O que uma menina do interior carrega na mala de viagem para Fortaleza

Alice Barbosa
EntreFios - tecendo narrativas
8 min readDec 5, 2023

A residente universitária Maria de Fátima Silva, ou Bibi, conta sobre os sentimentos de enfrentar os desafios de adaptação a uma nova cidade, a falta de dinheiro e sobre lidar com a saudade que sente da família

Por Alice Barbosa

Bibi cursa o terceiro semestre de Agronomia e mora em residência universitária da UFC / Arquivo pessoal

Em um singelo quarto compacto, de paredes claras, quase brancas, ocupado por poucos móveis de concreto, repousa Maria de Fátima Silva, em uma das residências universitárias (REU) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ela ocupa uma das 198 vagas da residência, destinada a alunos oriundos de outras cidades cearenses e de outros estados do Brasil, que vêm estudar em Fortaleza e que estão em condições de vulnerabilidade socioeconômica.

Maria de Fátima, ou Bibi, com seus 19 anos, feito tantos outros residentes universitários nesse reduto acadêmico, enfrenta os desafios de se moldar a uma nova urbe, um novo lar, distância da família, pressões acadêmicas e sensação de exílio. Bibi deixou para trás o clima frio e a tranquilidade da região da serra da Ibiapaba, no município de Ipu (CE), a cerca de 300 Km de Fortaleza, para estudar Agronomia na UFC, na capital cearense.

Ao som do tilintar das medalhas de destaque em matemática, robótica, português e esportes, ela conta que sua jornada como residente universitária “não começou de um jeito fácil”. De forma clandestina, ela foi agregada por seis meses, do ano de 2022, em outra residência universitária, uma residência masculina, onde habitava seu irmão. O motivo? Não tinha onde morar. Para se tornar residente universitário da UFC, é preciso atender aos requisitos do processo seletivo, acompanhar os editais, enviar os documentos exigidos, submeter-se a consultas médicas e entrevistas com as assistentes sociais da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae).

Bibi empacou no segundo passo, no envio da documentação, devido a problemas com internet e a precariedade do seu celular, que “travava muito”. Sem chance de recurso, buscou auxílio enviando emails à assistência estudantil da Prae. Ela relembra a resposta árida que recebeu: “Não podemos fazer nada”.

Os seis meses vivendo informalmente na primeira residência universitária foram tranquilos, a casa comportava seis rapazes. Quando se estabeleceu ali, só havia três e depois vieram outros três. Eles eram gays. Para ela, isso acabou facilitando a convivência. Também relembra: “Eles eram muito legais, eles sempre me deixavam à vontade, ninguém ficava me incomodando. Quando eu saí de lá, eles ficaram bem tristes”.

Eu não tinha lugar, nem parente, nem amigo em Fortaleza, nem perto de Fortaleza, para ficar em outro lugar, aí meu irmão deu a ideia de morar com ele. O pessoal da residência concordou, e eu fiquei lá esse tempo todo [seis meses].

Embora pudesse contar com a ajuda do irmão, ambos tinham pouquíssimos recursos financeiros. E os editais de bolsas da UFC geralmente são publicados nos meses do primeiro semestre do ano letivo. Bibi iniciou o primeiro semestre em agosto de 2023. Sem chance de conseguir uma bolsa, recorreu à Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae), em busca de auxílio financeiro. Em vista da sua urgência, até obteve resposta de que a ajudariam, incluindo seu nome na folha de pagamento do semestre 2023.1, bastaria que ela enviasse um email em 2 de janeiro solicitando o auxílio.

Narra em voz e olhar satírico que, em janeiro, mandou a solicitação por email e por WhatsApp, mas as mensagens não tiveram retorno, nem a garantia da ajuda financeira. Acrescenta, ironizando, que só teve resposta quando falou: “Eu achava que a mensagem era dia 2 de janeiro de 2023, não de 2024¨. As respostas que recebeu foram coisas do tipo ¨a gente aqui trabalha com seriedade, eu não vou aceitar ser desrespeitada”. E as outras mensagens? “Não respondeu nenhuma das outras perguntas, só ignorou”.

Agradecida, entre sorrisos melancólicos, conta que uma professora, que prefere não ser identificada, se sensibilizou com a situação. “Ela decidiu me ajudar, então falou com a antiga Pró-reitora da Prae. Falou que ia ver um jeito de me ajudar. Fora isso, fora dela arranjar um lugar para mim ficar, ela também me pagava mensalmente o valor da bolsa (400 reais)”. A professora contribuiu até Bibi receber a Bolsa de Iniciação Acadêmica (BIA), em 2023. A Pró-Reitora, com quem a professora conversou sobre a situação da Bibi, agiu imediatamente e destinou a ela a única vaga feminina que restava, em dezembro de 2022, na Residência Universitária do Pici, na condição de hóspede. Significa que ela não seria considerada residente, e não receberia ajuda de custo no valor de 400 reais.

“(…) depois deu tudo certo, né? Eu consegui passar na residência, eu consegui a bolsa da BIA. Agradeci muito a ela porque se não fosse ela, mesmo se eu ficasse de Residente, eu ia passar muita necessidade, porque eu não tinha nenhuma bolsa”. Enquanto se curva e prende o cabelo, confessa que sem esse auxílio, ela teria trancado o curso e voltado para o interior.

A rotina na residência, no Pici, era diferente da que havia experimentado na anterior, na qual havia poucos residentes, em que todos se conhecem e convivem amigavelmente. A residência no Pici é a maior de todas da UFC, tem capacidade para quase 200 alunos, homens e mulheres, onde não há quem conheça todos os residentes, alguns jamais se viram ou trocaram palavras. Um nítido contraste de lugares, mas essa diferença só foi sentida no início. Bibi diz que dividir o quarto e o banheiro não a incomodou muito, porque “eu já dividi (banheiro, cômodos) com mais pessoas lá em casa e lá tinha gente batendo na porta falando: ´Bora sai logo. Não sei o quê´. Então não me incomoda. Eu divido o quarto com uma pessoa tranquila, graças a Deus”.

A discrepância de lugares que mais a perturbou foi entre Ipu-CE e a capital cearense. Rememora, de forma saudosa, que sua cidade tem um clima mais frio, a violência mais comum registrada em Ipu-CE são os acidentes de trânsito, por imprudência, lá se sentia segura e saía com mais frequência com parentes e amigos. Em Fortaleza-CE, sai de casa poucas vezes, lida com a sensação de não pertencimento, insegurança, ansiedade e saudade da família.

No início, todos esses sentimentos misturados a faziam dormir por horas, sentia imensa exaustão e falta de vontade de fazer qualquer atividade, até mesmo as mais básicas como lavar a louça ou simplesmente tomar banho. Isso “estava afetando o meu rendimento acadêmico”. Diz ainda que “poucos professores têm um mínimo de compaixão com os estudantes, eles pensam que só tem a cadeira deles para fazer. Eles passam relatório, passam a prova, passam tanta coisa”.

Assim, tanto a distância de casa, que mexeu um pouco comigo, que eu saí do lugar que era um ambiente totalmente controlado, era um ambiente que eu conhecia todo mundo, que eu sabia de tudo que ia acontecer, que eu tinha noção de tudo. E eu vim para outro lugar que era completamente o oposto. Eu não conhecia nada, nem ninguém, nem sabia o que é que ia acontecer, nem o que era o quê. Então eu tive que me adaptar, e eu demorei mais do que as outras pessoas. E tinham as coisas do passado, que eu também tinha que trabalhar, tipo a morte da minha madrinha.

Bibi conta que esses momentos foram estressantes a ponto de sentir constantes dores de cabeça. “Eu fiquei muito preocupada se eu ia continuar tendo um teto ou não. Se teria que voltar para o interior. Se estaria sendo tudo em vão”.

Percebeu que passou a aderir “manias feias” de “beliscar o rosto” e “coçar a cabeça com as unhas” e arrancar minúsculas partes da pele dos dedos, ao redor das unhas, até sangrar. Para evitar isso, foi ao psicólogo, passou a tomar remédios que a ajudaram a tratar os sintomas de ansiedade e depressão. Começou a pintar as unhas com certa frequência e hoje mantém esse costume como forma de autocuidado.

A impressão que tinha na residência é que cada residente vivia em seu universo particular, experimentando as próprias dores e sem tempo para reparar nos sofrimentos alheios, “para cuidar do outro”. Essa percepção despertou uma sensação de solidão, que provocou a dor absoluta do luto pela perda da madrinha que adiou sentir. “Eu não pude viver meu luto quando era para ter vivido”, confessa Bibi, e elucida que o psicólogo a norteou a ter essa compreensão.

Embarga a voz, suas mãos tremem e ela começa a chorar, ao falar da sua madrinha, “era uma pessoa que me apoiava muito”, quando faltava dinheiro para comprar coisas básicas como caderno e lanche, quando “não tinha merenda na escola” foi a sua madrinha quem a ajudou.

Adiou viver o luto, porque “todo mundo ficava desfazendo minha tristeza. Meus irmãos ficaram tipo: ´Ai a mulher morreu faz um ano e meio, e tá chorando, pra quê isso?”. Ela “dá um desconto” para quem lhe diz “não chora, tá tudo bem”, pois entende que, embora não ajude, essas pessoas tentam motivá-la e não querem vê-la entristecida.

Não tem uma data certa (para sofrer o luto), né? Então eu posso chorar a vontade, quando eu quiser, daí se desconta para as pessoas que não entendem. E também, o luto não é doença, então né? Posso seguir minha vida chorando, quando eu quero, quando eu sentir saudade, já que era uma pessoa muito importante para mim.

Apesar da Residência ser um lugar capaz de evocar seu passado de volta, é também um lugar que, paradoxalmente, traz à tona novas possibilidades. Novas chances e novos vínculos. Ela conta que o que mais gosta da vida na residência é que é um lugar muito plural, que possibilita a chance de “conhecer e conviver com gente de vários lugares e de várias ideais, até as mais absurdas”. Para ela, os desafios que afetam diretamente a vida, na condição de residente universitária, são de cunho estatal, estruturais, que se resolvem com mais investimentos e reparos.

Ela diz que enfrenta as dificuldades estudando, gosta de estudar, e orgulhosa, aponta sorrindo para as medalhas de bom desempenho escolar penduradas na janela do seu quarto. Por outro lado, reconhece que é necessário deslocar o pensamento para outras áreas, afinal estuda e mora na UFC. Sobre estar “o tempo todo” na Universidade Federal do Ceará, Bibi comenta que “é horrível, ela (UFC) suga completamente teu juízo, tua saúde, é por isso que eu digo que eu admiro o pessoal que tem uma vida a parte, e bem sucedida, da Universidade, porque eu não tenho a possibilidade de fazer isso”.

Bibi esclarece que “está tudo melhor do que antes”, pretende superar esse entrave conhecendo mais a cidade de Fortaleza-CE, visitando as praias e os museus. Encarou como conquista as três vezes que saiu de casa sozinha para a Beira Mar, Dragão do Mar e para o Centro. “Eu tenho que sair de boa, sem pensar em tantas coisas ruins, em tantas e todas as possibilidades que podem dar errado”.

Revela que tem uma lista de lugares que quer conhecer para cumprir com o comprometimento que fez de anular o sentimento de exílio e atenuar a saudade de casa. “Planejei ficar mais um pedaço em Fortaleza, poder fazer essas coisas para ver se eu me sinto mais daqui”.

--

--