Uma mulher que chora porque sente

Maria Letycia
EntreFios - tecendo narrativas
5 min readNov 1, 2020

De mãos cansadas e olhos sentimentais, Maria Íris Souza conta suas histórias, atravessadas pelo som da máquina de costura

Por Maria Letycia

Maria Íris é costureira / Imagem: Maria Letycia

A conversa que se segue ocorre entre avó e neta que trabalham e vivem juntas. Mas também se dá entre uma mulher de olhos felizes e cansados pelo tanto que já viveu; e outra mulher com os olhos sedentos por vida.

Maria Íris Souza tem voz de mulher empoderada, que bate no peito e exala autossuficiência. Mas a mulher empoderada, na maioria das vezes, é uma mulher cansada, que, apesar de sorrir, respira lentamente.

Maria Íris, de 72 anos, é filha dos fazendeiros Matheus Nogueira de Souza e de Cosma Prudêncio de Souza. Nasceu na fazenda Poço do Barro, em Choró, distrito de Quixadá, no Ceará, pelas mãos de uma parteira.

Íris é aposentada e costureira. Já foi vendedora, taxista, cozinheira e representante comercial. Nunca se deixou abater pela idade — mas também nunca pôde se dar ao luxo. Sofreu dois cânceres, um de mama, outro de tireóide. Também sofreu um acidente de carro que a deixou em coma durante dez dias e um diagnóstico de estado final. Reviveu.

Teve a chance de conhecer os netos, sete ao todo. Hoje trabalha com a neta mais velha e é admirada por mulheres do Brasil todo, que a veem como inspiração e símbolo de afeto e carinho. É amada, mas nem sempre reconhece isso. Íris é uma contadora de histórias e nos permitiu ouvi-las.

Como foi sua infância? Muito boa, no interior, tomando leite, andando de cavalo [ela ri]. Porém, durou pouco. Tive infância até meus 9 anos, pois precisava estudar e fui morar com minha tia na cidade. No interior, não tinha escola, né? Minha tia costurava pra sobreviver, tinha uma vida difícil, mas era muito rigorosa. Ela me tratava como se eu fosse adulta, não me deixava brincar, me botou pra trabalhar na máquina. Roubou minha infância, mas até hoje agradeço, aprendi a trabalhar. Até hoje trabalho, por conta disso. Imagina se eu não tivesse aprendido a costurar? Teria caído no esquecimento da velhice.

Você gostava de costurar? Não, mas era o jeito, ela me obrigava. Eu fazia serviços de acabamento. Passei cinco anos. Voltei pro interior. Via todo mundo brincando de amarelinha; mas eu, nem pensar.

Como foi a volta para o interior? Voltei a morar na fazenda, mas precisava de emprego. Comecei como professora aos 14 anos. Alfabetizava pessoas de todas as idades, mas a prefeitura pagava muito mal. Não conseguia sobreviver e vim embora pra Fortaleza, morei com minha madrinha e trabalhava como costureira de peças íntimas. 4 anos depois minha mãe e 4 irmãos pequenos vieram morar em Fortaleza também e a responsabilidade de mantê-los caiu em cima de mim.

Como era a questão econômica da família? Difícil, pois só eu trabalhava. Mamãe ajudava como doméstica. Eu tinha 19 anos, conheci meu ex-marido, casei e fui embora pro Rio [de Janeiro], onde morei por 2 anos. Voltei pra Fortaleza e, depois de 5 anos, fui embora pra Manaus, já com 2 filhos, um de 2 anos e um de 3 meses.

Como foi a vida em Manaus? Vivi 8 anos lá. Manaus foi ótimo pra mim. Na época, era Zona Franca. Trabalhei muito, virei empresária. Abri uma loja e uma fábrica de calçados. Consegui estabilizar minha vida. Tinha muitos amigos em Manaus. Ganhamos muito dinheiro em Manaus. Mas meu ex-marido começou a beber, virou alcoólatra e perdemos a credibilidade em Manaus. Os homens só destroem o que as mulheres constroem. Viemos embora pra Fortaleza.

Como foi a readaptação em Fortaleza? Dei continuidade à fábrica de sapatos, consegui manter a estabilidade. Tive minha primeira filha em 1981. Meu ex-marido não parou de beber, e a situação “vida pessoal” piorou muito. Ele me traía, me agredia física e verbalmente, na frente dos nossos filhos. Resolvi me separar.

Como foi o processo de separação? Ele não aceitou, arranjou uma carreta e roubou a fábrica de calçados. Levou tudo. Me deixou sem nada, apenas com as crianças. Fiz um B.O. [boletim de ocorrência], mas ele já tinha ido embora pra Manaus de volta com tudo. Foi bem difícil. Durante esse período, ele contraiu dívidas e penhorou a casa em que eu e meus filhos morávamos. Me deixou sem nada, inclusive sem casa. Fiquei desesperada, andava preocupada pelas ruas e fui atropelada.

O que houve no acidente? Fiquei em coma por dez dias, o motorista fugiu. Fui dada como morta. Meus filhos pequenos ficaram sozinhos. Sobrevivi, mas passei dois anos na cadeira de rodas. Perdi tudo. Meus filhos também perderam tudo. Eles estudavam no Farias Brito e foram pra colégio público. Foi uma mudança radical.

Como foram os dois anos na cadeira de rodas? Vendi tudo o que eu tinha pra manter meus filhos. Meu marido nunca deu um real. Nunca tive ajuda de ninguém, só de Deus.

Como é sua relação com Deus? Forte! Tenho muita fé. Acho que é o que me mantém viva até hoje. Depois do acidente, tive dois cânceres. Sou uma sobrevivente. Como eu não iria acreditar em Deus? Ninguém pode ser tão sortuda assim na vida. Eu morri e renasci três vezes já, minha filha.

Como foi a superação do câncer? Primeiro tive na tireoide, operei e fiz o tratamento. Dois anos depois, tive o da mama, já era aposentada, mas foi muito difícil. Nunca passei fome, mas passei muita necessidade. Trabalhava à noite como taxista. Depois do acidente de carro, minha vida ficou bem difícil.

Você é feliz? Sou. Tenho minha família, meus netos, meus filhos, uma casa pra morar, uma cadelinha que me perturba [ela ri]. Sou feliz com o que tenho.

Depois de ter superado todos esses problemas de saúde, como você está atualmente? Tenho doenças crônicas. A quimioterapia, a radioterapia, o tratamento do câncer fizeram com que eu ficasse com problema nos ossos.

Ainda trabalha? Todo dia. Sou uma pessoa que sabe fazer de tudo um pouco. Fazia dindin pra vender, mas parei devido à pandemia [de Covid-19]. Eu continuei costurando.

Como é ser idosa em tempos de pandemia? Solitário. Porém, tenho meus netos que me dão muita assistência, nunca fico sozinha.

Como você se sente em não poder sair de casa e ver diversos jovens em festas, praias…? Fico triste, né? Ninguém pensa no idoso, no grupo de risco. Eles ficam ansiosos e deprimidos e saem. E a gente? Idoso também tem ansiedade, também tem depressão, mas ninguém pensa na gente. Eu não saio de casa há oito meses, minha filha. Eu saía todo dia, pegava ônibus, visitava quem eu gosto, ia comprar meu pão em uma padaria boa. É doloroso.

O que você tem feito durante a quarentena? Fico costurando, fazendo peças pra loja da minha neta. Ela veio morar comigo. A faculdade parou, ela é criativa, né? Abriu um negócio. A gente trabalha juntas. Hoje vendemos para todo o Brasil.

Como é a sua relação com a sua neta [comigo]? A melhor. Ela é como se fosse mais do que uma filha. A gente se entende bem, ela é uma menina muito caseira, me faz companhia.

Pra você, quem é a Íris? A Íris é uma pessoa vivida, experiente, que já passou por muita dificuldade, mas encara como lição de vida. Não desisto. Cada dia espero por dias melhores. Sou uma mulher que chora, pois eu sinto. Pretendo viver muitos anos, apesar das doenças. Quero ver meus netos casando, se formando, aí a missão está cumprida.

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