“Nessa hora, fechei os olhos, respirei e aguardei o fim da minha história”

Rafael Santana
EntreFios - tecendo narrativas
4 min readDec 6, 2022

Relembra Cícera Ferreira ao recordar um dos acontecimentos que marcaria toda a trajetória, de luta e coragem, de sua vida

Por Rafael Santana

Cícera Ferreira / Arquivo Pessoal

Ela entra no quarto, liga a luz, posiciona a câmera e, com um sorriso no rosto, começa a entrevista. A tela transmite a imagem de uma mulher de pele branca marcada por traços de grandes vivências e um semblante que demonstrava o cansaço de um dia cheio. Mesmo assim, com um olhar radiante por ver seu filho a entrevistando, ela faz questão de se apresentar, começando com “Olá, meu nome é Cícera Ferreira e tenho 50 anos”.

Começo perguntando sobre o passado, dizendo que agora seria o momento em que iríamos voltar aos primeiros anos de sua vida. Nascida na cidade de Crato, interior do Ceará, Cícera relembra um pouco a época de meninez, em que vivia no sítio, com seus pais e seus dois irmãos mais velhos. A infância pobre e dificultosa não foi o bastante para que não a fizesse guardar boas memórias desse período.

As palavras, carregadas de sentimento de saudades, narravam as brincadeiras de quando era pequena, a cumplicidade com a irmã e a pureza de uma criança. Enquanto ela falava, percebi que ela estava ficando um pouco reflexiva. Nesse momento, observo a lágrima escorrendo em seu rosto, acrescida de um silêncio necessário.

Pergunto a ela, sentindo uma vontade enorme de atravessar a tela e abraçá-la, o que tinha acontecido. Então, depois de alguns segundos sem nenhuma palavra, ela responde, dizendo que a separação de sua irmã, que tinha ido embora muito jovem para trabalhar em casa de família, tinha deixado uma marca de dor que perdurou durante toda a sua vida, porque foi naquele exato momento que sua infância tinha chegado ao fim.

Cícera Ferreira quando era criança, ao lado de seu pai, mãe e entre os dois irmãos / Acervo Pessoal

Depois de se acalmar, proponho falarmos sobre sua juventude. Nesse momento, ela narra sobre o sentimento que existia dentro dela de querer conhecer outros lugares e morar na capital. Saiu de casa muito cedo e morou por um período em Fortaleza, de onde guarda boas recordações. Continua recordando que teve que voltar para casa, onde ficou só por um período, e depois foi embora para São Paulo, só com o consentimento de seu pai. Por lá, a jovem viveria 13 anos, o que seria o necessário para marcar toda a sua vida.

Pergunto sobre o porquê de São Paulo, ela responde que nunca soube, só sentia que tinha que estar lá. Em seu relato, ela conta que engravidou logo no início, e sua questão financeira era quase inexistente, apesar de que trabalhava muito, em diversas áreas, chegando a fazer até curso de segurança. “Foi uma barreira muito difícil, tinha muitos dias que eu ia ao trabalho, sem comer nada e grávida”, relembra.

Ela criou a sua filha ao lado de Reinaldo dos Santos, seu parceiro nessa época. Juntos, viveram os anos seguintes superando diversos obstáculos, falta de dinheiro e muitas mudanças. Sua última parada foi no bairro Jardim São Norberto, na cidade de São Paulo. Lembra que foi morar ali chorando, porque era um lugar muito perigoso, visto na prática por meio dos seis tiros que deram na porta de sua casa nos primeiros dias em que chegaram.

Ao longo dos seis meses em que viveu ali, presenciou diversas vezes o crime e a maldade sendo praticado como algo comum, até o dia 24 de outubro de 2002, onde viveria algo imaginável. “Eles arrombaram a porta, foram até o quarto, e deram 13 tiros nele. Eu estava ao lado, grávida de cinco meses de você. Nessa hora, eu fechei os olhos, respirei e aguardei o fim da minha história”, relembra Cícera ao falar sobre o assassinato de seu parceiro Reinaldo.

Cícera Ferreira ao lado de Reinaldo dos Santos, em São Paulo / Acervo Pessoal

Cícera sobreviveu para continuar a sua trajetória, voltando para a casa de sua família. Ao longo dos anos, mesmo carregando a dor desse dia, ela se reconstruiu, tendo mais dois filhos, onde a vida, sabendo de sua força, iria mostrar mais um desafio, o de ser mãe de duas crianças especiais. “Tem dias difíceis, já tive muita luta para que eles garantissem os seus direitos. Mas o maior é ver que muita gente não os entende”, afirma.

Esse ano, Cícera voltou a estudar para poder contribuir com a educação de seus filhos mais novos. Em maio, ela foi homenageada pela escola que frequenta e foi convidada para falar sobre sua história e a importância do estudo. “Se eu tivesse tido a oportunidade de estudar, teria sido juíza. Sempre quis lutar contra as injustiças de alguma forma”, finaliza.

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