Talles Azigon: “Mídia e academia tentaram impor o que é arte, mas a gente não deixou”

Pedro Mairton
EntreFios - tecendo narrativas
31 min readMar 22, 2021

Fundador da biblioteca Livro Livre Curió, o poeta questiona a imposição de um conceito elitista de literatura e define como “maior entidade literária brasileira” a escritora Conceição Evaristo, com quem divide a curadoria da edição de 2021 da Bienal do Livro do Ceará

Por Cássio Vasconcelos, Gustavo Ferreira
Patrícia Morais e Pedro Mairton

Talles Azigon é idealizador da biblioteca Livro Livre Curió / Reprodução/Instagram

A vida é uma paisagem mítica. Entre as plantas e os prédios, existem as pessoas, cada uma com suas histórias, afetos e mitologias. Se não fosse a palavra, como traduziríamos esse infinito particular aos nossos vizinhos? Por isso, é necessária a poesia, para dar nome ao intraduzível e para unir as vozes.

Contar histórias, dar ritmo ao pensamento e à emoção, refletir sobre soluções para os problemas de nossa realidade concreta e interpretar o mundo são atividades fundamentais para nossa vida social. Todas elas passam pelo uso da linguagem. Quando nos é negada a possibilidade de experimentar novas linguagens, o que mais também nos é negado? A palavra, portanto, é uma questão urgente.

Para debater esse e outros temas, o EntreFios recebeu, em 10 de março, o poeta e produtor cultural Talles Azigon, responsável por diversos projetos que mobilizam a vida social da cidade de Fortaleza por meio da arte, da leitura e da literatura.

Publicou diversos livros, entre eles MARorigiNAL, Três golpes d’água e, mais recentemente, a trilogia Saral.

Ele é idealizador da biblioteca comunitária Livro Livre Curió, que transforma e inspira a vida de muitas e muitos jovens em sua comunidade. A biblioteca e o jornal comunitário Folha Curió fazem parte da CasAvoa, centro cultural que ele mantém no bairro Curió, na Grande Messejana, em Fortaleza.

Talles tem forte atuação no cenário cultural da cidade, sendo um dos responsáveis, junto com Conceição Evaristo, pela curadoria da edição de 2021 da Bienal Internacional do Livro do Ceará.

Além de morar no bairro Curió, em Fortaleza, ele vive também naquela canção de Sérgio Sampaio que diz: “Um livro de poesia na gaveta não adianta nada. Lugar de poesia é na calçada”.

Confira a entrevista na íntegra no vídeo e alguns trechos selecionados a seguir:

Gustavo: Talles, você é um dos idealizadores da Biblioteca Comunitária Livro Livre Curió. Além do acervo multimídia, o espaço oferece cursos, atividades culturais e mediações de leitura. Quando surgiu a ideia de criar uma biblioteca comunitária?

Talles: A ideia de ter uma biblioteca é algo que vem da minha infância. Eu cresci numa casa que não tinha livros — uma casa como qualquer casa de pessoas das periferias. Quando eu descobri que existiam bibliotecas e que elas eram um lugar interessante — eu queria estar nelas sempre —, eu começava a brincar com os pouquíssimos livros que eu ganhava de alguma vizinha, algum vizinho, ou de alguém que me dava. Eu juntava esses livros e colocava na sala. Mas a ideia de construir a Livro Livre Curió veio de um curso que eu dei na UFC [Universidade Federal do Ceará], de produção de eventos literários. A minha aluna, a Annita Moura, falou sobre o movimento Livro Livre Ceará e que ela criava pontos de compartilhamento de livros. Eu vi que se encaixava muito bem essa ideia lá na sala da minha casa.

A minha mãe, que é esteticista, usa a sala de casa pra trabalhar. Minha casa sempre teve um fluxo muito grande de pessoas. Então eu pensei: por que não fazer um ponto de compartilhamento de livros? Só que, por causa da minha história, do que eu estudo, do que eu realizo, essa ideia que seria só um simples ponto de compartilhamento foi ganhando naturalmente uma dimensão maior”.

Quando eu inaugurei esse ponto, já não era um ponto, já era mesmo a nossa biblioteca comunitária Livro Livre Curió, que teve a adesão de amigas, amigos — inclusive uma das grandes amigas minhas doou a primeira prateleira de livros. Aí a ideia foi só tomando uma proporção maior a cada vez que mais pessoas conheciam e se apaixonavam pela ideia da biblioteca comunitária.”

Gustavo: Talles, quais foram as principais dificuldades enfrentadas pelo projeto no início?

Talles: As dificuldades não só da nossa biblioteca, mas de qualquer biblioteca comunitária, principalmente quando ela é de iniciativa como a nossa, popular, totalmente desligada de uma instituição — nós não somos uma ONG, nós não temos ligação com nenhum tipo de igreja, ou partido político, ou algo assim, somos totalmente independentes — iniciativas assim têm como dificuldade maior a questão da sustentabilidade: fazer com que a ideia possa ter recursos pra que ela se mantenha e também pra que ela se amplie.

“Ao contrário do que as pessoas possam imaginar, uma biblioteca não é só uma estante de livros”.

Uma biblioteca é muito mais do que isso. Ela tem serviços, ela precisa de manutenção, ela tem uma atuação dentro da comunidade onde ela tá inserida. Tudo isso requer recursos. Até hoje a biblioteca é mantida principalmente com os meus recursos, do meu trabalho. Eu acho que um outro grande desafio era fazer com que a biblioteca se tornasse relevante para o meu bairro. Porque, até então, eu tenho um trabalho muito grande em Fortaleza, já fiz muita coisa: 15 anos de produção de eventos literários, apesar de só ter 31 — vou fazer 32 agora. Comecei muito cedo. Então, eu tinha essa movimentação e essa habilidade, mas eu tava chegando ao Curió. Não fazia muito tempo que eu tava lá, apesar de a minha mãe ser uma das pessoas que construiu a sua própria casa [lá], então ela tinha esse conhecimento. Mas, pra mim, seria um grande desafio tornar a biblioteca relevante pra comunidade. Mas eu contei com a minha mãe e ela é, com toda a certeza, uma figura central pra que a biblioteca tivesse a repercussão que tem hoje no bairro.

Patrícia: Talles, eu quero continuar falando ainda sobre a biblioteca. A gente sabe que ela funciona com um sistema que não tem cadastro e nem prazo de devolução. Como é que vocês montam e organizam o acervo?

Talles: Nós somos uma biblioteca livre — o nome já denuncia. Denuncia não, na verdade, anuncia: Livro Livre Curió. A biblioteca também parte de uma longa pesquisa, de uma longa vivência minha com essa questão. Uma das coisas que eu observava era que uma biblioteca comunitária não poderia afastar os possíveis leitores e leitoras. Ora, a essas pessoas já foi negado o direito de ter acesso a esse tipo de material, que elas tinham todo o direito de ter. As pessoas não possuem livros em casa. As bibliotecas escolares são paupérrimas, [isso] quando elas estão funcionando. A gente teve recentemente um caso do ex-prefeito de Fortaleza: quando ele assumiu, a primeira atitude dele foi a de fechar as bibliotecas escolares. Então, assim, são pessoas — são as moradoras e os moradores das comunidades. Elas não têm quase nenhuma relação com o livro-objeto.

“Colocar barreiras e colocar dificuldades é tornar a biblioteca ineficaz. Então a minha decisão foi: quanto menos barreira, melhor. Não tem ficha catalográfica, não tem lista de livro, não tem prazo de devolução. A gente vai trabalhar com a questão da confiança, do sentimento de comunidade, afinal, a gente tá numa comunidade: todo mundo se conhece”.

Não precisa achar que alguém vai levar um livro — e se [bate calmamente uma mão na outra] tanto faz pra gente. O que a gente faz mesmo, o que eu faço hoje, junto com a minha mãe, com a Lygia, com o Pedro William, com o Daniel, com todas as pessoas que colaboram com a biblioteca, é organizar o acervo de uma maneira que seja funcional. Por exemplo: livro pras crianças ficam nas estantes mais baixas; livros separados mais ou menos por assunto, pra facilitar a pessoa localizar — exemplo: literatura brasileira, livros de pesquisa — de uma maneira muito intuitiva, até mesmo porque uma das questões que eu sempre toquei era a de fazer com que as leitoras e os leitores fossem independentes também até na questão de achar o livro que elas querem e não ficar falando assim: “Ai, eu quero livro tal”, e a gente ir atrás do livro pra pessoa. A gente pensou assim e deu — tá dando — muito certo pro nosso modelo de biblioteca.

Patrícia: Quais são os tipos de livros que são os mais procurados pelos leitores?

Talles: Os livros que são os mais procurados são os livros infanto-juvenis, porque o nosso maior público é esse. Antes da pandemia, a gente tinha até uma rotina na biblioteca. A rua lá de casa é como se fosse uma rua principal: é perto de uma escola, que é a [rua]Professora Isabel Ferreira. Então, quando terminava a aula, as crianças e adolescentes já passavam na biblioteca, levavam o livro e iam pra casa — isso todos os dias. Esse é o público principal. Sai muito livro infantil e infanto-juvenil. Depois disso, tem os livros que interessam à juventude: livro de terror, ficção científica, livro de literatura e eventualmente os livros que são demandados pela escola, quando faz um trabalho, uma pesquisa ou algo assim. É tanto que a gente foi adaptando também o acervo da biblioteca de acordo com o uso que ela tem, porque eu ficava sempre tocando nessa função: “Olha, gente, nós não somos uma biblioteca pública, a gente não tem a obrigação de ter uma biblioteca pra conservar acervo”.

“Essa biblioteca é feita pro acervo circular”.

Então a gente sempre procura deixar lá na biblioteca, nos nossos dois espaços [sua residência pessoal e a CasAvoa, centro cultural que integra a biblioteca comunitária Livro Livre Curió e o jornal comunitário Folha Curió], o acervo que realmente sai. O acervo que não tem essa demanda, a gente procura verificar quais espaços precisam dele e doamos.

Patrícia: Mas já houve problema com devolução?

Talles: Não, a gente não teve nenhum tipo de problema assim. É tão interessante que, muitas das vezes, o que acontece é que a nossa casa é comprida — ela é pequena, mas ela é comprida — e muitas vezes a gente tá lá na cozinha — eu, a mãe, a minha irmã — e os meninos entram, abrem o portão, pegam os livros, fecham o portão, às vezes de noite. Olha, sinceramente, eu não tenho nenhuma preocupação. Acho que a comunidade entende tão bem a questão da importância da biblioteca que o nosso outro espaço, a CasAvoa, ficava com a porta do quintal aberta — e ainda fica. A gente tem televisão, tem projetor… Então, assim, eu não tenho nenhum medo de ser roubado, nenhum medo disso, porque eu entendo que as pessoas sabem da importância de uma biblioteca. Elas sabem que aquilo é da comunidade.

“Ao contrário do que o senso comum pensa sobre a periferia, na verdade, ela é muito mais organizada do que certos espaços da cidade que são ditos ‘não periféricos’. Eu acho que essa organização é também uma certa ética. Quando as pessoas entendem que aquilo é realmente da comunidade, isso é preservado”.

“Ah, Talles, mas por que é que não preserva a praça?”. Porque isso não é construído com as pessoas, entende? Porque ninguém pede a opinião delas, porque elas não estão dentro do processo. Diferente da nossa biblioteca. Ela é totalmente pensada junto com o bairro. Eu tive a ideia inicial, fiz ela acontecer, mas a biblioteca é realmente de todo mundo, e eu vejo isso pelas crianças, pelos adolescentes.

“As crianças que frequentam mais a biblioteca têm esse discurso: ‘Nossa biblioteca’”. Isso é muito legal de ver, que tá certo esse tipo de pensamento posto em prática”.

Pedro: Talles, a biblioteca inclui um acervo multimídia: livros, filmes e até um acervo digital. Portanto, há várias formas de se ler. Pra você, qual a importância da leitura pra nossa própria coletividade e o que é possível ser feito para torná-la ainda mais acessível?

Telles: É muito importante essa pergunta, porque a sociedade não entende o que é leitura. Isso também entrava até na construção de políticas públicas de livro, leitura e literatura.

“O que nós estamos enfrentando no Brasil, na verdade, é um problema de leitura”.

A partir do momento em que a gente não sabe escolher o governador principal do Brasil e essa pessoa comete todas as atrocidades — e toda a sua equipe comete — e a gente tá encravado dentro de uma maré de notícias falsas, tudo isso é um problema de leitura, porque as pessoas não sabem processar essa informação. Elas não leem, elas não entendem, elas não conseguem refletir, porque elas não têm parâmetros pra que isso aconteça. Isso acontece de maneira múltipla.

“Não é só o livro que dá esse conhecimento. A [nossa] biblioteca tá encravada na filosofia do Paulo Freire. Ele fala que a leitura, antes de tudo, é primeiro uma leitura de mundo e depois uma leitura da palavra. Uma amplifica a outra”.

Então, tudo é passível de se ler, e a gente entende isso como biblioteca. Tanto que a nossa ação principal não é o acervo. O livro tá lá, tem um poder simbólico, político, ele é, digamos assim, um pretexto de organizar, mas o principal mesmo da biblioteca são as ações que ela constrói dentro da comunidade: é a mediação de leitura; é o clube de leitura das mulheres; é o clube de leitura das crianças; é o sarau; é o Festival de Música Tarará; são as ações que a gente faz coordenadas com a União do Povo de Santa Edwiges, como a Parada da Diversidade de Messejana, como a feira dos empreendedores LGBTQIA+; é o cineclube. Então todas essas ações são tão importantes quanto o livro físico, e uma coisa leva à outra. Isso tudo compõe a biblioteca. Então eu acho que, assim, mais do que a importância física de um livro, que é realmente extremamente importante — eu não tô diminuindo isso —, mas é esse entendimento de que a biblioteca trabalha com a leitura de mundo. Por isso que a nossa biblioteca talvez seja esse grande sucesso e as pessoas falem tanto sobre a Livro Livre Curió.

Pedro: Talles, você disse que as crianças e os adolescentes das escolas perto da biblioteca são o público principal da Livro Livre Curió. Mas há a frequência de adultos que se interessam por realizar leitura também?

Talles. Sim. A biblioteca, na verdade, tá formando esses leitores e essas leitoras. A minha mãe é manicure. A profissão de esteticista é uma profissão que dá muita intimidade com as pessoas, e minha mãe é muito entusiasta da biblioteca. A Livro Livre Curió teve um impacto significativo na vida dela porque, quando a gente montou a biblioteca, ela tava passando por uma depressão muito grande por causa da perda da minha avó e mãe dela. Então a biblioteca fez com que ela ganhasse uma nova energia de vida. Foi nessa época também que ela passou a ler a Conceição Evaristo, que é uma escritora brasileira contemporânea incrível.

“Ela [minha mãe] se apaixonou pela Conceição Evaristo porque ela [Conceição] tem uma literatura muito próxima de quem é mulher da periferia. Isso fez com que minha mãe se entusiasmasse de uma maneira — ela é uma multiplicadora de leitoras. A minha mãe incentiva que as clientes dela se transformem em leitoras, passem por esse processo”.

Além disso, a gente também tem as mães das crianças, os pais das crianças, que vão vendo o que tá acontecendo e vão se aproximando lentamente. Mas o trabalho com adulto é muito mais difícil que o trabalho com criança. Tá muito mais sedimentado na vida dessas pessoas as preocupações mais corriqueiras, de trabalhar e conseguir o mínimo pra sustentar a casa deles e delas. O ponto principal das nossas ações é a socialização, porque, através dela, a gente consegue fazer com que as pessoas entendam a importância da leitura. Isso é uma ação de longo prazo, não é uma coisa que é mágica, como se, de repente, chegasse a biblioteca e todo mundo virasse leitor no Curió. Não é assim. Isso é uma coisa que é demorada e é trabalhosa.

Patrícia: No primeiro momento em que a gente se falou, você falou do anexo CasAvoa. Por causa da alta demanda, você acabou tendo que anexá-la. Nisso, a gente vê como o projeto impacta as pessoas da comunidade. Mas, pra você, como é que a biblioteca comunitária tem transformado a realidade do bairro Curió?

Talles: A gente tem alguns dados que são simbólicos e outros que são práticos. Primeiro é a questão de identidade. O Curió, infelizmente, ainda vive dentro do estigma de ter sido o bairro que deu nome a uma chacina, que foi a grande Chacina de Messejana [assassinato de 11 homens, a maioria adolescentes, na madrugada de 12 de novembro de 2015]. Mas que, antes de ter esse nome, foi chamada de Chacina do Curió. O bairro passou a ser conhecido por causa dessa chacina, que ainda está rolando até hoje, com envolvimento da Polícia Militar do Ceará e ainda as pessoas que deveriam ter sido punidas não foram.

“A biblioteca trouxe um outro assunto pra se falar do bairro. Se você fizer uma pesquisa e colocar ‘Curió’, vai aparecer agora a biblioteca, não vai aparecer mais só a chacina. Isso já é uma mudança muito significativa, porque a questão da autoestima pra quem é morador de uma periferia é uma questão muito forte”.

As pessoas não querem ser vinculadas, não querem ser chamadas de “faveladas”, não querem ser chamados de “periféricos”. A gente consegue reverter isso, transformar numa luta, numa identidade, numa afirmação — “sou sim da periferia, sou sim um poeta periférico, periférica” — mas, assim, pro geralzão, pra galera toda, ninguém quer ter essa pecha de “favelado”, “periférico”. A biblioteca, só em mudar isso, já é muita coisa. A gente passou a ter um espaço pra eventos da comunidade, as pessoas podem ir lá, principalmente os jovens, porque isso falta muito. “Ah, eu quero fazer um sarau, eu quero gravar o clipe da minha banda, eu quero gravar o vídeo do meu canal no YouTube, eu quero assistir à aula aqui”. Isso já é uma coisa bem legal, porque a gente só pôde fazer quando conseguimos a CasAvoa.

“Fora isso, a gente também tem algumas coisas práticas: a nossa biblioteca ajuda na questão de renda da comunidade. Por exemplo: ano passado teve a Bolsa Jovem de Fortaleza, […]. Nessa bolsa, a biblioteca conseguiu escrever nove bolsistas. Foram nove jovens da comunidade que, durante um ano e um mês ou dois, receberam uma bolsa, uma grana pra poder fazer coisas interessantes. Além de outras coisas. A gente vai atrás, mostra curso, mostra oportunidade que conseguimos e vamos tocando”.

Pedro: Talles, vamos falar agora sobre o Biblioteca nas Praças, que é uma atividade da Livro Livre contemplada pela Lei Aldir Blanc, cujo propósito é ajudar os trabalhadores e trabalhadoras da cultura nesse contexto de isolamento social. Como a pandemia mudou a dinâmica da biblioteca?

Talles: Cem por cento a dinâmica da biblioteca foi modificada. Com o lockdown, não estamos funcionando. A gente só abriu fisicamente quando a biblioteca da UFC abriu. Esperamos que alguma biblioteca maior desse sinais de segurança e, a partir [do momento em] que a biblioteca da UFC abre, a gente começou a abrir a nossa também.

“Mas não [é] só essa questão, porque a biblioteca, durante principalmente o primeiro período, se transformou provisoriamente em uma base de apoio. A gente mobilizou doação de alimentos, principalmente pras crianças, pros adolescentes e pessoas que tão associadas e trabalhando diretamente lá na comunidade com a biblioteca”.

Nós já tínhamos um site e criamos uma biblioteca digital pra continuar dando opções de informação, de livros e de leitura pras pessoas. Anteriormente, a gente já tinha feito o Biblioteca na Praça. Apesar de ser muito pequena, a circulação das pessoas na comunidade nem sempre é tão grande. Não é todo mundo que vai de uma rua lá do começo do bairro e que frequente a rua onde tá a biblioteca. Então a gente entende que precisa alcançar o máximo possível de pessoas. Quanto mais pessoas do Curió sabem que a biblioteca existe, melhor. Por isso que a gente foi pra praça.

“Outra coisa que a gente fez [devido à pandemia]: as programações que eram físicas, passamos a fazer online — o clube de leitura das crianças nas lives, que aconteceram durante um bom período; agora a minha mãe tá fazendo um clube de leitura das mulheres durante o lockdown, também online. Não tem o mesmo impacto pra comunidade, porque o processo de alfabetização digital — de saber mexer num celular, de ter um celular, de ter internet — é uma coisa que poucas pessoas [têm acesso]”.

Não é uma coisa como se todo mundo tivesse lá no bairro. A gente às vezes naturaliza tanto — por ter um celular, por ter uma cadeira, por ter um computador em casa —, achar que todo mundo tem essa estrutura, mas não, boa parte das pessoas lá do bairro não tem, e aí as ações não ficam tão fortes como são quando a gente tá presencialmente.

Em compensação, todas as ações que a gente passou a construir online ajudam a projetar a biblioteca pra fora da comunidade. Isso é estratégico pra gente conseguir pessoas que apoiem a biblioteca fazerem a biblioteca continuar funcionando, porque também era uma angústia muito grande pra gente quando a pandemia chegou: “Será que eu vou ter que fechar a biblioteca porque eu não vou ter mais dinheiro pra mantê-la?”. Isso foi a minha grande angústia. A gente foi tentando inventar coisas pra aumentar o número de apoiadores no Apoia-se. A gente ainda tá um pouco longe da meta que desejamos, mas já é muito melhor do que era antes da pandemia. Então a gente conseguiu pelo menos isso: trabalhar a imagem da biblioteca pra fora da comunidade.

Gustavo: Bom, Talles, falando sobre a sua literatura, o seu livro Saral#1 inicia com uma provocação: “Vocês querendo ou não, isto é literatura”. Quem são esses que dizem o que é e o que não é literatura?

Talles: [Suspiro e sorriso] Então, eu fiz Letras na UFC até o 6º semestre. Eu sou um aluno jubilado da UFC, e não só isso. Eu sou uma pessoa que, desde quando eu conheci o mundo dos livros, eu comecei a ler crítica e a entender o que era esse universo do livro, da leitura e da literatura. Eu fui crescendo e fui percebendo que existe… [reflete] um muro, onde de lá pra cá você pode participar e daqui pra lá, quando muito, você pode ser público. Eu não queria ser público.

“Eu não queria ser só apenas um leitor — não que isso seja pouco. Ser leitor é incrível e é participativo — a leitura é uma coisa ativa, não é uma coisa passiva — mas é pouco ainda pra construção do que eu queria. Pra que acontecesse isso, eu tinha que, de um certo modo, receber alguma espécie de validação, porque o sistema literário [conceito desenvolvido pelo crítico e sociólogo Antônio Cândido] tem instituições que fazem validação — o que é e o que não é a literatura”.

Algumas delas eu posso citar. Uma delas é a academia, que é essa entidade, são o conjunto das universidades. Outra delas é a mídia; e outra, o poder público. Essas três grandes instituições validam o que é e o que não é literatura. Só que eu tive a grande sorte de nascer em 1989, num período em que as pessoas que vieram antes de mim já estavam lutando pra modificar esse tipo de sistema. Elas conseguiram muita coisa. Não é à toa que hoje temos a maior entidade literária brasileira uma mulher negra da periferia: Conceição Evaristo. Não tem outra pessoa que seja tão grande quanto a Conceição Evaristo — apesar de ela não ter sido aceita na Academia Brasileira de Letras, que é uma instituição validadora. Entendeu?

“Ou seja, esses ‘vocês querendo ou não, isto é literatura’, eu tô falando diretamente pra todas essas instituições e tô falando ainda pras pessoas que estão dentro do que a gente chama de mundo branco, que acham que o que é arte, o que é cultura, o que é literatura vai passar pelo filtro delas”.

Sinceramente, eu tenho que informar que não é. Nunca foi. Vocês tentaram, assim, de um certo modo, fazer com que fosse. Mídia e academia tentaram impor o que é arte, o que é cultura, mas a gente não deixou. Isso é tão bom pra todo mundo, que eu acredito que nunca que a literatura brasileira, a arte brasileira, foi tão mais criativa como é agora, porque ela tá muito mais sujeita a esses atravessamentos dos artistas da periferia, das artistas negras, dos povos que são chamados de indígenas, que são os povos e as comunidades que estavam aqui antes da gente. Isso tem sido muito mais benéfico do que as pessoas acreditam. Então, essa provocação que eu faço no Saral, eu acho que deveria ser tomado como um benefício, porque, se a literatura não é aquilo que essas instituições querem que seja, que bom pra literatura.

Patrícia: Talles, eu queria tocar agora na questão da acessibilidade, porque os teus livros podem ser encontrados gratuitamente na internet, tanto em leitura mesmo como em áudio. Também, a sua poesia é uma fala poética que tem uma simplicidade, mas também carrega complexidade. Eu queria saber se essa preocupação com acessibilidade foi algo que você sempre teve ou se foi algo adquirido com a sua experiência.

Talles: Ah, foi uma coisa que eu tive que aprender, porque, assim, a gente não nasce sabendo e entendendo o que é que tá rolando. Hoje eu ainda preciso aprender muita coisa. Preciso entender ainda como é que funciona essa questão de outras acessibilidades, porque eu tô falando aí de acessibilidade financeira, de ter um livro. A ideia de ter o Saral com o valor de um preço [variado] e de cada pessoa pagar somente aquilo que ela puder pagar foi pra mim uma estratégia de publicidade também. Fazer com que o livro chegasse ao público de uma maneira barata fez as pessoas que eu realmente queria que lessem os meus livros o lerem.

“Eu não acho que eu sou ‘uma pessoa maravilhosa’ porque eu faço isso. Eu fiz isso porque eu aprendi a fazer, e isso me ajuda, mais do que ajuda o restante do povo — eu tô ajudando mais a mim mesmo”.

Mas eu ainda queria que eu pudesse ser acessível de mais formas, e acho que ainda vou aprender, ainda vou entender como é que eu posso fazer isso.

Pedro: Talles, a trilogia Saral tem uma forma singular de realização: além do financiamento coletivo pra custear a tiragem, o preço do livro varia conforme a consciência ou condição da pessoa interessada em adquirir o exemplo. No seu livro você disse que já teve gente que comprou por dez centavos, como já teve gente que comprou por 100 reais. Você poderia nos falar mais sobre essa ideia e como ela surgiu?

Talles: O Saral surgiu de uma maneira interessante, porque eu tava escutando o Diário de um Detento, do Mano Brown — Racionais MC — e tava lá que “estou mais um dia / sob o olhar sanguinário de um vigia”. Aí eu comecei a refletir sobre o Diário de um Detento e eu fui entendendo que a ideia poética desse poema, dessa música, não é muito diferente da ideia poética de uma outra obra da literatura nacional, que se chama Morte e Vida Severina, do João Cabral de Melo Neto: um poeta erudito, um poeta que é aclamado pela universidade. Eu ficava pensando assim: “Por que é que o Mano Brown consegue atingir muito mais pessoas que o João Cabral de Melo Neto no Brasil? O que é que o Mano Brown faz que o João Cabral não soube fazer ou não estava dentro do poder dele de ação?”.

“Fui pensando e entendendo assim: cara, o Mano Brown, primeiro, consegue conversar. Mesmo de uma maneira sofisticada, ele consegue falar sobre o que importa sobre as pessoas; ele consegue construir o cenário; ele consegue falar não só o que as pessoas querem, mas o que as pessoas conseguem compreender, porque as pessoas não são burras, como muita gente acha. “Ai, não vai entender isso aí, não. Muito sofisticado. O povo é burro”. Mentira. Todo mundo tem capacidade de entendimento”.

Às vezes, a linguagem tem umas certas nuances, aí é mais difícil, requer um maior tempo. Depois eu fiquei pensando na questão de distribuição. O Mano Brown é distribuído à revelia do que ele quer ou não, porque muito é pirataria, desde a época da fita. Nisso eu fiquei pensando: se eu quiser realmente fazer uma poesia — porque eu tinha lançado até então dois livros e isso me angustiava — como que eu vou fazer uma literatura que vai falar com pessoas que eu queria falar, conversar, estar perto? Aí eu fiquei viajando nessa do Mano Brown. Eu até escrevi isso um tempo depois. Eu fiquei pensando sobre a questão da distribuição fonográfica do forró cearense. O que o forró cearense fez como modelo de negócio? Eles faziam os discos — que era quase como se fosse um disco pirata — botavam uma capinha de papelão bem simples e distribuíam nos shows gratuitamente. Nisso, de repente, no começo dos anos 2000, todo mundo escutava Aviões do Forró, todo mundo escutava Solteirões do Forró, todo mundo escutava esse forró que era distribuído, porque era fácil acessá-lo. Isso também me acendeu essa luz:

“Eu não vou conseguir ser lido e ser lembrado pelas pessoas enquanto o meu livro não for acessível”.

Foi dentro dessa ideia que eu construí a ideia da distribuição do Saral. Lógico, a indústria do forró tem grana suficiente pra viabilizar isso; o Mano Brown tem os shows, que conseguem ganhar muito mais dinheiro do que se ele fosse vender CD; e eu, que sou poeta e que não faço show? Eu tinha que pensar em algum modo, e aí o modo mais possível era o do financiamento coletivo.

Pedro: Então, na questão do financiamento, você se inspirou ouvindo Racionais. Você também, com a música, se inspira para escrever seus livros?

Talles: Tudo inspira. Eu acho que um poeta, uma poeta, o alimento deles — a nossa matéria — é a vida. Eu não vou inventar um outro universo pra ir atrás de uma inspiração — e acho incrível quem faz isso —, mas eu percebo que, na maioria dos poetas e das poetas, a vida é inspiração total — é eu tá no meio da rua e de repente tô ali de bituca escutando a conversa de alguém. Alguém diz alguma coisa, [e eu penso:] “Nossa, isso é interessante”. Eu memorizo e já vou usar como assunto de um poema. Ou então um acontecimento; uma notícia de um jornal; ou mesmo uma música; um filme; um documentário; uma discussão. Muitos poemas nascem de determinadas discussões — principalmente os poemas políticos. Esse lance da rede social faz com que a gente se exponha muito e às vezes gratuitamente. Às vezes a gente tá com aquela opinião naquele momento e nem queria dizer aquilo daquele modo e acaba criando um monte de inimizade. Eu aprendi que eu podia fazer isso com a poesia: estruturar essa minha opinião através da poesia e torná-lo público seria até mais acertado. Isso também aprendi muito com um grande mestre poeta que é o Reginaldo Figueirêdo. Ele diz que, antes da poesia — ele era do movimento popular de moradia —, ele fazia um discurso e era preso. Depois da poesia, ele fazia um discurso e era aplaudido. Eu escutava isso que o Reginaldo falava e ficava: “Nossa, é isso”.

“A arte tem o poder de embalar determinados discursos e vender eles pro público de uma maneira mais aceitável”.

Patrícia: Você falou do processo de criação poética do Mano Brown. Vamos falar agora do seu. Na sua poesia, a gente nota que o cotidiano, a cidade, vão se fundindo em uma subjetividade — vai formando algo com memórias, com ideias. Existe sempre um tu, um você. Não é um eu lírico que fala sozinho. Explica pra gente como é que esse universo individual e coletivo foi se formando na sua escrita.

Talles: Quando a gente tem 15 anos de idade — eu comecei a escrever mais ou menos nesse período —, a gente começa a escrever a partir das referências. Conheci o Manuel Bandeira, fiquei muito apaixonado por ele, aí eu tentava, de um certo modo, copiar aquele ar, de conseguir falar sobre o cotidiano das coisas. Mas, com o tempo, quando a gente vai amadurecendo, vai escrevendo, vai conhecendo outros poetas, a gente entende que a literatura, por ser uma arte, ela é planejada. A gente planeja o que a gente vai construir. Eu acredito nisso.

“Sinceramente, esse lance de inspiração, de coisas como se a literatura fosse um dom divino, que você recebe a poesia dos céus e você transforma isso num papel, eu acho isso balela”.

Eu acredito que tem algumas pessoas, alguns poetas místicos, que conseguem fazer isso — tipo uma Santa Terezinha de Lisieux, que tem uns poemas místicos, o que pode rolar. Apesar de eu não ser mais católico, eu acho lindíssimo os poemas de Santa Terezinha. Eu acho que rolava uma coisa mística. Mas eu, como artista, eu planejo o que vou fazer.

“Com o tempo, eu fui entendendo que eu precisava estruturar, dentro do poema, determinadas coisas que não estavam em pauta na arte, pelo menos aqui no Ceará. Uma delas era a cidade”.

Eu escutava música e ouvia falar de “Garota de Ipanema”, falar do Rio de Janeiro, quando muito da Bahia. A gente tem o grandiosíssimo [Dorival] Caymmi, que canta “passar uma tarde em Itapuã”. Você escuta aquela música totalmente impressionista…

Patrícia: Jorge Amado também, não é?

Talles: Jorge Amado. Você tenta já querer estar naquele lugar. Aquilo pelo menos eu desconhecia, porque também tem esse lance de a gente desconhecer a literatura cearense — e aqui eu não via isso, uma literatura que falasse de Fortaleza, que falasse dos bairros, das ruas, dos personagens. Então eu decidi fazer isso. Foi uma escolha.

“A outra escolha foi falar sobre a minha experiência como pessoa, porque eu sou um jovem gay, negro, indígena, da periferia, e eu sei que isso é um pacote de coisas que fazem pessoas parecidas comigo não ter tantas oportunidades ou não ter tanta mobilidade social”.

Eu pensei assim: “Eu quero falar da minha experiência de vida pra pessoas parecidas comigo — e pra pessoas não parecida comigo também — pra poder gerar empatia, pra que entendam esse universo, consigam compreender que há outras possibilidades de pensamento”. Isso são escolhas. No campo da estrutura formal do poema, eu sou muito criterioso. Eu gosto de escutar o que eu tô escrevendo. A maioria das pessoas leem os meus poemas assim que eu escrevo. Eles são jogados lá no Facebook (@tallesazigon). Quando eu jogo lá, ali é a primeira versão. Aquele poema vai passar pelo crivo das pessoas. Eu vou entender se elas vão comentar, se elas vão curtir, se elas vão gostar. Depois daquilo, eu vou pegar de novo. Há alguns dias na vida que eu paro e vou lá no Facebook olhar o que eu publiquei. Fico lendo, relendo, vejo o que foi. A partir disso, eu vou construindo e modificando o poema. Costumo escrever e ler em voz alta e às vezes gravar no celular, porque eu acho que isso ajuda na estrutura do poema. Eu vejo que tem uma área da literatura contemporânea que é muitos anos 1980, 1970, que faz uma poesia muito crônica, muito voltada quase pra prosa, onde a musicalidade quase não existe. Eu leio algumas coisas assim, mas eu não gosto tanto.

“Eu gosto que o poema tenha um ritmo, tenha uma musicalidade. Ele não precisa ser rimado pra ter musicalidade”.

Então eu procuro sempre que tenha isso, pra distinguir que aquilo ali é um poema, que aquilo ali foi construído pra isso.

Patrícia: Então você considera a cidade como uma parte essencial da sua escrita?

Talles: Sim, até agora sim. Talvez daqui a um tempo não. Se chegar um momento em que eu achar que já falei o que eu queria falar, o que eu queria refletir, aí eu vou pra outro assunto. Mas a cidade, pra mim, até então, principalmente na trilogia Saral… o Saral pra mim é muito cinematográfico; tem alguns poemas que é como se eu tivesse enxergando Fortaleza de cima, como se fosse uma grande maquete viva. No poema, eu vou comentar o que é que tá acontecendo, como no Sábado, em que eu falo assim: “Alguém quase morre afogado na Sabiaguaba. Jogadores jogam…”. Não vou lembrar exatamente. Falo da pessoa que tá comprando [algo] detrás da Avenida C.

“[…] eu queria também mapear poeticamente essa cidade e tirar também o foco da Praia de Iracema”.

As coisas que a gente tem de arte que falam de Fortaleza, como [cantor e compositor] Ednardo, a [música] Longarinas — “só eu e a ponte velha continuam resistindo” —, que é uma coisa linda, mas é muito só Praia de Iracema, e Fortaleza é gigante. Fortaleza é uma cidade que tá crescendo todos os dias.

Patrícia: Eu e a professora Sílvia [Belmino, professora do curso de Publicidade e Propaganda da UFC], nós estamos estudando o imaginário sobre a cidade de Fortaleza, e, realmente, a gente mapeia canções, e a maioria delas fala da Praia de Iracema. Isso aí que você falou é muito verdade. Infelizmente, a periferia de Fortaleza é pouco retratada. E você, qual a imagem que você tem de Fortaleza? Porque você acabou de falar que queria falar dela poeticamente. Então, que Fortaleza é essa?

Talles: Tem uma imagem — a imagem da minha infância-adolescência — que é a Lagoa da Maraponga.

“Eu acho que a Lagoa da Maraponga é muito Fortaleza”.

Primeiro que Fortaleza é cheia de lagoas. Também, a Lagoa da Maraponga pega muito do poente — a gente, quando passa num horário quase-noite, é muito bonito de ver o pôr do sol na Maraponga. Eu gosto muito dessa imagem. Outra que passei a amar, admirar e a retratar é a da nossa floresta, do Curió, os nossos parques, os nossos bichos, essa coisa das ruas, que eu acho muito interessante. Mas, se eu fosse falar de paisagem, eu diria Lagoa da Maraponga [sorri].

Patrícia: Você acabou de falar da Lagoa da Maraponga, e ela é uma figura que aparece na tua poesia. Então, qual é a relação tua com o bairro?

Talles: “Assim, eu amo a Maraponga porque, primeiro, a Maraponga já tem esse nome, que, se a gente fosse tentar traduzir do tupi, seria mais ou menos como ‘barulho da água’”.

A minha vó foi uma das primeiras moradoras daquele território, já com esse nome. Eu cresci na Maraponga, nasci na Maraponga, e ficava achando interessante porque tinha muito riacho. Hoje tá quase tudo aterrado, mas tinha muito riacho. Tem a lagoa, tem muita árvore no meio da rua. Então era um bairro que era muito interessante pra mim, porque era muito natureza. Eu me sentia muito livre na Maraponga. Eu circulava naquelas ruas tranquilamente, não tinha medo. Essa relação é muito bonita.

“Depois, eu fui percebendo um lado mais místico, que há uma predisposição artística, tem muitos artistas que moram na Maraponga, muitos. Artistas famosos”.

Por exemplo: tem um disco do Ricardo Bezerra que se chama Maraponga; o Leonilson, um artista visual, passava férias na Maraponga; a Paula Yemanjá, atriz, mora na Maraponga; a Flávia Cavalcante; o professor Gilmar de Carvalho mora na Maraponga. Então, tem uma coisa meio artística lá na Maraponga também [sorri].

Patrícia: Um dos nossos entrevistados [da pesquisa Fortaleza em Música, coordenada pela professora Sílvia Belmino], inclusive, foi o Ricardo Bezerra. Assim, ele se disse um pouco decepcionado, porque aquela Maraponga que você citou, que era uma coisa mais natural, mais bucólica, desapareceu. Você também compartilha desse sentimento de desapontamento?

Talles: Sim! Inclusive tem alguns poemas em que eu falo sobre isso. O Ricardo Bezerra viveu o lance ainda mais classe média alta, dono de sítio e tal. Eu, como era pobre, vivi uma coisa que era muito melhor do que esse lance de classe média, que eram as personalidades. Eu conheci quase todas as personalidades, por causa das histórias da minha avó: o Chico Pitoroco, o Bebeágua, o Cancancan, o Gererê, a Quinha. Tudo isso aparece, inclusive, nos meus poemas, eu falo sobre essas personagens da comunidade.

“Infelizmente, a gente sofreu de uma coisa chamada ‘especulação imobiliária’. No fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, de repente, os ricos lembraram que morar na Maraponga era legal”.

O que já era [legal], porque sempre tivemos uma parte da Maraponga que é dominada por sítios e chácaras, mas isso foi sendo esquecido. Uma — meio que — classe média baixa e uma classe média ascendente era que ocupava o bairro. Começo dos anos 2000, a especulação imobiliária entrou de uma maneira forte, que eu lembro até de uma notícia, que é de 2007 ou de 2008, que dizia assim: “Depois da Aldeota e da Água Fria, o metro quadrado mais caro de Fortaleza é na Maraponga”. Hoje eu acho que já não deve ser mais, mas teve uma época em que foi extremamente valorizado. Isso levou com que várias coisas fossem pra lá pra destruir o bairro.

“Inclusive, eu acredito que tem empreendimentos imobiliários que foram construídos ao redor da lagoa que se aproveitaram de uma não regulamentação do Parque Ecológico da Maraponga, que deveria existir atrelado à Lagoa da Maraponga”.

Patrícia: Na sua poesia, o que é que une a Maraponga ao Curió nessa paisagem mais subjetiva.

Talles: Pois é, a minha mãe é que gosta de dizer que ela tem duas raízes: uma é a Maraponga, outra é o Curió [sorri]. Eu talvez, por ser de uma outra geração — e até porque eu sempre fui muito circulante —, talvez eu não tenha tantas raízes. Como a minha mãe costuma dizer e afirma, talvez eu seja uma pessoa que gosta de viver tudo que eu posso viver, independentemente do lugar onde eu estou. O Curió me interessa porque ele é uma experiência coletiva de tudo: as casas foram construídas em mutirão. O Curió também tem uma coisa que é muito forte e que tem na Maraponga, que é a natureza. A gente tem a única floresta de Mata Atlântica de Fortaleza no Curió, que é a ARIE [Área de Relevante Interesse Ecológico] do Curió — que é a Floresta do Curió. Eu adoro, me sinto muito melhor num lugar que tenha árvores, que tenha parque, que tenha floresta, que tenha campo. Eu acho que a gente se sente muito melhor. Hoje eu tava conversando com o meu amigo poeta Reginaldo Figueirêdo e ele disse: “Cara, a gente tá construindo demais. A gente tem que parar de construir, porque a Terra não aguenta mais construção”. Eu tô lendo muito Ailton Krenak também, e acho que já deu, já deu de apartamento, já deu de concreto, já deu de construção.

“A gente tem que deixar que o planeta se regenere, que as árvores cresçam, que o mato cresça, que os bichos tomem os seus espaços de volta — porque do jeito que tá não dá mais certo…”.

Pedro: Então, Talles, sendo a poesia a arte da palavra, como e com que idade você descobriu e se encantou pelo poder da palavra?

Talles: Eu sou provavelmente — eu não posso afirmar cem por cento de certeza, porque uma das coisas das quais nós somos roubados, quando a gente é da periferia, é a nossa história —, mas eu sou muito provavelmente filho e ancestral do cruzamento de povos indígenas com povos africanos:

“o meu avô era um preto retinto; a minha avó contava histórias da sua bisavó, que era uma índia laçada [sequestro de índias de suas aldeias, geralmente por vaqueiros, sendo violentadas sexualmente e obrigadas ao trabalho doméstico]. Então eu tenho no meu DNA duas culturas que são extremamente orais, que são ligadas com a importância da palavra”.

Tanto que até pouco tempo — uns 20, 15 anos atrás, quando eu era um jovenzinho —, eu era muito acostumado a ver um sistema de compra e de venda que era totalmente baseada na confiança.

“Por exemplo, o aluguel: não existia nenhum contrato, a pessoa chegava lá, dizia que queria alugar. ‘Aluga? Como é que é?’, aí tava feito o aluguel, porque a palavra da pessoa era de extrema valia. ‘Eu te dou a minha palavra’ — isso é uma coisa que tá na nossa cultura”.

Eu cresci assim. A minha avó era uma grande contadora de história e ela era uma memória também. Acho que a função dela era de relatar pra todo mundo que quisesse — ela tinha um bar e nesse bar andava muita gente —, mas ela também gostava muito de contar a história das pessoas ali do nosso bairro. Então eu vivia perguntando pra ela: “Vó, e o fulano de tal, e o sicrano de tal? Vó, conta aquela história que aconteceu naquele dia?”. Eu cresci assim, com a minha vó, grande contadora de história. Uma outra coisa que pra mim foi um elemento importante foi a música, porque cresci num bar — praticamente, se tem bar, tem radiola. A gente tinha radiola [sorri], depois foi um som de disco e depois foi um som de CD. A gente passava o dia escutando música, o dia todo. Então eu nasci já dentro de uma família e de uma comunidade que dava importância máxima ao uso da palavra.

Patrícia: Você já falou da Conceição Evaristo, inclusive você e ela serão os curadores da Bienal Internacional do Livro do Ceará, que acontecerá em 2021. Por causa da pandemia, conta como é que esse evento vai ser realizado.

Talles: Eu acredito que o Governo do Estado do Ceará tá realmente extremamente preocupado com o que tem acontecido no contexto sanitário, de saúde. A gente que tá na Bienal nem tenta ficar puxando esse assunto, porque a gente entende que há prioridades.

“A prioridade é que todo mundo esteja vacinado, todo mundo esteja bem para que possamos ter uma boa Bienal. Inclusive, se ela não puder ser totalmente presencial, que ela seja mista: presencial e online”.

Eu acho que é isso que a gente deseja. Até as últimas informações que eu tive, a Bienal ainda se mantém em 2021 — a não ser que realmente precisemos, de uma maneira excepcional, fazer essa transferência. A Bienal, independentemente de qualquer coisa, vai acontecer, porque ela é um dos principais eventos no calendário cultural, artístico e turístico do estado do Ceará.

Patrícia: Inicialmente, o que vocês estavam planejando [para a Bienal]?

Talles: O tema da Bienal ainda não saiu, mas a gente sabe que ela vai passar e perpassar pela questão da diversidade. É uma questão que foi uma grande luta política nossa, das bibliotecas comunitárias, dos movimentos de sarau — a gente conquistou isso. O que fizemos na última Bienal deu uma repercussão muito positiva pro evento e também pras pessoas — rostos e assuntos que nunca tinha entrado de uma maneira tão forte como entraram na Bienal. Então o que eu, Conceição Evaristo e a Coordenadoria de Políticas do Livro, Leitura e Biblioteca do Ceará [Copla/Secult-CE], na figura da Gorete Albuquerque, que é a coordenadora e é uma pessoa extremamente inteligente e capaz; e o Fabiano Piúba, o Secretário da Cultura [do Ceará]; nós estamos pensando e trabalhando numa Bienal que seja pautada nas diversidades. Então, talvez essa próxima Bienal vai continuar seguindo a onda da Bienal passada, mas de uma maneira muito mais drástica, de uma maneira muito mais diversa de verdade.

“Eu acho que as pessoas podem esperar uma Bienal onde elas vão aprender muito, muito mesmo, porque acredito que um dos benefícios da diversidade é a aprendizagem: você tem contato com outros discursos, outras vidas, outras histórias. Acho que vai ser por aí que vão rolar as coisas”.

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