Qual pronome devo usar?

Vanessa Freire
EntreFios - tecendo narrativas
4 min readNov 1, 2020

“Gramáticas são formas de poder”, defende Girassol Lino de Aguiar, estudante de Letras que teve seu nome social e sua identidade não binária respeitados pela empresa na qual estagia

Por Vanessa Freire

Girassol Lino de Aguiar é estudante de Letras / Arquivo pessoal

Confetes voam pelo ar para anunciar a chegada de uma criança. Se forem rosa, será menina; se forem azuis, menino. Provavelmente, ela terá o nome, as roupas e o quarto escolhidos a partir do gênero que lhe for atribuído. Antes mesmo de nascer, já nos é imposta uma maneira de ser e de estar socialmente. Mas será que todo mundo realmente se encaixa nessa bolha pré-determinada?

Nos embalos de um sábado à noite, a imagem de Girassol aparece por meio de um retângulo virtual chuviscado, conhecido como computador. Vestia uma camisa amarela, sua cor favorita, portava seus costumeiros óculos arredondados e carregava, como traço de sua personalidade, um sorriso fácil e acolhedor.

Começou proferindo seu nome: Girassol Lino de Aguiar. Um nome forte que representa um pouco a história desse estudante de Letras.

Veio ao mundo com essa denominação em 2019, mas há mais de 18 anos vem deixando sua marca por onde passa. Estudou no IFCE, arriscou-se em peças teatrais, usou sua voz para boas causas e encontrou, no curso em que frequenta, um espaço para um dos assuntos que mais queria discutir: gênero.

Desde muito cedo, Sol, como prefere ouvir seu nome, não se identificava com os limites de gênero impostos em nossa sociedade. Na escola, não gostava de andar com os meninos; conversava com as meninas, mas nunca se viu nem lá e nem cá. Sempre se sentiu diferente nesses dois lugares. Essa inquietação perdurou até seus 16 anos, quando teve acesso a algumas discussões que permeavam, principalmente, o mundo LGBTQI+.

A pauta da identidade não binária, em particular a ageneridade, surgiu na vida de Sol e, a partir daquele momento, a descoberta do ser e do estar foram ganhando maiores proporções em sua vida. E, então, em cada lugar que frequenta, em cada pessoa que conhece, leva uma representatividade para sua causa e promove um rebuliço, no bom sentido, nos ciclos em que está inserido.

Girassol está no mundo para mexer com a estrutura social, que ainda é tão empedrada e precisa, mais do que nunca, de pessoas que desobstruam esses muros que nos prendem antes mesmo do nascimento. Com sua existência e resistência, quer que as pessoas se sintam representadas, a partir do seu posicionamento e de sua luta.

A língua portuguesa tem uma forte marcação de gênero e, ao contrário do que muitos gramáticos pregam, os gêneros social e gramatical são indissociáveis. Prova disso é a presença de um só homem em uma sala com participantes, majoritariamente, mulheres e o pronome ter que ser alterado pela simples presença de Ele. Sol questiona: “E se o pronome usado fosse o feminino? Qual seria a consequência?”. Possivelmente, respondo, um cenário em que homens se sentiriam altamente ultrajados com a possibilidade de serem nomeados na forma feminina, puro reflexo de uma sociedade — e de uma língua — patriarcal. “Gramáticas são formas de poder”, bem pontuou Girassol.

Crachá de Sol sem referência ao gênero no cargo ocupado / Arquivo pessoal

No final de 2019, Sol se candidatou a uma vaga em uma certa empresa. Em uma das entrevistas, foi perguntado: “O que te faria desistir de trabalhar aqui?”. Prontamente, Girassol respondeu: “Se não respeitarem meu nome, eu saio”. Talvez esse tenha sido o Dia do Fico. Sol não só foi admitido como também mudou a dinâmica do local.

Quando recebeu a carta de aceite da empresa, ela veio redigida utilizando o pronome neutro; o crachá veio com seu nome social e com linguagem neutra, e as pessoas que trabalham ao seu redor enfrentaram esse novo desafio de conhecer e acolher essa nova forma de se expressar: por meio do gênero neutro.

Além disso, no começo, Sol não se sentia confortável usando os banheiros que, comumente, são separados por gênero. Diante disso, começou a utilizar o banheiro acessível. A empresa notou e, então, vários adesivos de mulheres, de homens e de pessoas sem gênero foram adicionados à porta desse espaço e ele se tornou o “banheiro da diversidade”.

Esses gestos e essas mudanças fizeram Sol se sentir parte da empresa. E não só isso: a partir de sua presença, as configurações física e comunicacional foram alteradas, abrindo portas para pessoas que entrarão posteriormente na empresa e se sentirão acolhidas e respeitadas. Tudo porque elu, Girassol, mostrou que é e está nos lugares.

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