“Multiplicidade e resistência”: a jornada das várias versões de Maya Eliz

Fernanda Filiú
EntreFios - tecendo narrativas
17 min readNov 28, 2022

Em entrevista ao EntreFios, a professora e doutoranda em Educação fala sobre sua trajetória de vida, as violências psicológicas e físicas que sofreu e a candidatura ao cargo de deputada federal nas eleições de 2022

Por Amanda Andrade, Davi Brandão, Fernanda Filiú,
Giovanna Carvalho, João Marcos Santos, Jonathan Ferreira e Luís Norões

Maya Eliz concede entrevista no estúdio de TV do curso de Jornalismo da UFC / EntreFios

Maya Eliz teve sua história marcada por adversidades, mas também por grandes conquistas. Mulher trans, periférica, bióloga, professora e militante, concorreu, no ano de 2022, ao cargo de deputada federal pelo Psol do Ceará.

Em entrevista concedida à equipe do EntreFios, em 8 de novembro de 2022, Maya nos conta sobre sua trajetória de vida, desde as dificuldades enfrentadas por ser uma mulher trans até a decisão sobre qual profissão seguir. Hoje, formada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestra e doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é educadora concursada da rede municipal de ensino de Fortaleza.

Apesar do carinho e apreço pela arte de lecionar, Maya apresenta uma relação ambígua com a escola. Ainda na infância, foi vítima, no ambiente escolar, de agressões verbais e físicas que se davam pela sua sexualidade e expressão de gênero. Mesmo com as experiências traumáticas, a servidora pública luta pelo direito à educação de qualidade e visa ao acolhimento das diferenças para que, desde cedo, os estudantes possam respeitar a pluralidade existente, não só em sala de aula, mas na sociedade como um todo.

Embora o ambiente escolar tenha sido um local violento para Maya, foi exercendo a docência que ela encontrou sua vocação. Atuando na educação de crianças e adolescentes do 6º ao 9º ano do ensino fundamental II, Maya ressignificou a escola para si mesma. Agora, não mais como um lugar de opressão, mas um espaço de formação e esperança para dias melhores.

Confira a entrevista, em vídeo, e acompanhe a transcrição logo abaixo.

Amanda Andrade: Maya, a gente teve a honra de te apresentar formalmente para a nossa audiência, mas queríamos te conhecer em profundidade. Para você, quem é Maya Eliz?

Maya Eliz: É uma louca que se bota em vários lugares e que representa algumas lutas e resistências. Vinda, nascida e criada na periferia de Fortaleza, fruto da escola pública, onde tiveram tantas coisas, tantos discursos, tantas falas puxando a gente para baixo e dizendo que a gente não conseguiria chegar a canto nenhum e hoje a gente ser professora… E eu sempre falo no plural porque entendo que eu sou múltipla, que eu não consigo ser uma Maya Eliz. Mesmo que eu esteja em um dado momento fazendo campanha política como candidata, eu continuo sendo a Maya Eliz professora, a estudante, a militante. Então, é isso, [Maya Eliz] é multiplicidade e resistência.

Luís Norões: Nós sabemos que a infância e a adolescência são períodos de descoberta para cada um de nós. Nisso, a gente cresce com algumas referências, sendo que nem todos têm esse privilégio. Eu gostaria de saber se, quando mais nova, você teve alguma referência para se inspirar para carreiras, entre outras coisas?

Maya Eliz: Eu acho que a minha primeira referência e a maior de todas é minha mãe. Uma mulher negra, da periferia, vinda do interior do estado para Fortaleza para tentar uma vida melhor, mãe solteira por um período e que me inspirava a querer mais e querer mudar a nossa realidade. Eu acho que, enquanto uma criança viada, uma pessoa LGBT, eu nunca vi muitas referências que me representassem nas mídias, na própria escola, nos espaços de poder e de tomada de decisão até, mais ou menos, o fim da minha adolescência, que foi quando eu comecei a conhecer pessoas mais próximas graças ao espaço da militância. Se eu puder dizer uma referência em específico, seria a Helena Vieira, a primeira candidata trans aqui do estado do Ceará. O mesmo cargo que eu disputei agora em 2022, ela disputou em 2018. Então, acho que ela é uma referência que eu tenho tanto no meu processo de transição, quanto no meu processo intelectual.

Giovanna Carvalho: Agora falando um pouquinho das suas experiências de vida, eu peço licença para entrar em um tópico mais delicado. Já que a transfobia se apresenta nas mais diversas formas de agressões, quais foram as maiores dificuldades enfrentadas por você sendo uma mulher trans?

Maya Eliz: Eu acho que a principal dificuldade da minha vida sendo uma pessoa trans foi a dificuldade de conseguir a abertura, de me sentir livre para poder ser eu. Eu demorei muito para iniciar minha transição, embora as coisas estivessem ali acontecendo ao meu redor e eu estivesse fugindo disso desde muito cedo. Eu lembro que, no início da minha adolescência, eu busquei a igreja como refúgio para tentar mudar meu jeito. Eu fugia de pensar qual era a minha sexualidade, porque eu sabia que o meu jeito, a forma como eu falava, como eu me comportava, como eu agia na escola, o modelo de estudante que eu era não era um modelo esperado para um menino. Então, eu fugia desse debate, dessas questões comigo mesma, por isso procurei esse espaço. Acho que isso foi uma das maiores dificuldades.

As pessoas trans, primeiro, tem pouca referência, como a gente já falou aqui. Isso também é marcado porque nós vemos poucas pessoas trans nos espaços à luz do dia, nos espaços públicos, porque o espaço que é relegado à gente, o único lugar em que nós podemos estar é a rua e em um determinado horário, que é a madrugada. Essa é a expectativa que se tem sobre nós, uma vez que 90% da nossa população trans/travesti está na prostituição e a maioria não porque quer, mas porque não tem outra saída, outra alternativa para manter-se viva. E nesse processo de manter-se viva, quando falamos de pessoas trans/travestis, a gente está falando de juventude, porque a nossa expectativa de vida era de 35 anos até recentemente, mas já está caindo para próximo dos 30 anos se formos pessoas brancas, porque, se forem pessoas trans/travestis negras, é preciso fazer o recorte racial dessa expectativa de vida, que cai mais ainda. Então, acho que a transfobia se apresenta dessa maneira.

Davi Brandão: Mesmo com suas vivências e lugares de fala, em que momento você começou a se entender como uma pessoa de voz politicamente ativa?

Maya Eliz: Eu acho que o momento que marca isso é o meio de 2016, em um cenário pré-golpe na Presidência, que destituiu a primeira presidenta mulher no nosso país. Eu estou na universidade, aqui, na Universidade Federal do Ceará, e já tinham tido alguns cortes. O sucateamento da Universidade estava se mostrando cada vez mais e eu conheço, nesse momento, algumas ferramentas da luta organizada estudantil, tanto a entidade nacional do meu curso, a Entidade Nacional de Estudantes de Biologia; quanto os movimentos de juventude que compõem a teia do movimento estudantil na universidade. E, a partir daí, vou me aproximando. Porém, acho que o que marca mesmo foi quando a PEC n°241/2016 — que depois virou a PEC n°55/2016 e hoje é a emenda constitucional n° 95 — foi apresentada no Congresso e a gente fez a grande mobilização para lutar contra e barrar essa PEC, quando as Universidades foram ocupadas. Eu ocupei o meu curso, o departamento de Biologia da UFC. Nós fomos o terceiro curso a ocupar e o último a desocupar. Nós só desocupamos mesmo porque as pessoas iam para as suas ceias de Natal, e a gente disse: “Não dá para ficar alguém aqui, então vamos desocupar”. Acho que esse é o momento que eu me percebo ali… Eu lembro que, na Assembleia, eu agitei muito, estava lá conduzindo e disse: “Vamos ocupar, vamos ocupar”. Eu briguei com os professores que não queriam deixar a gente ocupar porque queriam dar aula e eu percebi, naquele momento, que eu conseguia ser porta-voz de vários sujeitos que não conseguem estar naquele espaço, ou mesmo os que estão e não conseguem se expressar publicamente, e eu conseguia fazer isso.

Amanda Andrade: Você já falou que a educação faz parte da sua vida ao longo de toda a sua trajetória. A gente queria saber justamente sobre essa trajetória estudantil, desde a entrada na escola até sua entrada na universidade e a permanência nela. Queríamos que você contasse um pouco sobre isso para a gente.

Maya Eliz: Eu entro na escola muito cedo, mais cedo do que o comum, porque minha mãe precisava trabalhar para poder me sustentar. Então, minha mãe me coloca numa creche e dá um jeito de trabalhar muito mais do que deveria para ganhar mais e conseguir pagar um valor a mais na creche para eu poder ficar lá, já que não queriam me aceitar por eu ser muito pequena. Então, eu vou vivendo, passo pela creche, pela educação infantil… No início da minha infância, eu aprendi tudo em casa. Minha mãe lia para mim antes de dormir. Eu gostava muito desse espaço de leitura, desse ambiente de conhecer novas coisas a partir dela. Então, eu quis aprender a ler muito cedo. Com três anos de idade, eu aprendi a ler, fiz minha mãe me ensinar em casa. Então, por exemplo, quando eu cheguei à alfabetização, os meus colegas não sabiam ler, e eu ajudava, ensinava a ler e acho que daí já veio a alma de professora. Mas o espaço da escola sempre foi um ambiente muito ambíguo pra mim. Na educação infantil, eu lembro que eu não gostava de ir pra escola, eu detestava ir. Quando a pessoa que cuidava de mim, que era responsável por me levar e me buscar na escola, me acordava, eu me agarrava na grade da janela e ficava lá: “Eu não quero ir pra escola, eu não quero ir pra escola, não quero ir”. Isso muda depois de uma certa idade. Acho que, quando eu acesso a alfabetização, isso começa a mudar. Então, eu ia para conviver socialmente, só que essa convivência não era legal, porque eu era apelidada, me batiam, botavam chiclete no meu cabelo… enfim, diversos apelidos que eram desde “Barbie”, “Babalu”, desde aqueles mais tradicionais que eram “viadinho”, “mulherzinha”, essas coisas.

Eu fui vivendo isso na escola por parte de alunos, mas eu lembro também de um fato específico com uma professora no 4º ano do ensino fundamental, que ela perseguia a mim e a uns colegas mais próximos de mim. Uma vez ela tentou me pegar pelos cabelos na sala de aula, eu saí correndo e ela saiu correndo atrás de mim. Assim, eu fui fazendo esse processo de ir pra escola, porque eu gostava de ir e eu usava o fato de eu saber muita coisa, ser a pessoa inteligente, a “nerdzinha” da turma, como barganha. Eu conseguia me relacionar a partir disso com as pessoas, mas foram muitas brigas. Eu apanhava, na verdade, porque eu não sabia bater. Então, foram muitos processos de eu ser balançada no meio do pátio, pelos braços e pelas pernas e ficarem me xingando. Teve um episódio em que eu fui arrastada no campo de futebol na aula de educação física, pelos cabelos, e o professor ficou rindo e olhando aquela situação.

“Eu sempre vi a escola como um espaço de muita violência, mas que era o único espaço que eu tinha pra poder mudar a minha realidade e a da minha família. Então, eu sempre disse: ‘Eu preciso ir’. Vão me xingar, vão me bater ou vão fazer qualquer coisa comigo, mas eu preciso ir pra escola porque é a única oportunidade que eu tenho”.

Muito cedo, eu acessei a universidade, graças à política de cotas. A primeira vez em que eu fui aprovada no vestibular eu tinha acabado de terminar o 2º ano, mas eu não vim para a universidade. Eu tinha acabado de fazer 15 anos e, graças a Deus, não entrei porque eu era uma criança ainda, não seria capaz de lidar com tudo isso que é a universidade. Porém, eu vim um ano depois, ainda era muito cedo, muito jovem, mas vim com 16 anos. Fiz um curso de graduação em que me pautei no sentido de que não era só a sala de aula, não eram só minhas aulas de laboratório que iam me formar uma boa bióloga e, principalmente, uma boa professora. Eu precisava de outras vivências, então, eu vivi a universidade como um todo, desde a sala de aula, as calouradas, os espaços do movimento estudantil, congresso, tudo que eu podia viver na universidade eu vivi. Só não vivi o Ciências Sem Fronteiras porque não tinha mais. Assim, graças à ajuda, inclusive ajuda financeira, de amigos meus, eu consegui fazer as provas, a seleção de mestrado na UFRJ e fui aprovada. Sou a segunda pessoa trans a conquistar o título de mestre pelo meu programa de pós-graduação na UFRJ e consegui mesmo com a pandemia. Tive que voltar para cá por questões “N” e consegui acessar o doutorado e estou cursando. Fui aprovada, ano passado, na seleção de professora substituta da rede municipal de Fortaleza, estou atuando nesse processo, me afastei agora no período eleitoral, mas estou atuando na sala de aula, no ensino fundamental II e, agora, fui aprovada no concurso da prefeitura para efetiva, para ter estabilidade na vida, continuar o que eu estou fazendo, mas agora sem risco de perder meu salário de um dia para o outro.

Luís Norões: Maya, você pauta a educação como um real divisor de águas na sua vida. Sobre isso, a pedido da Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], o Ipec fez uma pesquisa sobre a evasão escolar durante a pandemia no Brasil. Cerca de 11% dos entrevistados evadem a escola por conta de pendências pessoais em sua família. Isso mostra a necessidade de incentivo à educação no nosso país. Sobre isso, na sua trajetória, alguém te incentivou a estudar ou isso partiu de você mesma?

Maya Eliz: A minha mãe sempre disse que a única coisa que eu tinha na minha vida era o estudo. A única coisa que eu ia ter pra mim era se eu estudasse, a única coisa que ninguém podia tirar de mim era o conhecimento que eu ia adquirir. Ao longo da minha trajetória, eu fui tendo algumas professoras que foram me marcando e foram sendo significativas para a minha formação e para eu querer mesmo isso. Eu lembro da minha professora do 3º ano do ensino fundamental, a Fernanda, eu não tenho mais contato, não sei mais por onde ela anda, mas eu me lembro dela sempre. Ela foi essencial na minha trajetória, uma professora magnífica. Eu me lembro da minha professora de história, de geografia, de biologia, de química no ensino médio e, dessas quatro, a de história, a de geografia e a de química me acompanharam desde o 8° ano do fundamental até o 3° ano do ensino médio e foram essenciais para eu me inspirar. A professora de biologia em específico é minha mentora. Graças a ela, eu disse: “Eu quero ser professora de biologia”. Vou destacar também a minha atual orientadora de doutorado [profa. Marcia Serra Ferreira], que foi minha orientadora do mestrado, que é uma mulher magnífica e grande referência para a nossa área. Então, foram elas que me fizeram, através das aulas, reconhecer as desigualdades do nosso país, entender qual é a minha classe, saber de onde eu venho e saber fazer uma análise da nossa realidade.

Giovanna Carvalho: A gente sabe que o ambiente escolar é um ambiente de desenvolvimento e de crescimento da pessoa. Pra você, como professora e mulher trans, que luta pelos direitos da comunidade LGBTQIAP+, qual seria o papel da instituição para com esse grupo e como identificar as narrativas dessas pessoas que muitas vezes não se sentem confortáveis em pedir ajuda?

Maya Eliz: Eu acho que o papel essencial da escola perpassa por mudar o entendimento de que a educação precisa ser igual no sentido de que todos os sujeitos são iguais. Ela não tem como ser igual pra todo mundo. O primeiro passo da escola, para a gente mudar essa realidade, dos sujeitos LGBTs, das mulheres, da população negra e indígena no espaço da escola, é reconhecer as diferenças. É entender que cada indivíduo é único e, se a gente não partir das diferenças, se continuarmos partindo da igualdade, de que todos os sujeitos aprendem igual, que todos os sujeitos têm uma mesma realidade porque vivem no mesmo contexto social, nós não vamos superar essas violências. É nesse contexto que a gente vem fabricando os sujeitos que vão continuar morando na periferia, quem são os sujeitos que vão ascender socialmente, quem são os sujeitos que têm direito à vida, quem são os sujeitos que não têm direito à vida. Para a gente conseguir acolher, a escola tem que ser um espaço de segurança que muitas vezes a nossa casa não é, que muitas vezes a nossa família não é, para sujeitos LGBTs. Então, é preciso que a escola se torne esse espaço de segurança e, para ela conseguir se tornar esse espaço, não vai ser no modelo que está agora. Nós precisamos de outros profissionais que não são somente educadores ou pessoas que vão cumprir os papéis de manutenção do espaço da escola. A gente precisa de assistente social e de psicólogo na escola e em uma quantidade suficiente que atenda a todo mundo.

Davi Brandão: Quando surgiu seu interesse pelo ensino e pela arte de lecionar?

Maya Eliz: Isso surge no ensino médio, pensando num curso que eu quero fazer que tenha possibilidade de licenciatura. Isso surge ali no final do ensino fundamental. E aí, quando eu começo, no ensino médio, a trabalhar nesses projetos sociais, a perceber o que o cursinho popular do bairro vizinho ao meu estava garantindo para muitos sujeitos, eu comecei a dizer: “Olha, é isso que eu quero”. Porque eu quero fazer o mínimo. Porque eu sei que não sou eu quem vai mudar o sistema educacional. Quando eu entrei na universidade, eu achava: “Nossa, eu vou mudar, revolucionar o sistema educacional, vou mudar a educação”. E hoje eu percebo que não tem condições de nenhum sujeito fazer isso sozinho. Mas eu queria mudar o mínimo que eu pudesse mudar e fazer diferença para estudantes que vêm de onde eu vinha. Eu tenho uma questão minha, que é um compromisso de que eu não quero, até já trabalhei por questões de necessidades financeiras na rede privada de educação, mas não é o meu interesse. Eu quero ensinar na escola pública. Meus amigos dizem que eu sou louca porque eu não vislumbro ser professora universitária. Caso isso apareça e o pensamento mude, eu não vou dizer que nunca vou ser, mas eu não vislumbro ser professora universitária. Eu quero trabalhar no chão da escola e tenho percebido também que essa escola em que eu quero estar, é com esses estudantes de 6º ao 9º ano do ensino fundamental II, porque tem relações com o público que me agradam mais. Eu tenho um compromisso, eu quero estar nas escolas públicas da periferia, que é de onde eu venho. Eu quero que outros sujeitos, outras pessoas, outros corpos como o meu possam ver que é possível conquistar outros lugares, que a única alternativa pra gente não é permanecer ali enclausurado e, caso a gente queira, pode ser também, mas, se a gente quiser algo maior, quiser ampliar os nossos horizontes, também é possível.

Amanda Andrade: Maya, agora mudando um pouquinho de assunto, a sua existência por si só já é um ato político. Mas, da sua carreira de bióloga à candidata a deputada federal, como surgiu o seu interesse em atuar na política legislativa?

Maya Eliz: Junto a esse movimento de juventude que eu construo, nós vínhamos percebendo uma lacuna nos últimos processos eleitorais da gente se sentir, enquanto jovem, representado por uma política que faça sentido para a gente, que nasceu e se criou na periferia, que somos jovens LGBTs, que somos jovens que têm a escola ou a universidade como única possibilidade de ascensão. Nós sentíamos falta disso, e a gente disse: “Vamos ter uma candidatura de juventude”. Isso foi passando nesses processos e, no ano passado, no finalzinho do ano passado, a gente começou a debater sobre realmente oficializar uma candidatura da juventude, do movimento. A partir daí, nós começamos a pensar sobre quais seriam os nomes, e o conjunto do movimento elencou o meu nome para ser a figura que representaria essa política. E é o que eu sempre digo: a minha candidatura não é a candidatura da Maya Eliz.

Maya Eliz é a porta-voz de um projeto coletivo, que foi pensado com muitas cabeças, construído com muitas mãos e que está aberto para quem mais quiser fazer essa construção. Eu nunca pensei que eu estaria nesse espaço, de disputar um cargo legislativo, mas vi que foi um processo muito bom, muito positivo. Assim, me surpreendeu enormemente. Eu não esperava ter tido a receptividade que eu tive nas ruas e nas urnas e eu notei que aquela lacuna que a gente percebia de não ter jovens que representassem a massa, a maioria da nossa juventude concorrendo aos cargos de poder, de tomada de decisão, não era só um vazio para a gente, não era uma lacuna que só nós percebíamos. Muitos outros sujeitos percebiam.

Giovanna Carvalho: A candidatura e eleição efetiva de pessoas LGBTQIAP+ é escassa no Brasil. Apesar dessa realidade, foram eleitas, neste ano, pela primeira vez na história do país, duas mulheres trans ao cargo de deputada federal: Érika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). Como você avalia esse fato histórico e a inserção de pessoas LGBTQIAP+ em cargos de grande influência?

Maya Eliz: Primeiro, é uma grande vitória. É um absurdo que a gente tenha esperado tanto tempo para garantir o que deveria ser garantido desde o início, porque as casas legislativas são casas do povo, então elas devem representar o povo. É significativo demais. Isso mostra que as nossas lutas estão fazendo-se serem ouvidas. Elas não estão sendo ouvidas de bom grado, elas não estão sendo ouvidas porque o povo é “bonzinho”. Inclusive, é muito importante colocar que existe um contingente de pessoas que não votam porque acreditam que esse é o processo revolucionário da política, mas que votam para se sentir melhor, para sentir que estão fazendo um bem, como um processo de caridade. “Ai, vou votar em negros para ser reparação histórica”, “Vou votar em pessoas LGBTs para ser reparação histórica”, “Vou votar em mulheres, já que as ‘bichinhas’ estão aí, cuidando da casa”. Esse discurso ainda existe, por isso é tão importante dizer isso. Inclusive, em diversos espaços, em diversas conversas quando eu estava candidata, eu recebia conselhos de me afastar da minha identidade e investir na minha figura enquanto educadora, enquanto pesquisadora em educação, ou me afastar do meu território paras as pessoas pensarem: “É uma travesti, mas é doutoranda”, “É uma travesti, mas é professora”, porque só o fato de ter uma identidade que foi subalternizada, que é marginalizada, que é violentada, não é suficiente. Então, acho que ter a Erika e a Duda na Câmara vai ser essencial.

Luís Norões: Maya, a Lei 17.480/2021, proposta pelo governador recém-eleito, Elmano Freitas [ainda na condição de deputado estadual], fala e proíbe a discriminação por identidade de gênero ou orientação sexual, pregando também os cartazes nos ambientes pra reforçar essa lei. Sobre essa ótica de combate à LGBTQIAP+fobia no Ceará, você acredita que essa inserção de pautas e aprovação de leis nesse contexto vem funcionando, apesar de o nosso estado ser um dos mais violentos para pessoas travestis e trans?

Maya Eliz: Acho que o principal jogo da política funcionar no nosso dia a dia e não ser só mais um documento que diz o que pode e o que não pode fazer é esse debate entrar no nosso cotidiano. É eu estar, por exemplo, num estabelecimento, num restaurante e ver essa placa, e ter um sujeito que não entende o que é isso, que não entende a necessidade de ter aquela placa, de ter uma lei específica para essas pessoas e vai começar a questionar. Ele vai reproduzir diversos argumentos superviolentos que a gente sabe que estão enraizados na nossa sociedade, mas vamos construindo esse jogo no dia a dia. Hoje temos a lei do nome social aqui no nosso estado, que não temos nacionalmente, mas o nosso estado tem, que assegura que o nosso nome social seja usado e respeitado tanto nos espaços da esfera pública, quanto da esfera privada. A gente tem a lei “Semana Janaína Dutra”, que é uma semana de combate à LGBTfobia nas escolas, que deve acontecer toda terceira semana de maio em todas as escolas do estado. Também temos a lei das plaquinhas contra a discriminação por identidade de gênero e por sexualidade, e isso são avanços que foram construídos junto ao conjunto dos movimentos sociais.

Amanda Andrade: Pra gente encerrar a entrevista gostaríamos de saber os seus planos para o futuro, o que a gente pode esperar de você como estudante, como professora, como voz política. O que esperar de Maya Eliz para o futuro?

Maya Eliz: Eu acho que vem coisa aí… Aquele meme: “Vêm uma coisa… muito forte”. Mas, eu acho que os meus planos principais agora são terminar minha tese e virar doutora. Nós temos um contingente muito minúsculo de travestis doutoras, de pessoas trans doutoras no nosso país. O campo da política perpassa por debates coletivos junto aos movimentos, junto às construções às quais eu já venho me somando, mas quem sabe não vem Maya Eliz candidata a vereadora em 2024, para a gente poder ocupar um cargo, uma cadeira na câmara municipal de Fortaleza, que é um espaço que ainda tem muita gente conservadora? Enfim, todo dia a gente falando de “ideologia de gênero”. E acho que a gente precisa de um corpo como o meu para podermos bater de frente e debater de frente o que é essa “ideologia de gênero”. Porque a “ideologia de gênero”, na verdade, é o menino usar azul e a menina usar rosa, é o laço na cabeça, é o chá revelação… Isso é ideologia de gênero, que constitui o que deve se esperar da gente a partir de um genital e quem nós devemos ser a partir de um genital. Espero que eu assuma logo como professora efetiva e consiga trilhar trabalhos e projetos no cotidiano da escola, que tornem possível aos meus estudantes ver o mundo com outras lentes, ou não também, porque nós sabemos que nem tudo a gente consegue, nem todos os objetivos nós alcançamos. Mas eu quero, ao menos, fazer alguma diferença.

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