“Meu sonho era ter uma família, a minha família”

Giovanni Scomparin
EntreFios - tecendo narrativas
5 min readJul 13, 2023

Com olhar repleto de nostalgia e orgulho, Glaucia de Melo compartilha sua jornada permeada pela superação das adversidades da infância e pela profunda vontade de construir seu lar

Por Giovanni Scomparin

Glaucia de Melo na praia da Taíba, com sorriso genuíno por estar com seus filhos / Arquivo Pessoal

A conversa se desenrolou no aconchego do quarto, e, inicialmente, Gláucia hesitou. Ela sugeriu outros nomes, sobre os quais acreditava serem mais interessantes para se traçar um perfil. Compreendo-a, mas algo dentro de mim insistia que deveria ser ela. Assim, persisti. Tanto ela quanto eu somos teimosos em nossa essência.

Ela relutou, considerando trivial sua própria história. Repreendi-a, afirmando que não existe uma história de vida insignificante e que as pessoas que lerem o perfil poderão formar suas próprias opiniões sobre sua importância.

No fim, Gláucia ainda questionou: "Por que essa entrevista? Por que precisamos disso? Fale o que você sabe sobre mim, você já me conhece". No entanto, a verdade é que eu não a conheço completamente, não da mesma forma como alguém conhece a si mesmo. Não sou capaz de penetrar profundamente na essência de alguém tão extraordinário e virtuoso feito você, mãe. E é exatamente por esse motivo que sinto um certo receio de produzir este perfil.

Glaucia de Melo Sampaio nasceu em Fortaleza, em 1978. Ela é filha do meio de Ivanni de Melo Sampaio e Emanuel da Cunha Sampaio e tem três filhos. Embora tenha trilhado o caminho da Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), sua vocação encontrou outros rumos.

“Fui pedagoga apenas dos meus filhos”, costuma dizer, argumentando que seu amor e sua dedicação voltaram-se inteiramente à educação e ao cuidado de sua prole. Ao longo de sua jornada, ela se aventurou por diferentes trilhas profissionais, atuando como secretária ou trabalhando com roupas de festas.

No entanto, seu destino encontrou seu propósito mais profundo quando se tornou uma operadora de emergência no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), destacando-se por sua empatia genuína e pela habilidade de enxergar a humanidade em cada chamado de socorro.

Com um coração carinhoso, que expressa amor por meio do toque físico, das risadas contagiantes e até mesmo dos choros liberadores, Gláucia é uma mulher de timidez ao falar de si mesma, mas com uma vontade infindável de compartilhar histórias sobre os outros, especialmente de seus filhos. Ela é materna e protetora, por vezes estressada e dramática, mas sempre carrega consigo uma fé inabalável em Cristo.

Em seu corpo e em sua alma, ostenta cicatrizes, símbolos de suas batalhas e superações. Há um queloide nos peitos, marcas físicas das cirurgias de risco que enfrentou, mas também há marcas invisíveis, impressas profundamente em sua essência. Gláucia se define como alguém cuja história só pode ser compreendida plenamente por aqueles que também são mães.

Durante sua infância, Gláucia, conhecida carinhosamente como “enfeite” devido à sua beleza radiante e à sua energia contagiante, era uma criança cheia de vida. Adorava conversar, brincar com seus amigos e passar o tempo com sua avó materna, dona Alzira. É ao relembrar desses momentos especiais que Gláucia deságua, mas encontra uma sensação de acolhimento e paz.

Último registro fotográfico de dona Alzira antes de seu falecimento / Arquivo Pessoal

Na infância de Gláucia, nem todos os dias eram envoltos em magia. Ela guarda consigo memórias dolorosas de solidão e conflitos familiares, pois cresceu em um lar permeado por discussões acaloradas e violência. Seus pais estavam frequentemente ausentes, o afeto era escasso e a proteção e cobrança, excessivas. Essas vivências moldaram sua perspectiva única em relação ao futuro.

Quando questionada sobre seus sonhos de infância, Gláucia responde sorrindo: desejava ter uma família, ser dona de casa e ser mãe. Observando sua avó, a pessoa que mais amava, ela testemunhava a genuína felicidade daquela mulher ao cuidar de seu lar.

Na mente ingênua de uma criança, Gláucia imaginava que todo o amor e a felicidade de que precisava só poderiam ser alcançados quando tivesse sua própria casa, com sua própria família.

Gláucia em junho de 1979 / Arquivo Pessoal

E Gláucia, determinada, partiu em busca de novos horizontes após um repentino término de seu primeiro noivado. Ela acabou se aproximando de seu professor do curso de informática, Francisco de Assis Scomparin, namorando por oito meses até decidirem se casar.

Em outubro de 2001, sua primeira filha, Isabella, veio ao mundo. Em setembro de 2003, nasceu seu único filho, Giovanni. E, no mesmo mês de 2006, chegou a caçula Juliana. E não poderia deixar de mencionar sua filha postiça, Fabrícia, que carinhosamente a chama de “mamãe-titia”.

Gláucia após realizar seu sonho / Arquivo Pessoal

Com a formação da família, novos desafios surgiram. Como esposa de um militar, Gláucia passou anos se deslocando de um estado para outro, morando em locais distantes, como na inabitada divisa entre Goiás e Mato Grosso ou em Campina Grande, conhecida por abrigar a maior festa de São João do mundo. A saudade do núcleo familiar e a falta de uma rede de apoio na maternidade tiveram um grande impacto em sua vida.

O coração generoso de Gláucia é uma parte essencial de quem ela é. Durante a entrevista, ela recorda com emoção de pessoas que deixaram uma grande marca em sua vida: tio Eraldo, Gê, Robervania, Ritinha, Ecleidson (o novinho) e Luciana. É uma mistura de alegria e tristeza quando ela relembra a partida dos dois primeiros mencionados. Gláucia lamenta profundamente não ter tido a chance de se despedir, mas as memórias e o desejo de falar sobre sua família permanecem vivos em sua mente.

Glaucia com tio Eraldo, em 1994. Eraldo era como um pai para ela; infelizmente, veio a falecer em 2020, em decorrência da covid-19 / Arquivo Pessoal

Há mais de uma década, Gláucia trilha corajosamente o caminho da maternidade solo, transformando essa experiência em uma fonte de empoderamento. A tristeza, a solidão, a amargura e a raiva são visitantes que não têm mais permissão para adentrar sua vida.

Ao longo de sua jornada, sua fé inabalável em Deus capacitou-a a assumir com maestria o papel de líder de sua família. Quando lhe questiono sobre o que lhe enche de orgulho, seus lábios se estenderam em um sorriso largo e, com um olhar direcionado a mim, ela afirma: “Meus filhos”.

Volto à pergunta inicial de nossa conversa e a repito com um tom de expectativa: “Agora, com seus filhos crescidos, qual é o seu sonho?” Sem hesitar, ela me responde com uma determinação palpável: “Ver a família dos meus filhos se formando, ter a minha própria família maior”.

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