Sonhos longínquos, mas nunca esquecidos

Raiza L Souza
EntreFios - tecendo narrativas
3 min readJul 13, 2023

Uma história de vida marcada por resiliência, por saber seguir em frente e persistir: esta é Antônia Lima ou dona Iraci, minha avó

Por Raiza L Souza

Foto da vozinha envergonhada quando lhe peço um sorriso / Imagem: Raiza Souza

“Porque não entrevista outra pessoa em vez de entrevistar uma velha de quase 80 anos?”, questiona minha avó quando a abordo em sua casa. Mas é justamente sua longa jornada que faz de sua historia de vida uma fonte de inspiração às pessoas a seu redor.

Muito conhecida pela excentricidade, Antônia Lima — ou dona Iraci, como é mais conhecida — é marcada pelas dores da vida, pela seca, pela fome e pelas dificuldades de quem não teve acesso aos estudos. E, ainda assim, teve de aprender a sorrir.

Figura ilustre no bairro, é conhecida por falar com todos sem distinção, mas isso não significa que ela consegue controlar sua língua afiada. Faz presença na vida dos vizinhos e conhecidos. Sempre com uma resposta na ponta da língua, não leva desaforo pra casa, e há quem diga que me pareço com ela.

É por meio dessa capacidade de lidar com a vida que podemos entender melhor de que modo ela se tornou essa grande mulher.

Criada pelos avós, já que os pais não tinham condições, não teve acesso aos estudos, pois morava na roça, no campo seco da cidade de Boa Viagem, no Ceará. Por conta da distância do local e das atrocidades da vida, nem ela nem os irmãos podiam frequentar as escolas e ter acesso aos estudos, algo que marcou sua vida para sempre.

Quando perguntada sobre seus sonhos, ela menciona que já teve muitos. Hoje, não restou nenhum, apenas os desejos da infância, que, infelizmente, não conseguiu realizar.

Após se casar, não esperava que “comeria o pão que o diabo amassou”. Enfrentou um relacionamento conturbado e, para a época, não era comum que houvesse menção ao “desquite”.

Em um tempo difícil, teve de lidar com a dureza de criar 14 filhos. Via com seus próprios olhos a dureza com que o pai deles, seu marido, lidava consigo e com as crianças.

A fome dos tempos secos e os machucados físicos, por muito, a fortaleceram para encarar a vida que viria pela frente. O sonho de uma vida feliz havia se tornado um pesadelo.

Mesmo com as dificuldades, dona Iraci nunca desistiu. Mandou os filhos para a capital, Fortaleza, separou-se do marido e arredou pé da pequena cidade de Ubajara, onde havia conhecido o então companheiro.

Teve de lutar muito antes de ver, ao menos, os filhos terem uma vida digna. Tornou-se adulta, mãe, avó e bisavó muito cedo, sem ao menos ter aproveitado a longínqua infância.

Foi ela, também, quem me criou. Lembro vagamente de como eram os dias em sua casa, sempre pedindo a bênção pra não levar bronca. “Não dá mais bênção, não?”, interrogava e ainda hoje interroga a todos os netos. Ensinou como pôde cada geração, cuidando com o amor que não pode ter enquanto menina.

Mesmo com todas as durezas enfrentadas tão precocemente, hoje ela sorri. O tempo inocentou as dores e as mágoas guardadas. Enfrentou doenças, luto, pandemia, mas, depois de tudo, sobrou uma família, uma grande família que ela ama.

Seu maior sonho sempre foi uma casa grande, na roça, rodeada de plantas e alpendres para armar rede. Não conseguiu. Sua pequena casa, contudo, cheia de plantas e gatos, é hoje o seu larzinho e aconchego, onde se sente feliz.

Quando cheguei à sua casa, dona Iraci demorou para embarcar na entrevista. Estava nervosa, disse-me que nunca na sua vida passou por algo assim, nunca ninguém perguntou sobre sua história, seus sonhos e motivações. Uma história de vida marcada por resiliência, por saber seguir em frente e persistir. Esta é Antônia Lima ou dona Iraci, minha avó.

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Raiza L Souza
EntreFios - tecendo narrativas

Uma estudante de jornalismo a procura de uma inspiração para escrever