiasta. Eu continuo uma pessoa que olha para o jornalismo. Eu olho para o menino jornalista de vinte anos atrás e ainda me vejo. O jornalista é um sonhador. É aquele sonho de mudar o mundo. De alguma forma, interferir na realidade que a gente atravessa. Eu diria que todos nós, de alguma forma, mudamos um pouco o mundo, porque mudamos nós mesmos. Então, talvez, se eu não mudei ao redor, mas mudei a mim mesmo, de alguma forma vou interferir nesse ao redor.

Eu vejo um jornalismo que teve várias transformações e continua se transformando, mas que não precisa perder a essência, que eu acho que é a essência de humanidade que o jornalismo carrega. O jornalismo é feito por pessoas, para pessoas, com pessoas, não importa quantas máquinas a gente utilize para criar reproduções. Mas, então, quando eu olho para esse jornalismo desses vinte anos, tem todas as transformações. Sou grato por ter participado de várias transformações, também tenho muitas críticas. Eu tenho críticas ao trabalho jornalístico, ao ensino do jornalismo, inclusive em alguns ambientes — é por isso que eu sou muito honrado de estar na UFC, também por conhecer várias nuances do ensino, da comunicação.

Hoje, quando olho para esses vinte anos, acho que dei um pouco de contribuição. Talvez não o suficiente, acho que nunca será o suficiente, mas sempre fico na preocupação de se eu pude exercer o meu papel nas pesquisas, nas produções, nas reportagens de um modo geral, porque o jornalismo, eu sempre digo, é uma missão. Jornalismo não é para você aparecer, você ter “ah, apareceu na televisão”. Tudo bem, às vezes o jornalismo exerce o instrumento da vaidade, só que o instrumento do jornalismo é, sobretudo, o instrumento da coragem, da verdade e da vontade de modificar, para melhor, o mundo.

Alguns amigos diziam que era sarna para me coçar, eles diziam: “Não, você só se mete em confusão”. Não é que eu só me metia em confusão, é que, onde havia um desequilíbrio, eu gostava de observar e ver como que no jornalismo, como que na comunicação, posso ser não um mediador desse desequilíbrio, não é isso, mas, de alguma forma, participar do processo de equilíbrio das coisas. Quando digo “equilíbrio das coisas”, falo um pouco da nossa função social independentemente do jornalismo, mas como ser humano. Então, o que a gente pode fazer para melhorar esse mundo? Se a gente ver certas coisas que estão erradas, o quê que a gente pode fazer para melhorar ao dar voz a quem não tem voz. O jornalismo é muito isso, é muito de você dar voz. Porque tem outros sujeitos que têm voz o quanto quiserem, outros não têm tanta voz, então eu, como jornalista, me colocava e me coloco nessa posição de tentar ser um instrumento especialmente para quem não tem essa voz.

Arthur Paz: Agora, Melquíades, concebendo o jornalista como contador de histórias reais, gostaríamos de saber as suas influências para a reafirmação dessa profissão enquanto ferramenta de denúncia social. Quais são suas contribuições para essa área e por que você se interessou por ela?

Melquíades Júnior: Olha, eu sempre digo que as maiores referências que tenho nesse processo de contar histórias são as pessoas comuns, conhecer as pessoas comuns com suas histórias. E cada um de nós tem uma história, nós temos as nossas histórias, temos várias, mas eu acho que o jornalista é, sobretudo, um observador. Então, ao observar os outros, sejam os outros contando suas histórias ou não, apenas vivendo suas histórias, isso me servia de inspiração para as histórias que eu iria contar. A inspiração é o desejo de transformação social.

Eu sempre digo que sem inquietude, não há jornalismo. Então, o meu jornalismo — e eu digo o meu jornalismo não como uma posse ou propriedade, mas o meu jeito de fazer jornalismo, para ficar mais claro — é um jornalismo de inquietação. É de observar e entender que, nesse observar a história dos outros, elas merecem ser contadas, elas merecem ecoar. Isso se dá por meio de que? Da escuta. Então, não é que a gente conhece uma boa história, caiu de paraquedas e conheceu uma boa história e conseguiu ecoar aquilo. Eu acho que principalmente, aliás primordialmente, a gente precisa saber ser bons ouvintes, bons escutadores de histórias. Conversar com as pessoas é tentar aguçar os meus ouvidos para escutar da melhor forma. E quanto melhor a gente escuta, melhor a gente sabe contar. E isso é um exercício constante, não é algo que você aprende com uma fórmula e vai adotar aquilo ali. Tem técnicas e tem técnicas. Quando eu vou conversar com alguém, para exercitar minha escuta, também convido o outro a exercitar a escuta dele. Mas é uma proposta de trazer ali alguma igualdade, alguma paridade que nunca haverá, mas é a minha forma de me aproximar. Se eu chego na casa de alguém, nos confins do universo, e sento na casa dessa pessoa — olha só, eu já invadi o espaço dela e vou entrevistá-la, vou perguntar a ela; é uma invasão dentro de outra. Então, eu chego e coloco um pouco sobre quem sou. Não para traçar minha biografia, mas para dizer porquê estou ali. Eu tento conversar com a pessoa. Eu falo para poder escutar e, também, preciso saber quando calar e apenas escutar. E isso é um exercício que dura uma vida. O quê que ajuda nisso? Escutar as pessoas, ouvir cada vez mais pessoas.

Quando você coloca verdade no que você faz, no que você vai conversar com as pessoas, você consegue extrair mais delas. Se você é sincero, se você entrega sinceridade, você recebe sinceridade. E isso é mágico. É possível, em cinco minutos, de repente a pessoa contou a vida dela ali, contou nuances da vida dela que normalmente ela não contaria. E, às vezes, ela se pergunta “nossa, eu não esperava que eu ia contar isso”, mas é porque fluiu a conversa. É sobre olhar no olho das pessoas. É daí que vão surgindo as histórias. Porque, antes das grandes histórias, surgem as grandes sinceridades, ou seja, as pessoas, de alguma forma, se abrem e eu tenho que me abrir para elas.

É sobre ouvir, é sobre saber escutar, é sobre saber olhar. E você só vai conseguir verdade do outro se você for verdadeiro. Por que que você está ali, sabe? Mas isso ai não é você respondendo para pessoa, é respondendo para você mesmo. Isso vale para qualquer profissão. Por que eu estou fazendo o quê estou fazendo? Por que eu quero isso que eu quero? Vou fazer o que? Vou levar para onde? Quando a gente se responde essas coisas, a gente vai com segurança, sabe?

Então, eu fazia muito isso. Chegava nos locais e “olha, eu estou aqui por isso, por esse motivo” [exemplificando a maneira como agia ao chegar nos locais] e colocava até minha visão, de certa forma, ali. Eu não chego como um jornalista, não chego tão robô ou tão máquina quanto os instrumentos que carrego, como se não tivesse humanidade tal qual o gravador, tal qual a câmera, o microfone, para conversar com as pessoas. Pelo contrário, eu consigo perceber que elas falem quando elas percebem que posso ser como elas. Que, no final das contas, eu sou como elas, porque somos pessoas.

Henrique Jordan: Melquíades, voltando para quando você falou da sua relação com a escrita, como é que era a sua relação com a escola no seu período de educação básica?

Melquíades Júnior: Eu gostava muito de estudar. Enfim, nunca me qualifiquei como inteligente, mas como alguém que era, talvez, estudioso — gostava muito de ler. E, também, olhando para esse bem atrás da educação básica, eu tive a oportunidade de, desde a quinta série — acho que hoje é o quarto ano, sexto ano, não lembro –, tenho reidade na educação básica. Eu já tinha aulas de filosofia na escola onde estudava e tive aula de filosofia até o ensino médio. Então, eu tive da minha quinta série ao ensino médio esse estudo da filosofia, acho que isso me ajudou muito enquanto pessoa, enquanto ser humano. Eu estudei em escola particular, sempre como bolsista nessa escola particular, e ali eu exercitava. Eu passei a gostar muito mais de ler quando comecei a fazer teatro. O teatro foi, assim, um divisor de águas, acredito, no meu hábito de leitura. Primeiro que você já perde a timidez, você melhora a sua articulação, conversa. Então, assim, o teatro me ajudou muito.

Eu diria que não era um estudante dedicado, por exemplo, à redação, português. Às vezes eu pedia ao professor para sair da sala, porque queria estudar outra coisa que estava com dificuldade e, como a professora já sabia das minhas notas e tudo, confiava. Então, muitas vezes eu saía da sala, porque queria estudar outra coisa, porque já tinha aprendido o que ela me ensinava. E, assim, eu não gostava muito de fazer redação de escola não. Eu fazia, produzia redação ali, mas nunca foi algo que achasse que “vou descobrir bem a escrita ali na redação da escola” [falando como se estivesse no presente]. Só posso falar pelo meu exemplo, pelo meu caso ali, nada contra. Eu acho que deve ser estimulada cada vez mais a produção de redação para todo mundo, não importa o que as pessoas vão fazer na vida, no resto da vida. No meu caso específico foi isso, acho que esse acesso a diferentes leituras.

E eu sempre gostei muito de ler jornal. Sempre li muitos jornais do mundo todo. Do mundo todo. Exemplo: o padre da minha cidade ia uma vez por ano para a Alemanha e ele trazia jornais de lá. E eu pedia a ele para trazer esses jornais para mim. E ele assinava a Folha de São Paulo, então eu ia todo dia buscar a Folha de São Paulo do dia anterior. Porque eu ia tendo acesso àquele tipo de texto, àquelas informações. Então, eu lia muito. As pessoas [diziam] “você vai ler esse jornal de três dias atrás? Cinco dias atrás? Uma semana atrás?” [citando os questionamentos das pessoas]. Sim, vou ler. Porque não era só sobre notícias, eram os editoriais, eram as colunas, eram os artigos. Enfim, eram todos. E eram as reportagens. Eram as grandes reportagens

Foi muito disso. De gostar de ler, sabe? De gostar muito de ler. Escrever também, mas nunca de escrever para mim. Acho que talvez por isso que eu não gostava sempre de fazer redação na escola, porque achava que o quê eu tinha que escrever tinha que ser endereçado para alguém. Era bom escrever cartas, cartas de verdade para endereçar as pessoas. Então, é isso. Mas a minha educação básica, hoje eu não consigo criar uma análise de como foi todo o meu processo, apenas lembrar daquilo que achei de mais importante. O ensino da filosofia, a prática do teatro e muita leitura.

Henrique Jordan: Você falou da sua relação com os jornais. Agora, indo para o seu trabalho jornalístico, ao longo da sua trajetória, nós percebemos a sua afinidade com o jornalismo investigativo, que se pauta na apuração criteriosa e aprofundada dos fatos. Quais os motivos que o fizeram seguir essa abordagem e esse modelo de escrita?

Melquíades Júnior: Eu acredito que tem muitas histórias que, para serem melhor contadas, elas precisam ser melhor entendidas. Nem tudo que se entende vem da voz do outro, da palavra do outro. Muito do que se entende é exatamente pela necessidade da pesquisa, seja a pesquisa de dados ou a pesquisa de memória dessas próprias pessoas. Então, fazer esse exercício de aflorar a memória das pessoas.

Primeiro que eu acho que todo jornalismo é investigativo ou deve ser investigativo. O jornalismo é pesquisa. Não é apenas uma narração automática do que se vê, já que tudo que se vê está inserido num contexto, e só se entende o contexto quando há pesquisa para isso. Agora, se eu pegar pelo viés do jornalismo investigativo mais clássico, aquela coisa de fazer uma investigação, de colher documentos, ter fontes sigilosas, também era uma forma de trazer à luz certos acontecimentos. Por que? Sempre tem histórias que vai ter alguém que não quer que elas sejam contadas, porque vai prejudicá-las. Aquilo que é no fórum pessoal, todo mundo tem esse direito. Mas, quando essas histórias, de alguma forma, interferem na sociedade em diferentes aspectos, é um direito nosso de jornalista investigar, e um dever também. Eu fiz várias investigações de passar dias e dias viajando, ouvindo sigilosamente pessoas que, muitas vezes, não queriam falar sobre aquilo, pelos riscos que envolvem, mas, quando elas se permitiam a isso, abria-se ali uma porta e muitas informações vinham. Muita pesquisa também, muito material.

Eu vou citar algum exemplo aqui: eu fiz uma reportagem sobre a chacina de Milagres, que foram 14 pessoas mortas, sendo seis reféns em Milagres — que é uma cidade do Cariri — que, em dezembro de 2018, um grupo de criminosos tentou explodir dois bancos e colocou algumas pessoas como reféns e a polícia sabia um dia antes, estava monitorando isso, e foi acompanhar esses criminosos no processo de arrombamento. A polícia não contava que eles tinham pego reféns. A polícia quis executar, e executou, de certa forma, covardemente, porque a gente sabe que a polícia tem que usar de inteligência, e não sair fuzilando as pessoas pelas costas. E o que acontece, se tivessem sido só “criminosos” [faz gestos de aspas], estava tudo ok — CPF’s cancelados, como se dizia –, mas havia seis pessoas de uma mesma família. Aliás, sete pessoas, sendo cinco de uma mesma família, naquele ambiente. E a polícia tentou, de diversas formas, ocultar o estrago que tinha feito. E eu cheguei uma semana depois que tudo aconteceu e comecei a apurar aquela história, e comecei a descobrir como tinha se dado toda aquela história, toda aquela situação.

Eu ouvi dezenas de pessoas. Imagina um tiroteio de 20 minutos. 20 minutos de tiroteio ouvido por, pelo menos, quinze, dezesseis casas ao redor. Eu estive em todos esses locais ouvindo, na perspectiva dessas pessoas, a história. Cada uma contando ao seu modo. Eu fui montando esse quebra-cabeça ao ponto de, antes da polícia admitir que errou, mostrar o erro da polícia.

Isso causou um rebuliço, porque os policiais da tropa de elite da polícia militar foram afastados depois dessa minha reportagem, recebi “n” [inúmeras] ligações, recebi uma série de situações que eu sempre tento criar uma barreira. Eu sempre busquei ter alguns cuidados para me blindar um pouco de certos processos de investigação e de ter a repercussão disso. Ninguém se exime, ninguém escreve nada impunemente, a gente está sempre sujeito a riscos, mas eu percebia que estavam querendo esconder toda a história. Eram seis pessoas que não tinham nada a ver com aquilo, que foram executadas pela polícia — inclusive crianças, inclusive duas crianças. Então, foi essa inquietação que me fez tentar entender como é que foi todo esse processo. Eu comecei a fazer toda uma investigação. E, claro, fui atrás de fontes também.

Eu sempre fui de investigar muito para nunca ser apontado como jornalista mal informado. Porque, mesmo assim, apontavam-me. Só que o quê eu fazia de volta? “Por favor, aponte o erro” [referindo-se a quem lhe apontou como mal informado]. Então, eu sempre fiz um exercício hercúleo na minha pesquisa, na minha produção, para trabalhar sempre com o contraditório.

E eu estou sujeito a erros. Todos estamos sujeitos e, enfim, eu tive meus erros. Mas naqueles casos mais sérios, que foi investigação exaustiva, se alguém apontasse, eu pedia: “Olha, pois me diga onde está” [o erro]. E a pessoa muitas vezes se calava, porque foi um exercício muito forte de apuração, de cuidado. Eu não posso usar como justificativa de que quero viver para me calar. Eu tenho o dever de não deixar que isso se cale, sabe? Então, é um pouco isso, é essa missão de ser o jornalista.

A investigação sempre foi nesse objetivo de trazer credibilidade ao que eu estou colocando, porque sempre vai ter alguém para dizer que “não foi isso, não foi aquilo”, e eu tinha como provar. Então, sempre busquei provas e, para isso, sempre li muito. Em que sentido? Pesquisa. Eu sempre li trabalhos de dissertação no mestrado, tese de doutorado, trabalho de graduação. Eu sempre fiz essa ponte com a universidade. Sempre que eu ia fazer uma grande reportagem, fazia uma ponte com a universidade para ver o quê que já se estava pesquisando sobre aquilo. Sempre. Então, quando eu fiz essas grandes reportagens, no mínimo, li uma tese. No mínimo, li uma dissertação. Ainda que elas corressem em paralelo, mas faziam parte do assunto. Ainda que elas orbitassem, não era especificamente sobre o que eu ia trazer. Eu digo que gosto de estudar a história que vou contar. E o estudar, a gente pode traduzir por investigar.

Arthur Paz: Você mencionou que coleciona narrativas de destaque, um exemplo foi a série-reportagem “Chagas — A Vida Após o Barbeiro”. Como se dá o processo de escrita desse tipo de material especial?

Melquíades Júnior: Primeiro, conversei na UFC, aqui na universidade, com o pessoal da área da saúde, da farmácia, que já tinha um trabalho com pacientes que fazem tratamento da Doença de Chagas — que é uma doença que não tem cura, que foi descoberta mais de 110 anos atrás, mas é conhecida, inclusive, como uma doença de pobre, uma doença que é negligenciada. E eles têm um trabalho sobre isso até hoje, que é referência nacional, que é o exame, a coleta e o diagnóstico da doença para essas pessoas. Então, eu pedi algumas sugestões de fontes de pessoas que poderia visitar.

Foi muito de conversar, de saber dessas dores e dessas dificuldades dessas pessoas de conviver com a doença, mas, também, saber como que se deu o diagnóstico, de fazer o exercício de memória dessas pessoas. Por quê? Ao contar os sintomas, ao contar o procedimento que fez para ir ao médico, ao contar tudo isso e ao escrever sobre isso, eu poderia também mostrar às pessoas, de um modo geral, como que acontece, como é que é esse processo, como é que são os sintomas. É um pouco do exercício de utilidade pública do jornalista. Eu vou contar as histórias dessas pessoas, porque elas são muitas, elas existem, e muitas pessoas são portadoras e não sabem. E um tratamento precoce alonga, prolonga a vida das pessoas. Em Chagas, foi esse processo.

Eu cheguei sempre muito discretamente, porque, no interior, quando você chega num lugar, quando você sai, o vizinho pergunta o que você estava fazendo ali. Eu queria ouvir uma história que, às vezes, talvez o vizinho não sabia e não precisaria saber. Então, foi nesse processo de ir sozinho ouvir essas histórias. E daí surgiu ‘Chagas, a vida após o barbeiro’, colocando diferentes situações de quem é portador da doença — seja porque foi o coração crescido, seja porque foi o intestino que foi contaminado, ou, enfim, diferentes partes do corpo. Um que foi uma criança, outro que foi uma gestante, outro que foi um idoso. Então, eu coloquei diferentes perfis de pacientes, digamos assim, de portadores.

Até hoje, o Ceará deve ter em torno de 20 mil casas de taipa — que é onde é a moradia do barbeiro [inseto que transmite a Doença de Chagas]. Chagas foi muito esse processo isolado, discreto, de colher histórias e depois trazer essas histórias, narrando essas memórias dessas pessoas sobre como que elas descobriram essa doença. E, no meio disso tudo, eu já narrava como é que foi, o quê que o médico mandou fazer, o quê que o médico disse, qual era o procedimento. Eu queria colocar tudo isso no mesmo texto, no mesmo enredo. Diferente do que fiz nas Viúvas do Veneno, por exemplo. Mas Chagas foi esse processo, foi um exercício para mim. Foi um exercício que gostei muito de ter feito, porque é um desafio e eu queria me desafiar. Aliás, eu sempre estou querendo me desafiar.

Iasmim Melquíades: Nos últimos anos, a gente vem presenciando ataques ao Jornalismo e a descredibilização da profissão, bem como a queda da exigência do diploma, que foi uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, o STF, em 2009. A gente queria saber como que você se mantém motivado e inspirado diante de todas essas mudanças para entregar um conteúdo jornalístico de qualidade.

Melquíades Júnior: Eu acredito que o jornalismo é cada vez mais necessário exatamente pelo que a gente vive de que, a gente estava falando de contar histórias, mas o jornalismo é contar histórias reais. Quando a gente vê esse ataque, essa pulverização de histórias irreais, para não dizer surreais, o jornalismo se torna mais necessário. O ensino do jornalismo se torna mais necessário. A exigência do diploma se torna mais necessária, porque é uma forma de dar filtro, de dar critério. Se não, todo mundo basta dizer que é jornalista e, nessa palavra, jornalista é acreditar que carrega todos os instrumentos que a gente usa exaustivamente para chegar a uma informação. E a gente sabe que não é assim. Porque, sempre, o jornalismo vai conseguir, sendo um trabalho bem feito, diferenciar-se do não jornalismo. E é aí que a gente prova para os outros a nossa necessidade, a necessidade que a sociedade tem da imprensa, do jornalismo sério. Porque jornalismo sério é democracia.

Arthur Paz: Em 2018, você compôs a crônica “Pai, por que você é marrom?” a partir da qual são discutidas de quais formas a conscientização de cor e a afirmação de identidade interferem na sociedade. Agora, em 2023, você foi finalista no prêmio Mais Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira. Queremos saber de você quais são as contribuições de pessoas negras na comunicação.

Melquíades Júnior: A pessoa negra, quando está em um ambiente em que ela é única, ou que ela é minoria, muitas vezes precisa fazer melhor do que os outros para poder ter o mesmo reconhecimento. Então, exatamente por isso que tudo aquilo, colocando pelo aspecto da comunicação e do meu trabalho, a gente tenta fazer da melhor forma, trazer uma excelência àquilo, que também é um exercício, não só de jornalismo, mas também um exercício de me colocar como sujeito negro na sociedade, não só um sujeito jornalístico — mais do que isso, como uma pessoa negra na sociedade. E é exatamente por saber da importância disso que eu escrevi aquela crônica que era de um relato da minha filha de quatro anos antes de quando escrevi. Mas eu fiquei com aquilo, fiz uma foto daquele momento, e é uma pergunta muito perspicaz e simples. E uma pergunta muito de criança.

Ali eu pude colocar sobre essa minha trajetória como jornalista, de estar recebendo os prêmios pelo país e, ainda assim, sendo minoria. Estive na Suíça em 2019. Então, imagina que tinha 39 jornalistas de treze idiomas no palco e, desses 39 jornalistas, só tinha dois negros: eu e um jornalista de Camarões, na África. Perceba como há uma relevância de ocuparmos espaços, até para que, também, as histórias possam ser melhor contadas. Ao contar histórias, a gente vai trazer todas as lutas que, de alguma forma, orbitam com a gente.

Eu entendo que a crônica foi um pouco desse grito. Foi uma forma de gritar silenciosamente, discretamente, e gerar um certo constrangimento. O Preto Zezé é um que sempre fala sobre a importância do constrangimento pedagógico, que o homem negro, a mulher negra, acaba aplicando às pessoas.

Ellen Araújo: Melquíades, no mês de outubro [de 2023], você participou da Expofavela, grande feira de empreendedorismo voltada ao público das periferias da cidade. Enquanto jornalista palestrante, de que maneiras você espera que a sua fala e a sua presença no evento impactem a sociedade?

Melquíades Júnior: Eu acho que é para que a gente possa perceber que a gente tem voz e que a gente possa amplificar a nossa voz. Eu vou tentar responder resumidamente em uma situação que passei que achei muito interessante e trago até hoje. Eu estava no Rio de Janeiro recebendo o prêmio Petrobrás, no Teatro Municipal no Rio de Janeiro, que é um teatro lindo, e eu era um dos finalistas e só lá eles anunciaram os vencedores — no palco e tudo. Eu fui anunciado o vencedor, fiz o meu discurso e desci. Quando voltei para a plateia, dois jornalistas negros disseram assim: “olha, a gente adorou ver você lá. Nós não ganhamos, mas você ganhou, é como se a gente tivesse ganhado”. Eu nunca os tinha visto na vida e foi como se eles tivessem ganhado. Aquilo ali foi muito forte e eu carrego até hoje, ou seja, a importância da representatividade.

Então, estar lá na Expofavela falando, articulando, criticando, provocando, era uma forma de provar que qualquer um pode fazer o mesmo. Quando eu digo qualquer um, não como quem menospreza aquilo que estou fazendo, mas que qualquer pessoa que possa se perceber como sujeito crítico, que possa estudar, que possa pesquisar, pode estar fazendo também aquilo ali, que foi o que fiz. Eu tento responder dessa forma: a importância dessa representatividade. É por isso que eu vejo como missão. Esse convite de vocês, vejo também como uma missão de estar aqui. Porque gostaria de ver um jornalista como eu sou agora dizendo isso para o Melquíades de vinte anos atrás, que eu não tinha essa referência, que eu não conhecia. É exatamente por saber que posso trazer essas referências, que vou a esses espaços e tento fazer o melhor.

Henrique Jordan: Melquíades, para a gente encerrar, você poderia falar para a gente um pouco das suas próximas produções jornalísticas? Podemos esperar de você produções jornalísticas de fôlego, que parecem ser sua marca registrada no Jornalismo?

Melquíades Júnior: Eu sempre me coloco em projetos para dez, vinte anos na frente, não sei o quanto vou viver, mas vou, pelo menos, projetando. No momento, estou muito voltado para o trabalho na minha agência, em que produzo materiais institucionais, ou seja, estou um pouco de folga da reportagem de fôlego. Mas eu vou ser repórter até morrer, então tenho os meus projetos sim, e eles são — no jornalismo, no material, nas reportagens de fôlego — a produção de livros. Na verdade, já tenho livros encaminhados de assuntos diferentes e preciso só consolidar alguns materiais para publicação, de alguns assuntos que já escrevi inclusive. Então, o meu próximo passo vai ser, quem sabe daqui a um ano, lançar um livro sobre um dos assuntos e depois outro. Porque, na verdade, são vários assuntos que eu já acompanho e editoras, inclusive, nacionais interessadas em publicar o que escrevo. Eu só preciso encontrar o melhor momento para consolidar tudo isso.

Outros assuntos vão surgindo com o tempo. A gente sempre tem uma necessidade de escrever. Então, é o que sei para agora, hoje para amanhã. Mas, de repente, amanhã já se soma outra situação. Eu diria até que a ocasião faz a reportagem. Mas é um pouco isso: não deixar de exercitar, não deixar de escutar as pessoas, continuar contando essas histórias e trazendo essas pessoas para o conhecimento de todos nós. Porque, se eu acho que algo das minhas palavras pode transformar, mais ainda são as histórias dessas pessoas que nos atravessam. São elas que são capazes de gerar a transformação que aquele jornalista de vinte anos atrás que iria mudar o mundo e quer mudar até hoje.

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Milenna Murta
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