“Quero agradecer por você estar aí”

Guilherme Siqueira
EntreFios - tecendo narrativas
3 min readAug 10, 2022

A enfermeira Saula Tarsiana não faz nada sem planejar, das escolhas profissionais à decisão de ser mãe solo aos 21 anos de idade

Por Guilherme Siqueira

Saula Tarsiana durante a pandemia de covid-19 / Acervo Pessoal

O ar-condicionado está quebrado. Coberta dos pés à cabeça, Saula Tarsiana, 40, sente o suor escorrer pela testa, incapaz de secar. Com duas luvas em cada mão, um macacão, uma máscara apertada e um escudo de rosto, ela liga para o setor de telefonia do hospital Instituto José Frota (IJF) e pede a alguém da manutenção para ir à Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) de covid-19 para fazer o conserto do equipamento.

Atônita, ela ouve o atendente chorar do outro lado da linha e agradecer por ela estar atuando, naquele abril de 2020, na linha de frente de enfrentamento à pandemia, atendendo aos casos mais graves da doença que parou o mundo.

Não foi uma decisão fácil. Na verdade, ela sequer possui a formação específica necessária para trabalhar na UTI. Com a pandemia, poucos profissionais se dispuseram a trabalhar nas unidades que atendem pacientes diagnosticados com a nova doença.

Existe medo. Saula, que também sente medo, não se deixa ser impedida por ele. Sua filha, Laís, e seu marido, Marcelo, que também sentem medo, haviam tentado impedi-la de aceitar a posição na unidade. Rindo, ela brinca tentando ignorar seu próprio medo: “É meu chamado, é lá que tenho de estar”.

Estar lá não é fácil. Houve poucos momentos fáceis na vida de Saula, a irmã mais nova de uma família com seis filhos, da periferia do bairro João XXIII. Casada aos 16 anos com seu primeiro marido, ela saía da escola e do seio de sua família para passar os próximos quatro anos em Guaraciaba do Norte, no interior do Ceará.

Naquela cidade, redescobriu a importância da educação, buscando uma unidade de ensino do município para concluir seu ensino médio. Não foi o bastante. Saula começou a planejar, então, a cursar um ensino superior.

Aos 20 anos e recém-separada do primeiro marido, Saula voltava para Fortaleza para descobrir que seria mãe solteira. Estava grávida. Apesar da insistência da mãe — com quem Saula considera ter uma relação conflituosa — para que voltasse com o marido, ela optou por criar a filha sozinha.

Sozinha, não. Saula faz pausas em sua história para enfatizar quão essencial foi sua rede de apoio durante os primeiros nove anos da vida de sua filha, período em que — entre sua formação, seus trabalhos e sua preparação para concursos — poderia chegar a ficar 36 horas longe de casa.

“Eu comecei a fazer algumas coisas quando ela era pequena, para que ela entendesse que, mesmo que ela não me visse, eu estava em casa. Às vezes, quando eu saía pra trabalhar muito cedo, às 5h da manhã, eu passava onde ela tava dormindo e fazia um nó no lençol dela, pra ela saber que ela estava dormindo, por isso ela não me viu, mas eu havia visto ela”.

Aqui, no telefone da UTI-Covid, com o aparato que a impede de secar o suor que escorre por sua testa ou as lágrimas que agora caem por seu rosto, Saula ganha uma nova compreensão sobre a razão de ter dedicado tantos anos de formação, de ter tido tantas noites mal dormidas e ter abdicado de tantos momentos com sua filha.

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Guilherme Siqueira
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Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Ceará. Interessado em pautas internacionais do interesse comum. Apaixonado por fotografia e histórias humanas