Uma vida semiárida

Maria Clara Lima Souza
EntreFios - tecendo narrativas
4 min readJul 18, 2022

As memórias do filho, da nora e da neta ajudam a recuperar a história de Alzenir Pereira de Souza

Por Maria Clara Lima Souza

Alzenir Pereira de Souza / Arquivo pessoal

Foi no semiárido sertão nordestino que se iniciou a vida de Alzenir Pereira de Souza, no município de Bodocó, em Pernambuco. Ali ela nasceu e permaneceu nos braços da mãe até os 2 anos de idade, quando esta a deixou sob os cuidados do pai biológico em uma fazenda no interior cearense. Naquele lugar, Alzenir cresceu e se deparou com uma verdade que seria a razão de seu sofrimento durante muito tempo: ela era o que chamavam de filha “bastarda”.

Seu pai era um homem casado que a teve em um caso extraconjugal durante uma viagem. Foi com a verdadeira família dele com quem Lenir, como a apelidaram, teve que morar e partilhar uma relação tão rachada quanto o chão sobre o qual pisava.

A madrasta a criou sob mão de ferro, batendo e maltratando-a sempre que convinha. O pai lhe era indiferente, sequer a havia registrado como filha. Quanto aos irmãos paternos? De alguns recebia amparo, de outros apenas o aparente ódio.

Começou a trabalhar cedo, sem poder aproveitar os prazeres da infância e sem o direito de estudar, diferentemente dos irmãos. Completamente analfabeta e não possuindo auxílios, desenvolveu para si um diferente tipo de inteligência, aprendendo a costurar, bordar e a fazer crochê com acabamentos impecáveis. Desse talento, lhe surgiu o ocasional trabalho de alfaiate, por meio do qual realizava encomendas para o município.

Aos 20 anos, viu em seu casamento com Miguel Anselmo de Souza a libertação daquela vida seca sem afeto e cuidado. Ao lado desse amigo, ela construiu uma família com 15 crianças, sendo o filho mais velho José Miguel de Souza, quem narra boa parte desta história.

A partir daí, Lenir passou a se desdobrar entre seus ofícios da casa, da roça e de alfaiate. O trabalho era muito e não rendia de maneira proporcional, mas a família conseguia se manter bem.

Do pai como única herança, ela recebeu um pequeno terreno para construir sua moradia e, assim, não precisar morar em terras alheias sob o aluguel e julgamento dos outros.

Nesse período, viu sua vida ser tomada duas vezes pela tristeza do luto, ao perder dois de seus filhos, uma ainda criança e o outro já adulto.

Alzenir Pereira de Souza e Miguel Anselmo de Souza / Arquivo pessoal

Ela permaneceu no município de Campos Sales, onde vivera por tantos anos. Chegou a se mudar para Fortaleza duas vezes para tratar da saúde de Miguel e para se aproximar da família. Contudo, sempre regressava ao interior, conforme a doença amenizava e a saudade crescia.

Para facilitar o deslocamento até os médicos, ela ganhou do filho mais velho uma casa mais próxima ao centro de Campos Sales. Em fevereiro de 2010, a tristeza tornou a aparecer com a perda súbita do marido por um infarto.

A partir daí viveu sozinha, contando apenas com as visitas de uma das filhas, ligações de um filho e as raríssimas aparições dos outros. Sua alegria era de vez em quando poder ver os netos, a quem enchia de doces e guloseimas feitas por ela mesma ou compradas em bodegas às escondidas dos pais das crianças.

Já idosa, conquistou outra felicidade: a de poder reencontrar uma das irmãs maternas. Foi nessa idade que seus gostos mais se manifestaram. Sempre bem arrumada, maquiava-se, perfumava-se e pintava os cabelos, mantendo um frescor de juventude.

Adorava festas, lembrava de cor a data dos aniversários dos filhos e netos, sempre no aguardo de comemorá-los. Quem olhava para a Lenir dessa época não imaginava por quanto sofrimento um dia ela havia passado. Ela floria, mesmo após anos de estiagem e terra seca.

Foi somente quase no fim da vida — já debilitada pelas doenças e pela idade — que esse zelo consigo começou a se esvair. Sofreu dois AVCs, ficando hospitalizada no segundo, aos cuidados da filha que antes tanto a visitara.

Seus filhos e netos que moravam distantes, na capital, monitoravam seu estado de saúde por meio de ligações, esperando uma melhora que não viria. Havendo passado um tempo internada, foi sobre a cama do hospital que ela passou os últimos meses de vida, partindo na manhã de 18 de maio de 2018, aos 78 anos de uma vida semiárida.

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