Tecendo o contínuo fio do cuidado

Yuri Gomes
EntreFios - tecendo narrativas
5 min readJul 12, 2023

Maria Helena e a grandeza de se reinventar a cada passo

Por Yuri Gomes

Sentada na cadeira de balanço, de pernas cruzadas, com crochê na mão e TV ligada no canal 2001, onde as novelas bíblicas da Record são veiculadas ao longo do dia inteiro. É assim que Maria Helena Andrade me concede entrevista. Quando mencionei que queria entrevistá-la, a expressão foi de reprovação, mas cedeu e passou o começo da manhã querendo saber mais sobre. Parecia querer se preparar para o momento.

Maria Helena tecendo/ Yuri Gomes

Confesso que eu não estava preparado para esse momento, apesar de conhecê-la desde meu nascimento. Às vezes sinto que não sei nada sobre ela. Muito por causa disso, comecei perguntando quem era Maria Helena, sobre o início de sua história. Ela começa a me contar como se fosse uma biografia, bem detalhadamente.

Quando ela ler e perceber que não usei quase nada, de mais de uma hora de conversa, vai ficar uma fera. É que a história é longa e não vai ser possível contar com o detalhamento que merece. E, além disso, foi durante essa entrevista que percebi que não poderia resumi-la a uma simples narração sobre sua história. Importante frisar que, durante a conversa, ela se perde algumas vezes quanto à sua linha do tempo, volta, recomeça, mas não larga o crochê.

“Titia”, como eu e meus dois irmãos a chamamos, é nossa tia-avó, mas eu particularmente a considero uma mãe. Ela não gosta, costuma dizer que minha mãe é outra. Durante toda nossa infância, adolescência e agora juventude, ela se fez presente. Atravessar a rua e ir para a casa dela, logo após sair da escola, era um dos melhores momentos do meu dia quando criança. Lá eu sabia que receberia muito carinho e amor. Ela brincava, fazia almoço, preparava picolé e, no meio da tarde, deitava na rede para me colocar para dormir, sempre contando uma historinha, às vezes dos diversos livrinhos infantis que tinha. Outras vezes inventava histórias na hora, e essas eram as melhores.

Não constituiu família, por escolha própria. Fala que ter marido e filho nunca foi um objetivo, já que isso não garantiria felicidade e companhia. Um dia eles podem ir embora. Em meio a esse cenário, eu e meus irmãos sempre fomos companhias recorrentes, principalmente quando ela se mudou e passou a morar em cima da casa dos nossos pais. Claro, fomos crescendo e algumas coisas mudaram: as historinhas não eram mais contadas e a relação mais carinhosa que existia entre adulto e criança foi se transformando. Mas o sentimento não, esse permanece o mesmo. Quando a indaguei sobre ela não ser mais tão carinhosa quanto antes, veio a reclamação: diz que só se dá aquilo que recebe, que nós três crescemos e nos distanciamos. Discordo. As formas de afeto apenas mudaram de característica.

E por falar em reclamação, isso é recorrente nela. Apesar de dizer que não reclama muito, apenas dos deslizes que se repetem, ela é, sim, exigente e não tem muita paciência. Fica claro quando divide cozinha, ela acaba fazendo tudo sozinha porque não tem calma para esperar — se não for no ritmo dela, é melhor não tentar cozinhar junto.

Mas esse é o “jeitinho” dela, faz parte da personalidade que constituiu ao longo da vida. Ela diz que não é durona, mas que talvez tenha, sim, herdado da mãe — com quem não tinha boa relação — a característica de não ser tão afetiva, embora seja bastante prestativa. Ainda lhe perguntei sobre não chorar tanto, e ela diz que não adianta chorar pelo que não se pode dar jeito. Não tem por que chorar por alguém doente, ela não vai poder resolver.

Embora conservadora nos costumes, sua resiliência sempre lhe permitiu se reinventar. Estudou bastante, buscou ter uma boa vida e nunca desistiu disso. Aos 47 anos, foi terceira colocada em um concurso para agente penitenciária do Governo do Estado do Ceará, o que lhe garantiu uma estabilidade ao longo dos anos subsequentes. Mas nunca parou por aí, sempre buscou se aperfeiçoar. Sabe “um pouco sobre tudo”, não existe assunto que ela não consiga desenvolver. Fala inglês, francês e o português como poucos, coleciona hobbies — quando cansa de um, arruma outro. Desde a pandemia de covid-19, ela já investiu nos exercícios físicos, voltou a ter aulas de francês e agora passou a pintar. Há dias que passa horas pintando suas flores e se orgulha de mostrá-las — e são realmente lindas.

Falar sobre a “titia” é falar sobre o que sou também. O que me tornei hoje devo muito a ela, que sempre buscou dar o melhor a mim e aos meus irmãos. Sempre cuidou, aconselhou e investiu em nós. Fazia questão de pontuar a importância dos estudos e como isso mudaria nossas vidas. Hoje, apesar da relação não ser a mesma de 15 anos atrás, o sentimento é o mesmo, o de ver nela um porto seguro, um lugar de acolhimento e amor.

Apesar das reclamações de que não conversamos mais tanto com ela, principalmente após a popularização do uso do celular, as características de cuidar não mudaram. Seja no café da manhã, que ela faz questão de preparar; seja na mesadinha que dá todo mês aos três sobrinhos; seja na preocupação quando saem; seja nas diversas outras formas como ela demonstra afeto por nós. O cuidado e o carinho estão lá.

O crochê continua e vai dando vida a um vestido belíssimo. A pose não mudou. A entrevista ia chegando ao fim e eu aproveitei para perguntar se era feliz. Ela conta que tem um conceito diferente de felicidade, que não é possível ser feliz todo dia. A felicidade está em acontecimentos do dia a dia: um familiar que consegue algo, uma amiga que liga de forma inesperada. Mas, ao mesmo tempo, a felicidade se vai rapidamente. Basta uma topada, e a felicidade pode ir toda embora.

Independente, prática, crítica, cheia de hobbies e conceitos e com um coração enorme. Essa é Maria Helena, minha “titia”.

Maria Helena, Levy e Yuri/ Arquivo pessoal

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