“Um homem de vergonha”

Maurício Ruan Izidorio
EntreFios - tecendo narrativas
4 min readJul 14, 2023

Redescobrindo a história de Mauricio Luiz da Silva, um homem simples e com valores autênticos no interior da Paraíba

Por Mauricio Izidorio

Uma das netas mais novas de Mauricio Luiz da Silva observa foto do avô pela primeira vez / Arquivo pessoal

É uma hora da tarde quando saio da rodoviária de Fortaleza, em uma viagem de doze horas, com destino a Patos, na Paraíba. Na verdade, meu destino mesmo não é Patos, e sim São Mamede, uma cidade pequena, próxima à capital do sertão paraibano. Mas como o ônibus não passa por lá, tenho que fazer minha parada na cidade vizinha e seguir mais uns 20 minutos de carro.

Já é de madrugada quando finalmente chego à Rua Mauricio Luiz da Silva, no centro da cidade. Enquanto caminho pela rua e vejo o visual clássico de uma cidade do interior se desdobrar à minha frente, os sentimentos de familiaridade e curiosidade se confundem e tomam conta de mim. Apesar de ter passado quase todos os períodos de férias escolares nesta cidade quando criança, não me lembro tanto quanto gostaria do homem que dá nome à rua onde estou hospedado desta vez.

O que consigo lembrar é o mesmo que me foi repetido diversas vezes quando saí perguntando sobre ele pelas ruas: Mauricio era um homem muito simples. Às vezes acho até um pouco paradoxal dizer que alguém é uma pessoa simples. Mesmo sendo algo vago para se dizer sobre alguém, ainda assim diz muita coisa. Mauricio era simples, conseguia “celebrar o pequeno”. Sua simplicidade não era sinônimo de falta de grandeza, mas sim de uma forma autêntica de viver e se relacionar com o mundo.

Além disso, a simplicidade também se manifestava em suas relações. Ele não buscava complicação ou artifícios para mascarar nada. Segundo alguns de seus filhos, o paraibano até podia parecer “bruto” ou meio “ignorante” pela forma direta e sem rodeios usada para falar e agir, algo que beirava o estoicismo, mas isso não tirava o mérito de um grande coração que se derretia por qualquer coisa e qualquer um.

Grande parte de sua vida foi passada junto à família em um sítio. Consumiam o que produziam e o que sobrava era vendido. “A gente tinha de tudo, nunca faltou nada”, diz uma das filhas, lembrando que, durante as manhãs de sua infância, o pai acordava os filhos, que, já acostumados, pegavam seus canecos e faziam uma fila à frente do curral pra esperar a ordenha das vacas, e bebiam o leite ali mesmo, observando o pai trabalhar. “Como a gente não passava mal, sem ferver o leite, eu não sei”, diz ela, dando risada.

A família tinha uma plantação de algodoeiro, e certa vez, enquanto todos estavam fora de casa ocupados, Vera Lúcia, uma das filhas de Mauricio, entrou com uma lamparina no quarto em que o algodão era guardado e, sem querer, colocou fogo nas fibras. A fumaça já estava alta. Com medo da surra que levaria dos pais, Vera correu e se escondeu num canto atrás da casa. “Pai nunca levantou um dedo pra encostar na gente e não deixava que ninguém fizesse”. Mauricio sabia onde a filha estava, mas só avisou aos outros quando os ânimos acalmaram e tudo foi resolvido na conversa.

A mudança do sítio para a cidade aconteceu algum tempo depois. Os ônibus que buscavam as crianças e as levavam para a escola não passavam mais, e essa foi a deixa para que a família começasse a deixar a vida rural e passasse a morar na cidade. Por ter uma grande admiração pelo estudo, fazia questão que os filhos pudessem ir à escola, talvez porque ele mesmo não tenha tido essa oportunidade.

Com o passar dos anos, ele se queixava do fato de nenhum dos filhos homens ter seguido uma formação superior. Das mulheres, a única era Marta, que se tornou professora cedo e chegou a dar aula aos irmãos. Veriana também acabou se tornando professora, mas o desejo de seguir essa profissão veio depois do falecimento do pai em 2003. Foi a forma que ela encontrou de agradecer e realizar uma vontade que o pai tinha em vida.

Andei pela cidade e entrei em vários comércios, desde o mercado municipal até a padaria do bairro mais distante. Todos lembram de Mauricio com um certo respeito e admiração. Era um “homem de vergonha”, como dizem alguns em referência a seus valores e a seu comportamento. Era uma pessoa que sabia entrar e sair de qualquer lugar, tinha certeza de quem era, sem se sentir superior ou inferior a alguém. Era lembrado por todos por ter um grande caráter.

Quando faleceu aos 67 anos, Mauricio deixou para todos que o conheciam as memórias e a saudade. A herança, dividida e compartilhada pela família, foram os valores, as formas de apreciar a vida pelo simples e a vontade de serem guiados na vida pelo que é “certo”. Para um dos netos mais velho, ele deixou o apelido “gato vermelho” e o próprio nome.

Em 2013, um vereador da cidade, Manuel “Gato”, que o conhecia e o considerava um grande amigo, levou à Câmara Municipal de São Mamede a proposta de materializar a memória desse homem concedendo seu nome a uma rua. A Rua Mauricio Luiz da Silva. A família de Mauricio construiu a primeira casa dessa rua, a casa onde os filhos e netos se reúnem em todas as datas comemorativas. A casa onde hoje escrevo isto.

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