Neta de candango

Isabelle Barros
EntreFios - tecendo narrativas
3 min readNov 30, 2023

Com pai interiorano, mãe da capital e avô construtor, Iraídes Barros perseguiu, ainda jovem, o sonho da casa própria, movida pela força de mulher nordestina e independente

Por Isabelle Barros

Iraídes Barros de Andrade / Arquivo Pessoal

Iraídes Barros, que se orgulha da origem indígena de seu nome, veio ao mundo nos Anos de Chumbo e desde cedo teve que ajudar no sustento da casa. A despeito do machismo, a única mulher entre três filhos de um casamento conturbado aprendeu a falar firme e a lutar pelo que desejava.

Nascida no bairro Damas, em Fortaleza, no Ceará, aos 12 anos assistiu à separação do pai comerciante e da mãe dona de casa. Com a distribuição dos bens, cada filho recebeu uma casa simples, baixinha e pequena.

A família não dividiu apenas os imóveis, mas também as vontades. Com o amadurecimento, Iraídes se interessou pelo desenho arquitetônico e pelo lado construtor do avô materno, candango e mestre de obras.

Com típico nome nordestino, Raimundo, seu avô, quando ia para as construções levava sua filha — mãe de Iraídes — , uma das poucas da família que sabia ler e escrever. Nas visitas, ela aprendeu as ideias básicas para os projetos.

Quando fez 16 anos, observando a luta de sua mãe para “ter a casinha dela”, Iraídes trocou a que havia herdado com a de seu irmão mais velho, vizinha daquela que sua mãe morava, na periferia de Fortaleza, e unidas ainda mais por uma passagem no quintal.

Aos 17 anos, Iraídes estagiou no Banco do Nordeste. Dividindo seu salário entre o sonho e a sobrevivência, todo mês tirava um pouco para comprar o material de construção, e o restante dava aos irmãos para ajudar nos custos do dia a dia.

Ainda com 17 anos, desenhou o projeto de sua casa. Do papel A4, surgiu a casa de 100 m², ventilada e do lado da sombra. Sem arquiteto, o imóvel ganhou a forma dos ensinamentos que o avô deu à sua mãe, a qual explicava desde quantos ferros levava uma coluna até quanto de cimento era necessário.

Isabelle, filha de Iraídes, no quintal cimentado de casa/ Arquivo Pessoal

O fim do estágio exigiu novos empregos, e em todos eles seus colegas sabiam sobre o projeto da casa em construção, apelidada por eles de “Igreja da Sé”, devido ao tempo que demorou para ser concluída.

Uma vez, suas amigas correram para avisar que Iraídes tinha ganhado um sorteio de 500 reais, exclamando pela empresa: “O dinheiro é dela [Iraídes], para construir a casa dela”. Diferentemente do que pensava, as pessoas não só escutavam, mas sentiam sua luta.

A rotina do trabalho era extensa e exigia dedicação exclusiva. Do outro lado da cidade, a residência era pouco murada, deixando os materiais ao ar livre.

Com medo de que todo o investimento fosse roubado, em 1998, Iraídes decidiu ir morar na construção do jeito que estava: apenas com o muro da frente e com uma cobertura improvisada em vez do telhado.

Economizando no alimento e no conforto, comendo por dois anos apenas arroz com feijão e só comprando uma fivela se a antiga quebrasse, os toques finais do projeto foram feitos, nunca devendo nada a ninguém.

Projeto da casa completo, em 2000 / Arquivo Pessoal

Anos mais tarde, com a casa pronta do jeito que, desde os 17 anos, fechava os olhos e via, Iraídes faz uma retrospectiva de todo o tempo dedicado à residência que hoje compartilha com o marido, a filha e a mãe: “Se eu tivesse pensado, teria dividido o dinheiro, teria estudado mais”.

Observando-a ao fim da entrevista, com cabelo preso e roupa simples, vejo que é mais esperta do que pensa. Suas palavras emitem valores e saberes complexos de uma forma sutil que não aprendi nem nos melhores livros da universidade.

Iraídes veio ao mundo em tempos de ditadura, mas nunca se curvou a nenhum ideal, seguindo apenas a intuição. Hoje, ela questiona de onde vem minha perseverança. Digo que sou forte porque fui criada por alguém mais forte do que eu.

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