Não precisa falar alto, só devagar

Antonio Eudes
EntreFios - tecendo narrativas
3 min readJul 14, 2023

Maria Consuela questiona por que ela teria de usar aparelho auditivo para ouvir o barulho do mundo se o mundo também não a escuta

Por Antônio Eudes

Maria Consuela / Arquivo pessoal

“Muito barulho na rua, muito barulho em todo canto, não sou acostumada”. É assim que Maria Consuela justifica o porquê de não usar aparelho auditivo. Os barulhos da cidade incomodam muito, dão dor de cabeça. Ela costuma devolver a pergunta questionando: por que teria de se adaptar ao barulho do mundo se o mundo também não a escuta?

Na infância, Maria Consuela ia para a escola somente para desenhar e pintar, atividades que ela ama fazer até hoje. Contudo, quanto à transmissão de conteúdos, ela não conseguia compreender o que estava sendo ensinado. A escola reprovava, mas, no ano seguinte, ela estava lá de novo, desenhando e pintando.

Aprender a falar foi um processo demorado. O maior incentivador — com quem ela conseguia se comunicar mesmo sem ouvir — foi seu pai, que ensinava por meio de leitura labial.

Consul, como era chamada pelos mais próximos, amava muito seu pai, mas, às vezes, ele ficava com muita raiva — talvez fosse apenas um homem típico de sua época. Já sua mãe agia com muita indiferença: não era muito carinhosa e não lhe conferia tratamento similar ao oferecido aos outros filhos — e talvez sua mãe também fosse apenas uma típica mulher de sua época.

Mesmo assim, fala com certo carinho sobre o pai e a mãe, tendo permanecido junto deles até o fim. Órfã aos 16, a caçula de quatro filhos teve que depender financeiramente de seus irmãos e de sua irmã.

Quando chegou à idade de poder escolher o que ia fazer, ela foi viajar: Icó, Juazeiro, Quixadá, Natal… Até hoje ama bater perna. Aniversário, para ela, é pretexto para sair, ir à praia, ao museu, à serra, para algum canto tem que ir. No começo do noivado, ela deixou bem claro ao noivo que precisava sair. Quando seus filhos eram pequenos, sempre os levava consigo, mesmo que fosse apenas para dar uma volta no centro da cidade.

Consul teve duas crianças. No nascimento do primeiro filho, ela ficava a noite toda observando-o.

“Como eu não escuto, tinha que ficar olhando pra ti, esperando tu chorar”.

Lembro que, quando era bem pequeno, algumas pessoas perguntavam se eu e minha irmã éramos “normais”. Consul respondia que sim, ouvíamos tudo. Nunca entendi muito bem o que isso significava, até que chega uma fase em que você começa a perceber que o comum seria que a mãe falasse aos médicos o que os filhos estavam sentindo, e não que os filhos contassem o que a mãe estava sentindo.

Maria Consuela e seu filho mais velho / Arquivo pessoal

Um dos poucos sons que Consuela consegue compreender é o de um cachorro latindo. Seu primeiro cachorro, Freeway (o mesmo nome do cachorro da série Casal 20), era um grande companheiro, avisava com um latido grave que uma visita havia chegado. Atualmente, sua companheira Violeta também ajuda latindo, mas seu latido é mais insano e desesperado, quase como se quisesse atacar a visita.

Aos 55, Maria Consuela ainda tem muito a conhecer e explorar. Ela conta que ainda quer viajar mais, ainda quer assistir a mais espetáculos de balé, visitar mais museus e tudo de novo que ela possa apreciar.

Enquanto fala sobre o que gostava e o que não gostava e do que pretendia fazer no futuro, ela cita as aulas de português para surdos. Para ela, o português é muito difícil, mas fica feliz de poder assistir às suas séries coreanas legendadas. Consul ainda tem muito o que fazer, muitos lugares para conhecer, muitos sons pra sentir, nessa silenciosa jornada que é a vida.

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Antonio Eudes
EntreFios - tecendo narrativas

Estudante de jornalismo, flamenguista e sou outras coisas também.