O corpo gordo da miss

Rayanelopesmb
EntreFios - tecendo narrativas
5 min readFeb 10, 2022

“Meu corpo gordo” é o título de um dos inúmeros textos escritos por Katyane Rocha, ex-miss plus size, doutoranda em Linguística Aplicada e apaixonada por romances e poesia

Por Rayane Lopes

Katyane Rocha/ Arquivo pessoal

Ao longo de sua vida, Katyane teve vários amores, alguns tóxicos e abusivos, alguns confusos e estranhos, outros simplesmente platônicos. De todos esses, apenas um resistiu ao tempo e foi frutífero: a escrita.

A relação de Katyane com a escrita é íntima e data de muito tempo. Ainda no ensino fundamental, foi apresentada à poesia e foi amor à primeira vista. Mesmo antes disso, ela tinha uma facilidade e um carinho muito grande com a escrita. “Eu sempre escrevi diários, cartinhas, então sempre fez parte da minha vida a escrita”, detalha.

O seu “corpo gordo” sempre esteve presente em sua vida. Desde a infância, ela sofre bullying por não estar dentro de um padrão estético estabelecido socialmente. Uma forma de se refugiar de tudo e todos sempre foi a escrita, onde ela transformava dor em poesia.

A adolescência chegou e, com ela, vieram mais traumas, mais situações de constrangimento, amores não correspondidos e mais poesias. Cada vez mais ela se fechava emocionalmente para o mundo e se trancava em si. Aprendeu a guardar dores e mágoas. “Fui sufocando esses sentimentos, e isso foi me adoecendo”, conta.

Mais uma vez, ela relembra a relação que tinha com o próprio corpo, de não aceitação e de ter criado uma imagem destorcida de si. “Fisicamente, eu era linda e, sinceramente, eu não me via linda, eu me via monstruosa. E hoje, com a minha idade, eu não consigo compreender o tanto de tempo que eu perdi sofrendo me achando monstruosa, sendo que eu era linda”.

O amor pelos livros tornou Katyane professora muito nova. Foram muitas emoções a cada concurso no qual era aprovada e muita felicidade a cada novo aluno que inspirava. E não foram poucos — e quem diz isso, caro leitor, não é ela, é a autora deste texto, ex-aluna, estudante de Jornalismo e com uma escrita mais literária que o usual.

Ela tinha um projeto chamado “Baldinho da Leitura”: em um balde, ela levava os best sellers do infanto-juvenil, que tinha em sua casa, para os seus alunos do Fundamental II. Talvez ali tenha sido o primeiro contato de muitos com a leitura e a poesia.

Tornou-se amiga e confidente de muitos alunos, nas feiras de ciências — mesmo sendo professora de português, ela sempre esteve envolvida. Contudo, apesar do amor e da dedicação envolvida em todo o processo, com o tempo, o seu relacionamento com a docência e com os alunos acabou sendo desgastados, vindo a sofrer gordofobia dentro da própria sala de aula.

“Fui me desgastando psicologicamente e hoje optei por ter uma vida psicológica mais saudável e, por isso, eu estou afastada de sala de aula”. Até pouco tempo atrás, ela era professora readaptada pela prefeitura e pelo estado devido à sua saúde mental. Hoje exerce o cargo de formadora. “Eu sou uma professora que forma outros professores e eu me sinto realizada nessa função”, avalia.

Infelizmente, a literatura não a ajudou a fugir dos comentários e olhares que recebeu durante muitos anos em sala e fora dela. O preconceito e a gordofobia foram motivos que agravaram ainda mais o transtorno de ansiedade e de depressão.

Ela comenta que, por achar que o problema era externo e não interno, em um momento da sua vida, acabou se submetendo a uma cirurgia. “Cheguei a fazer uma cirurgia bariátrica. Quer dizer, eu passei por um procedimento altamente invasivo, em que eu poderia ter morrido para satisfazer os olhares dos outros”, relembra.

Meses após a cirurgia, ela se viu novamente frustrada. Os quilos perdidos voltaram. Depois disso, ela percebeu que não estava travando apenas uma luta contra a obesidade, mas também contra a ansiedade e a depressão — enquanto sua mente não estivesse saudável, seu corpo ainda não estaria preparado para aquela luta.

Muitos anos se passaram; um mestrado foi feito; muitas dores e mágoas em relação ao seu corpo se transformaram novamente em poesia e diários; muita terapia foi feita. Até que ela encontrou outro amor, além da escrita: o próprio.

Katyane descobriu o Miss Plus Size Ceará e se redescobriu como mulher. Passou a se aceitar, a se cuidar e a se perceber como um corpo que merece ter bons olhares, um corpo que merece ser bem cuidado.

Ela conta que, antes disso, não se importava tanto com vestuário ou com a forma como se apresentava e não sentia prazer em se maquiar. A partir do concurso, tudo mudou: ela passou a adquirir uma vaidade que a ajudou a se empoderar e a se impor diante da sociedade.

Katyane Rocha em ensaio fotográfico para o Miss Plus Size Ceará/ Arquivo pessoal

Ela relata que, mesmo sendo miss plus size, percebia e sentia a pressão e os padrões que o mercado da beleza impunha sobre ela. Para modelar, os lojistas, na maioria das vezes, dão preferência às modelos que são gordas menores e ainda há um preconceito com gordas maiores.

“Eu era miss, mas eu queria também ser modelo, e eu senti falta de receber o convite para esse tipo de trabalho. Eu creio que é porque eu sou uma gorda maior”. Ela comenta que muitas vezes é o “perfil” da loja que trabalha com formas menores e acaba não englobando todas as mulheres.

Atualmente, ela não participa mais do concurso, pois admite que, embora o evento promova inclusão, é algo que exige muito tempo e dedicação. Afirma ter sido feliz enquanto participava do concurso, mas agora está envolvida e imersa em seu doutorado e acredita que é um novo ciclo fundamental. Assim como o miss plus size foi fundamental que ela aprendesse a se amar e se aceitar.

Hoje, o ambiente quase caótico de seu quarto denuncia que ali, além de uma leitora e escritora, habita também uma mulher vaidosa, com muitas peças de vestuário personalizadas, vários itens de maquiagem e que a auxiliam no exercício diário do autocuidado e de se sentir bem consigo mesma. A terapia é outro ato de amor próprio praticada semanalmente. Aos poucos, ela vai aprendendo a lidar com a dor e com as mágoas causadas por uma sociedade ainda mais quebrada.

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