A contribuição de Eliza Gunther para a gestão cultural em Fortaleza

Ana Luiza
EntreFios - tecendo narrativas
22 min readDec 7, 2023

Idealizadora do bloco carnavalesco Doido é Tu, a assistente social vem ocupando cargos de gestão em diversos equipamentos culturais do Ceará desde 1988

Por Alice Barbosa, Ana Luiza, Beatriz Moreira,
Eduarda de Almeida, Rafaell Estebann,
RuanRodrigues e Davi Eufrasio

Eliza Gunther concede entrevista para o site EntreFios no estúdio de TV do curso de Jornalismo da UFC / EntreFios

Idealizadora do bloco de Carnaval Doido é Tu, de Fortaleza, a gestora cultural Eliza Gunther reflete sobre inclusão e promoção de saúde mental em entrevista ao EntreFios. Nascida e criada na capital cearense, a assistente social revisita, ainda, sua trajetória profissional à frente de importantes equipamentos públicos, como o Theatro José de Alencar.

Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), sua dedicação transcende os limites convencionais, concentrando-se também no campo da saúde mental, em que utiliza a arte como forma de cuidado.

Ao longo de sua carreira, Eliza ocupou posições importantes em diversos equipamentos culturais do estado. Inicialmente, atuou como coordenadora de Ação Cultural na Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE), entre 1988 e 1991, onde começou a contribuir, institucionalmente, para a produção cultural do estado.

Mais tarde, ela assumiu a coordenação de gestão cultural no Instituto Dragão do Mar em 1996, culminando, dois anos depois, na direção da instituição, posto que ocupou até 2002. A partir de 2003, sua visão e liderança marcaram o Theatro José de Alencar, onde desempenhou papel de diretora do equipamento até 2006.

Em 2007, Eliza passou a integrar o núcleo de gestão da Fundação Educacional Silvestre Gomes, uma ONG localizada no bairro Rodolfo Teófilo, em Fortaleza, fundada por seu pai e irmãos, homenageando seu avô, o senhor Silvestre Gomes.

Dentro da Fundação, não apenas assumiu a direção de espetáculos teatrais e outras ações culturais com os moradores da comunidade, mas também concebeu, em 2008, o que “hoje é reconhecido como a maior ação cultural da América Latina com foco na promoção da saúde mental”: o bloco de Carnaval Doido é Tu. A iniciativa busca romper fronteiras, promovendo não apenas a alegria carnavalesca, mas também a importância de inclusão das pessoas portadoras de transtornos mentais na sociedade.

Confira a entrevista, em vídeo e transcrita na íntegra, a seguir.

Eduarda de Almeida: Eliza, você é assistente social, mas também atua como gestora cultural. O que inspirou você a seguir esse ramo?

Eliza Gunther: Bom, eu nem saberia dizer exatamente o que me inspirou a seguir esse ramo. Eu sempre amei as artes, e acho que fui amante das artes a vida inteira, e também fui muito apaixonada por pessoas, por movimentos sociais e isso provavelmente me motivou a seguir o serviço social, a buscar o serviço social. Aliás, meu interesse inicial era jornalismo e comunicação. Só que à época estava no auge da ditadura militar e eu fui muito desestimulada, principalmente pelo meu pai, acho que por temer, eu já era sempre mais à esquerda, e por temer que eu pudesse vir a ter complicações, tive todo o estímulo assim pra abraçar o serviço social. E exatamente esse curso que eu fui iniciar, que descobri depois que era o curso mais adequado pelo movimento que eu me apaixonei em seguida, que foi a gestão cultural. Como à época não existia no Ceará, nem uma escola, nem um curso de gestão cultural, o meu aprendizado no serviço social me ajudou muito.

E como foi que eu cheguei a gestão cultural sendo feito serviço social? Minha primeira experiência, como estagiária ainda, foi no Mucuripe com o grupo de pescadores e ali eu compreendi que não havia possibilidade de haver promoção social se não fosse pelo viés da cultura. E pra chegar a organizar um movimento de desenvolvimento comunitário, eu procurei saber quais eram as raízes culturais, o que é que acontecia, como é que as pessoas se divertiam, como é que as pessoas viviam ali. E descobri que tinha existido um grupo de coco de praia e um grupo de fandango, e que não mais existia.

Aí comecei a convidar, no caso, os pescadores e comecei a dançar o coco com eles. E naquela época já era uma atividade só de homens. As mulheres não participavam. Mas o fato é de eu estar participando, e uma estagiária, para eles “a doutora”, estagiária de serviço social, eles chamavam “a doutora”. Então começou a motivar muito e na época também surgiu o grupo do coco do Iguape e a gente ia se reunia, Iguape e Mucuripe, enfim. E a partir daí, o Grupo de Coco foi uma forma muito forte de me aproximar dos pescadores e desenvolver o meu trabalho de desenvolvimento comunitário. Na época o Castelo Encantado ainda não era construído, estava em todo esse processo.

Em seguida eu fui estagiar na favela Brasília. Não sei se vocês conhecem, aqui perto da Expedicionário. E lá, apesar de ser um lugar central, não tinha água encanada. Então, eu comecei o movimento ali pra gente conquistar a água. De reunião de rua em rua, e descobri que uma ferramenta que a gente podia usar, muito legal, era o teatro.

Aí comecei trabalhar com os meninos da comunidade, um grupo de teatro, onde a gente dramatizava muito centrado e inspirado na teoria de Augusto Boal e Paulo Freire também, que sempre foi o meu grande mestre e inspirador. E a gente começou a fazer teatro lá na comunidade, com as questões que afligiam a comunidade naquela época, a falta d’água, o lixo, enfim e então teve todo o movimento, a gente conquistou de fato a água para a comunidade. Depois fizemos o trabalho de saneamento básico a partir de mutirões da própria comunidade. Isso seria uma história longuíssima a se contar, mas foi outra experiência aí que foi fortalecendo a minha crença de que a cultura e o desenvolvimento social, ou a educação que fosse, tinham que andar juntas.

Alice Barbosa: Mas como a senhora descobriu que o teatro podia ser algo que levasse à conquista da água?

Eliza Gunther: Eu descobri que eu precisava de elementos que motivasse, que as pessoas se (re)encantassem. E vi que os adolescentes, os jovens daquela comunidade ou estavam na criminalidade, ou estavam apáticos. Então, vi no teatro uma forma de reunir e de potencializar a força que existia ali na comunidade. E aconteceram coisas interessantes, porque na época eu também já era fotógrafa. Desde dezesseis anos eu já tinha experiência com fotografia, já tinha trabalhado com fotografia, então, foi outro recurso que eu também comecei a usar na comunidade.

Tem uma coisa interessante, porque tinha uma montanha de lixo lá na frente. Então, nas nossas reuniões de comunidade, eu tentava chamar atenção para aquele lixo, mas era tão do cotidiano das pessoas que elas não estavam nem aí. Então, eu fui fazer uns slides pedagógicos tentando explicar o que era a vida em comunidade. “Viver em comunidade é ocupar a mesma área física, não sei o que” e fui botando uma série de coisas. Compartilhar os mesmos problemas e “PAH”, slide do lixo. Aquele lixo que não incomodava no cotidiano, quando eles viram na fotografia, gerou incômodo total e a partir daí resolveram se mobilizar para tirar o lixo.

Então, eu fui, no decorrer da minha vida, em alguns momentos muito intuitivamente, noutros momentos estudando, procurando, pesquisando, juntando a experiência, a teoria e a ação, eu fui fazendo essas descobertas de que a arte estaria sempre presente como uma forma de potencializar desejos, de criar vantagens e de transformar mudanças.

Então, em seguida, eu fiz uma incursão pelo campo das artes plásticas e também do vídeo e comecei um movimento pra reorganizar a associação de artistas plásticos do Ceará. E a partir desse movimento terminou que eu fui chamada pra Secretaria de Cultura do Estado, pra coordenação de ação cultural. Inicialmente fui chamada pra trabalhar num projeto de implantação de centros de ativação cultural pelo interior do estado e depois pra essa coordenação. E a partir daí eu me envolvi muito fortemente com a gestão da cultura, porque além de ser o meu trabalho, passou também a ser o meu espaço de militância.

Parece maluco e meio contraditório, né? Como é que você vai militar dentro do poder público, da gestão pública? Mas passou a ser quase que uma missão de vida, pensar políticas públicas, ajudar, apoiar na criação dessas políticas. Na maioria das vezes completamente invisível, negociar ali, fazendo aquele trabalho de formiguinha mesmo. E eu brinco muito porque digo “sempre fui chamada pra gestão pública quando não tinha dinheiro, ou não tinha tempo, ou estava tudo quebrado”.

Então foi acontecendo assim e eu fui ocupando vários espaços dentro do poder público, da política pública, digamos que desde 1986, acho mais ou menos 1986, até 2016 ou foi 2017, eu ocupei vários lugares. Coordenação de ação cultural [em três gestões].

Instituto Dragão do Mar, eu fui convidada para implantar os primeiros cursos de gestão cultural do Estado do Ceará. O meu amigo Oswald Barroso disse que eu fui a primeira gestora cultural no Ceará. Porque, dizendo ele, que eu fui a primeira pessoa a me preocupar em sistematizar esse saber. Então criei os primeiros cursos, formei as primeiras pessoas para dar os primeiros cursos, enfim. Do Instituto, porque às vezes a gente faz uma confusão entre Instituto Dragão do Mar e o Centro Dragão do Mar, porque são duas coisas diferentes. O Instituto marcou uma época muito interessante no Ceará, com formação na área da arte e da cultura e da gestão cultural, com as escolas/colégios de direção, colégio de audiovisual e os cursos de gestão cultural também.

Depois eu fui a primeira diretora de ação cultural do Centro Dragão do Mar, então responsável por pensar todo o modelo de programação, de funcionamento. E foi muito interessante pra mim. Naquela época virou um grande desafio, porque todo mundo dizia que o Dragão seria um “elefante branco” e a gente conseguiu realmente que o Dragão funcionasse.

Alice Barbosa: Como assim [elefante branco]?

Eliza Gunther: A população não acreditava que o Dragão do Mar viesse a funcionar, a ser visitado, a ser ocupado pelas pessoas. Por conta que é uma área um pouco degradada, que infelizmente tá voltando a ser, mas o Dragão viveu momentos de grande efervescência. E no Dragão do Mar, com muito trabalho, eu tive a possibilidade de fazer várias experiências, com toda a dificuldade de limitação que o Poder Público impõe, mas a gente vai criando, inventando e tive possibilidade de vivenciar muitas experiências. Tipo tentar programar para férias uma orquestra x, mas as pessoas diziam assim “mas as pessoas não virão, porque pobre não gosta de uma orquestra sinfônica”. E aí você via o empresário e o operário ali assistindo à orquestra. E compreendendo e fazendo a população compreender, que é como diz o Gilberto Gil, o pobre ele sabe do que ele gosta, mas tem coisas que ele não sabe que gosta, mas gosta. Não teve foi a oportunidade de ter acesso. Então um desafio de fazer com que as pessoas tivessem acesso às maiores experiências, todas as possibilidades possíveis de criação, expressão e de fruição artística.

Ruan Rodrigues: A senhora, hoje, é conselheira da Fundação Educacional Silvestre Gomes, que foi uma instituição formada em 1999 pelos moradores do bairro Fortalezense, Rodolfo Teófilo, que produz ações educacionais, esportivas, sociais e culturais. Eu queria saber o que motivou a senhora a iniciar esse projeto?

Eliza Gunther: Olha, ele é muito interessante, assim, porque o que me motivou? Na verdade, Silvestre Gomes é o nome do meu avô, e a fundação foi criada realmente por moradores do bairro. Nós somos moradores do bairro Rodolfo Teófilo, o meu pai e irmãos. Eu não fiz parte desse processo de criação da fundação, até porque a essa época eu estava muito envolvida na gestão cultural, na gestão pública.

Mas em 2007, quando eu entreguei a gestão do Theatro José de Alencar, eu tinha sido diretora nos três últimos anos. De uma certa maneira, eu assumi a fundação. Até aquele momento a fundação tinha um caráter de muita assistencialista. Eu tinha muito esse intuito de apoiar famílias. O meu pai e meus irmãos e amigos, moradores do bairro, pensando, assim, numa forma de a gente dar um retorno pra esse bairro. Todos tinham nascido ali, todos nós somos estudantes de escola pública, do bairro. Então, como uma forma de trabalhar com aquela população mais pobre daquele bairro.

Então, era cesta básica, cadeira de rodas, atendimento médico, essas questões. Quando eu volto pra fundação e a fundação nunca teve nenhum grande financiamento, até porque as pessoas que a criaram não são pessoas ricas. Eu consegui um salão com meu irmão e comecei a dar oficina de teatro e a partir daí a fundação foi tomando muito o rumo da cultura. Eu fiquei muito impressionada com essa marca.

E nesse mesmo período eu dava uma consultoria para a Prefeitura de Fortaleza, formando. Eu deveria criar um projeto, consolidar um projeto para inserir artistas nos CAPS de Fortaleza. E nossa grande luta era dizer assim “não são artes terapeutas, nós não estamos querendo arteterapeutas no CAPS. Nós estamos querendo artistas nos CAPS e esses artistas deveriam integrar as equipes de saúde com objetivo de proporcionar experiências de criação e expressão artística e de fazer uma ponte entre os CAPS e a comunidade de tanto levar artistas da comunidade pro CAPS do território, em torno do CAPS, como levar as pessoas do CAPS pra fora.

A gestão era da Luizianne Lins na época e eu estava junto com a equipe do Instituto no qual o psiquiatra Raimundo Severo fazia parte, que também é uma pessoa muito envolvida com arte, principalmente mudança. Então, nós tínhamos a responsabilidade de formar a equipe que ia atuar nos CAPS. Mas a gente optou que esse treinamento deveria ser não só para os artistas, mas para todas as pessoas dos CAPS psicólogos, médicos, enfermeiro, que tivessem interesse em conhecer mais a arte como uma possível ferramenta no seu trabalho. E foi uma experiência muito interessante na medida em que a formação ia acontecendo a gente ia criando o projeto chamado projeto Arte e Saúde.

E no âmbito desse projeto esse projeto criou ambiência para surgir o bloco “Doido é tu”, para nascer o bloco “Doido é tu”, por quê? Aconteceu como aconteceu em diversas oficinas de artes musicais. A gente fazia luaus com fogueira na comunidade. Então, toda essa tentativa de desencapsular, de trazer, de fato, um sentimento antimanicomial, um sentimento que fosse, vamos dizer assim, de acordo com a reforma psiquiátrica e com tudo que a gente entendia como cuidado, como promoção de saúde mental. Aí eu percebi que teve um artista que ele fez uma oficina de máscaras em baile de Carnaval e que aquela oficina, aquele bairro construiu mobilizar muito os usuários, as pessoas com transtorno mental severo ou com sofrimento psíquico muito forte.

No ano seguinte, eu toco isso no “gente, vamos de bloco de sujo pra avenida”, “vamos convidar os usuários, convidar os nossos horários e vão estar pedindo o pedido de bloco de sujo”, que é aquela formação onde a gente vai brincar, se divertir, sem muita preocupação com a fantasia, organização. E coincidiu que a gente conseguiu a permissão para sair antes dos blocos, sair mais cedo, mas não conseguimos o carro de som na Prefeitura. Não era possível, mas a gente conseguiu um trio elétrico maravilhoso, enorme.

Fomos e foi uma experiência muito legal. A gente saiu na avenida, e fizera no entorno ali, as pessoas saindo pra calçada e tal. Assim foram os três anos para avenida de blocos e sujos. Eu cheguei com o pessoal do carnaval das premiações carnavalescas e disse “nós queremos entrar como bloco oficial”, “tá, mas não pode.”, é dito. “Você tem que desfilar dois anos para poder concorrer e tal, pra poder entrar” e nós já temos mais de dois anos. Então a gente pode “ah Eliza, mas você entenda, o seu público são pessoas com transtorno mental.” “Sim, e aí?” “ Não, porque se você for sorteada pra sair tarde da noite, você não vai poder sair”, “Eu me ofereço pra abrir o carnaval e vocês vão adorar, porque até agora vocês adoraram, a gente abrir.”

Então, não existe esse problema.” E o fato é que o “Doido é tu” passou a existir a partir dessa primeira experiência com o bloco de sujo. Em 2011, eu acredito que em 2010, a gente entrou como bloco oficial concorrendo na avenida.

Rafaell Estebann: A senhora já participou de projetos cujos públicos foram desde crianças e adolescentes, como é o caso do projeto EDISCA, mas também outras como o programa de atendimento básico a pessoas idosas, o PABI. Considerando essas diferenças etárias, como foi a idealização da metodologia utilizada durante esses processos?

Eliza Gunther: Assim, me encanta trabalhar com pessoas e me encanta muito mais ainda misturar pessoas. Lá na fundação, eu tenho possibilidade dessa experiência, de uma mesma peça de teatro, no mesmo trabalho a gente teve crianças de cinco anos e pessoas de setenta. Eu acho maravilhoso. Para cada público naturalmente que você tem que estar atenta às vezes pras especificidades também. De pensar o que que vai ser feito. Mas eu acho, eu percebi, que eu sou uma grande mediadora. Entendeu? De relações.

Então, a gente sempre vai encontrando a forma. E, por exemplo, na época que eu dei consultoria para a prefeitura pra pensar o PABI, das pessoas idosas o período foi curto mas qualquer experiência desse tipo que eu pensar eu vou pensar em misturar, sabe? Vamos pensar ações para os idosos onde eles tenham interação com crianças, com jovens, com adolescentes.

Acho que o nosso maior mal hoje é que a gente vive uma sociedade fragmentada, divisão entre as pessoas. E é só diversidade, só convivendo com a diversidade é que você vai exercitar a tolerância, que você vai exercitar a empatia, que você vai exercitar a aceitação do outro. Então, eu gosto muito de pensar experiências que sejam laboratórios onde as pessoas se desafiem até a conviver com o diferente, com a diferença. Acho que aí é onde a gente vai construindo nossa humanidade.

Ruan Rodrigues: Quais as dificuldades da gestão do bloco “Doido é Tu!”, ela encontra durante o ano, principalmente no período carnavalesco, que vocês levam mais de setecentos brincantes para avenida, quais as maiores dificuldades?

Eliza Gunther: As dificuldades, eu chamaria de desafios. E são muitos. O primeiro deles é não contar com um recurso para ação o ano inteiro. A gente conta com editais. Na verdade, as ações da fundação, hoje, sobrevivem de editais. A gente não tem um convênio que assegure a ação o ano inteiro.

O bloco “Doido é Tu!”, ele tem investimentos, ele tem custos que os outros blocos não têm. Primeiro, pela quantidade de pessoas. Segundo, pelo tipo de público que a gente leva. Então, o “Doido é Tu!”, ele tem que contratar seis ônibus, para cada regional tem que mandar um ônibus, o que a maioria dos outros blocos não precisa contratar nenhum. Além disso, ainda tem que contratar muitos acessíveis, porque a gente leva uma ala de cadeirantes, porque aí está a questão dos compromissos que a gente vai assumir com as pessoas.

A gente teve um ano que começou bem cedo e. fez uma homenagem ao Cláudio Pereira, que era um articulador da cidade e que era cadeirante. E a partir daquele ano, todos os anos eles querem sair novamente, e a gente também não poderia deixar eles, dizer: “não vocês não entram, porque vai ter um custo a mais”, então a gente resolveu arcar, também, com esse custo. Então o financeiro é o que mais pesa. Mas aí a gente vai encontrando alternativas. O bloco, a gente utiliza muito de reciclagem, a fantasia de um ano, para o ano seguinte, utilizando material reciclado, mão de obra das próprias pessoas dos CAPS. Aliás, toda a mão de obra, só, não. Todo o processo criativo, né? E de fazer, manufatura mesmo, das fantasias, dos adereços.

Então, a gente vai encontrando formas, outros editais de artes, né? Que às vezes a gente consegue entrar aí também, a hipocentria da circulação do nosso grupo musical, do bloco, a própria paixão de Cristo, que aí a gente entra no eventual do ciclo da paixão e já começa a trabalhar um pouco antes. Então a gente vai encontrando alternativas, mas esses desafios, o maior fator da gente vencer esses desafios, é o amor que as pessoas têm pelo bloco, que hoje eles são os principais protagonistas. O cantor oficial, como eu disse, é um usuário do CAPS, a rainha de bateria, a coordenadora, a pessoa que faz a coordenação de figurino, o alegorista era usuário do CAPS que nos deixou esse ano, infelizmente.

Assim a nossa bateria foi sempre um grande desafio e as pessoas, pelo fato de tomar medicação, às vezes não tem aquela coordenação motora fina, necessária. Então a gente… foi um processo muito complicado, assim, os próprios mestres de bateria que eu convidava pra trabalhar diziam assim “mas, Eliza, não pode! ele atravessa, não pode ficar na bateria porque atravessa”, aí eu dizia assim “mas ele não está com prazer de tocar?”, “tá”, “então é isso que importa, ele vai tocar atravessado.”as a gente vai perder a conta”, “Mas a gente vai ganhar inclusão”.

Então, assim, essa máxima nossa, do coletivo que faz o “Doido é Tu!”, né? Como um todo, de ter em primeiro lugar a inclusão é o ponto fundamental. Você gosta de cantar? Então você vai cantar. “Ah, mas ela desafina”, mas ela gosta de cantar, então ela vai. A mesma coisa da bateria e nós conseguimos mesmo assim, nós somos o único bloco de Fortaleza pentacampeão no X-campeonatos. Sem “arredar um pé” da inclusão.

Alice Barbosa: Eliza, ao longo dessa trajetória na condição de gestora cultural, qual você considera ter sido o maior desafio, sabemos que os cargos públicos, né? Nas gestões públicas, é muito comum ser ocupado por homens, aqui na UFC mesmo a gente tem a reitoria que não teve nenhuma reitora mulher. Quais os principais desafios que a senhora têm enfrentado na sua carreira?

Eliza Gunther: Assim, como eu te disse, eu sou um caso, assim, pouco explicado na gestão pública, porque eu nunca cheguei em nenhum dos cargos que eu ocupei por apadrinhamento político. Primeiro ponto, cargo comissionado, normalmente tem um apadrinhamento, ne? Nunca tive. Pelo contrário, em alguns momentos eu estive em gestão que eu era contrária, eu declaradamente não tinha votado.

Mas, em contrapartida, eu sempre fui chamada pra trabalhar muito, pra dar o sangue e o suor. Eu digo, eu nunca fui chamada para um lugar que tivesse tranquilo e, eu fui chamada para a Vila das Artes, ela tava ocupada. Eu fui chamada para o Teatro José de Alencar, ele tava fechado e com artistas sem acesso nenhum ao teatro. Ele tava fechado o mais uma vez vou citar o anzol, o teatro vai cair e vai cair na tua mão. E não só nós somos recordes de público todos os anos que eu estive no teatro, como a gente deixou o teatro bem inteirinho, bem bonitinho, reformadinho.

Então assim, sempre foi desafiante. E o próprio dragão do mar eu viajei, era produtora, tinha produtora, viajei pra ir negociar a festa do teatro, o projeto. Meu nome não era cotado para direção nenhuma e quando eu cheguei eu tava diretora, tava me convidando pra ser diretora do teatro, porque, conforme eu soube, tinha uma divisão aí entre as pessoas que estavam colocando os cargos e pra resolver essa questão chamaram o conselho de notórios na época, e esse conselho sugeriu o meu nome. Então, assim, nunca foi fácil nenhum dos lugares que eu assumi.

No dragão, eu fui lá pra dentro do dragão com o dragão em obras. Eu digo que o secretário muito sabiamente me botou lá para ser mestre de obras. Porque eu levei meu computador, uma mesa pra fazer a produção, para um equipamento que tinha um prazo de seis meses para ser inaugurado e quando eu conversava com as pessoas diziam assim, “não, em menos de um ano isso daqui não sai”.

Então eu tava ali, no dia a dia, cobrando as pessoas, virei mestre de obra mesmo, até chegar pro “secretáriozinho” totalmente a gente não vai trabalhar. Ah mas vamos fazer o seguinte: vamos inaugurar experimentalmente uma parte e o planetário e assim aconteceu. Sem falta de muito esforço, esforço pessoal. Prejuízos, muitas vezes, porque quando eu fui pro dragão eu tava dando consultoria pela construtora da EDISCA. Disse que ia achar tudo isso e me dedicar ao dragão e ainda mais correndo o risco de de de se perder a única coisa que eu tinha insegura que tenho até hoje que era o meu emprego no Estado, porque eu tive que tirar licença para interesse particular, porque não podia é ttrabalhar na consultoria quem fosse funcionária pública.

Perdi aí quatro anos de aposentadoria, promoção, tudo que você pode imaginar. Mas eu abracei aquela causa, assim, de uma forma, como eu digo que era militância mesmo, acho que era meio louca, às vezes, porque eu eu corri todos os riscos e pra ganhar eu acho que não era nem a metade do que eu tava no momento,trabalhando de domingo a domingo.

Eduarda de Almeida: Eliza, você já falou em outros momentos que a arte cura, salva. Eu queria perguntar de onde a senhora acha que vem esse poder da cultura, da arte em si em relação ao tratamento de usuários do Centro de Atenção Psicossocial? Em que momento a senhora enxergou esse potencial da arte em relação ao tratamento?

Eliza Gunther: Não sei se eu saberia te dizer exatamente o momento. Mas, como eu te disse, desde criança que eu fui apaixonada por arte, e pela cultura. Sempre achei que era mágico. E eu penso que esse sentimento é de que é necessário à vida, arte é necessária à vida. Todos nós temos necessidade da arte. Inclusive, se a gente for pensar, a arte já foi inserida ao viver. Se a gente for pensar, até mais próximo de nós, os nossos avós, bisavós, vocês veriam, ou verão, que a arte era muito inserida na vida deles. Assim, quando eles estavam lá fazendo a novena, quando eles estavam lá fazendo as festas de santo, que faziam as bandeirinhas, que faziam as comidas, que faziam as danças. Não havia essa dissociação entre vida e arte, viver e produzir arte. A cada dia, né? Com a modernidade, a arte foi se dissociando do viver.

A cultura tradicional aqui que eu tô dançando no meu terreiro, que eu tô fazendo a minha paixão de Cristo, isso aí não é arte não, isso é folclore, né? É a arte do morto, do passado, do museu, em algum momento era até vergonhoso, você fazer parte.

Quando eu estava no dragão, que criei um Natal regional e que aí começaram a ver os primeiros grupos. A gente via que alguns adolescentes estavam ali dançando meio envergonhados, que é diferente hoje que você vê a adolescentes participando da festas juninas ou do ciclo natalino orgulhosos disso, porque passou um momento, a arte popular ela foi tão depreciada que parecia uma coisa de gente pobre, de gentinha, de… Enfim, de desvalorização, como os nossos indígenas foram desvalorizaram, como os nossos quilombolas foram negados. E as pessoas tinham vergonha, então elas procuravam esconder isso.

Mas a gente foi percebendo que a arte é necessária à vida. Por isso que a arte cura. Porque ela faz parte do viver. E na medida que você tem a oportunidade de criar e de se expressar artisticamente, você gera potência.

Daí que eu acredito muito na potência da arte, mas a arte nessa visão muito mais ampliada, da cultura nessa visão muito mais ampliada, da convivência, da experiência junto,do coletivo, é tudo isso.

Eduarda de Almeida: Eliza, desde 2016 o grupo GESTO realiza um espetáculo teatral chamado “Amarga Ceia: Porque mataram Jesus?” o espetáculo, ele agradou tanto ao público como à crítica especializada e eu queria perguntar como se deu a idealização desse espetáculo?

Eliza Gunther: Bom, esse espetáculo surge novamente no âmbito daquela da experiência da Fundação Silvestre Gomes a partir de umas oficinas de teatro do oprimido que aconteceram no CAPS e depois dessas oficinas a gente sentiu necessidade de dar alguma continuidade. Então, convidamos os usuários para a gente criar o grupo, o grupo Gesto, que no início seria exatamente uma tentativa de fazer mais experimentação e teatro do oprimido.

Apesar de que hoje eu acho que tem que ser uma característica muito forte do teatro de rua, mas não sei se a gente é tão fiel ao teatro Oprimido. E aí pensamos na paixão de Cristo e começamos a ministrar no laboratório mesmo de teatro, onde a gente começa com o círculo dos oprimidos onde a gente começava, as próprias pessoas criavam os seus textos, hoje em dia ia elaborando, mas ia dar experiência de cada um, né? O texto deles e depois pelo roteirozinho com metalinguagem onde um grupo de moradores de rua eles apresentam a paixão de Cristo.

E na trama um dos atores da Paixão de Cristo o menino ele se envolve tanto com aquela história que ele começa a delirar ele é um usuário de Caps e ele começa a delirar com as coisas da trama mesmo, dizendo há um dia vocês vão ter carro vão ter posto de saúde, e foi muito engraçado que na época o primeiro ano quem fez o menino foi o Davi que é colega de vocês e o Davi dizia aquilo, que era desejo, ah vocês vão ter Coca-Cola, vão ter pizza.

Então, aí a fala era a fala dele, né? Do menino, mas a gente ia ali buzinando porque o personagem era um menino de rua. Num era aquele menino, sabia que estava fazendo a festa, então a gente fazia essa costura entre o desejo do ator e do personagem. E aí esse menino começa a falar essas coisas, esse sonho de todo mundo que é pecado, a comida, é ter médico no sus , enfim, um morador de rua começa a se irritar com aquela história, sabe? e aí o menino começa a dizer eu te perdoo em nome de Jesus, hoje mesmo vai estar comigo no paraíso começa a repetir nos delírios dele a história de Jesus, e o morador de rua vai mata o menino, e a amarga ceia é exatamente essa: ja. aconteceu a crucificação de Cristo que é a parte teatral onde seria esses moradores de rua apresentando que aconteceu a Paixão de Cristo e tal mas a verdadeira paixão porque mataram Jesus é a morte deste menino que tinha nome de Jesus também é isso.

Rafaell Estebann: Elisa, você disse que está na frente desses equipamentos culturais, muitos desafios foram encontrados mas quais os caminhos e estratégias você percebe que possam ser tomados para que os jovens cearenses possam ter uma experiência maior com o meio artístico seja de ensino, de aprendizagem ou mesmo de consumo?

Eliza Gunther: Olha eu penso assim que na época em oitenta e seis até hoje a gente aprendeu muito. E aí eu falo de um tempo onde não existia nenhuma política pública para a cultura responsável não é atoa que ficava a critério do humor do gestor conceder ou não conceder. Por mais que a gente possa fazer crítica hoje aos editais e eu também faço, acho que não pode ser a única política, mas já foi um avanço muito grande, porque hoje você tem estabelecido e quais são as ofertas de recurso e a forma de acesso a eles, aí é acessível a todo mundo? Não. Por isso que eu estou dizendo que não pode ser a única política pública. Mas, se. a gente for ver, a gente avançou demais, e aí a gente deve isso a vários gestores no decorrer dessa trajetória.

Mas, eu gosto muito de citar a Cláudia Leitão, posso citar a Violeta Arraes, que trabalhei na gestão dela, que chegou com a visão nova aqui de cultura mais ampla e o Paulo Linhares também que vem com o Instituto Dragão do Mar. Mas, a Cláudia Leitão, ela teve uma preocupação muito grande com a regularização de criar leis que transformam a política de governo em uma política de estado e eu dei a minha uma contribuição grande na elaboração do plano de cultura dela na sistematização e acho que foi um marco ali muito muito forte a gente pensou nas políticas públicas regulamentadas de lei, não mais uma política porque o que que acontecia? Que que eu vi um pouco dessa minha trajetória? A descontinuidade.

Você inicia uma ação como nós iniciamos lá em oitenta e seis a criação dos centros de ativação cultural no interior, na periferia e quero voltar e não leva a frente. A gente começava algumas ações que você vier evoluir nessa trajetória eu tive momentos de ficar muito mal mesmo e dizer não não faz parte dessa gestão e ficar fora. Porque era inviável seguir esse caminho, e o caminho agora é outro.

Então, à medida que nós fomos tendo as conferências, criamos sistema estadual de cultura, criando os mecanismos legais. A gente foi criando a possibilidade de vocês jovens participarem, e vocês participem. Tem os conselhos de cultura, transformem os setoriais de cultura e infelizmente nós ainda não participamos efetivamente como deveríamos, né? Como estudar danos.

Então, tem os mecanismos legais hoje pra gente atuar, pra gente acompanhar as políticas públicas, pra gente regulamentar forma de que a sociedade participe melhor, participe de fato, e a gente já tem muitas políticas públicas consolidadas. A política dos médico, por exemplo, os tesouros vivos que foi realmente criada na gestão da Cláudia Leitão, que era um sonho antigo de muitas pessoas aqui mas Cláudia, teve a ousadia, a coragem realmente de regulamentar e algo que pode parecer insignificante mas faz uma diferença enorme, por que é um reconhecimento de lei de que aquele mestre é um tesouro vivo, que. ele é importante pra nossa cultura, e ele recebeu um salário mínimo até o fim da vida dele. Pode parecer bobo, mas tinham muitos mestres, que passavam fome, então isso já é o mínimo de de garantia de uma sobrevivência, mas mais do que isso, garante o reconhecimento da sua comunidade, e muitos jovens passam a se inspirar no exemplo daquele mestre que antes era só mais um maluco da comunidade, fazendo coisas nada haver, entendeu?

--

--