As vivências de Bruno de Castro no universo da Comunicação

Lóren Souza
EntreFios - tecendo narrativas
42 min readFeb 4, 2022

Em conversa com o EntreFios, o jornalista, escritor e cofundador do site Ceará Criolo relata suas experiências pessoais e profissionais, permeadas por questões raciais que o constituem como homem negro

Por Isabella Rifane, Maria Clara Medeiros, Fabiana Melo,
Guilherme Castro, Gabriel Damasceno, Hayra Santos e Lóren Souza

Bruno de Castro, jornalista e escritor/ Arquivo Pessoal
O jornalista e escritor Bruno de Castro / Arquivo Pessoal

Aos 23 anos de idade, o jovem jornalista Bruno de Castro ainda não se sabia negro. Escalado diariamente pelo jornal O Povo para cobrir ocorrências policiais, passou cerca de cinco anos se deparando com corpos pretos baleados e estendidos ao chão, sem, contudo, enxergar naqueles sujeitos as semelhanças com seu próprio corpo.

“Hoje em dia, eu já tenho consciência da importância de ocupar os lugares que eu ocupo, de sustentar a bandeira que eu sustento. Sem ter essa consciência, muita coisa tem seu lado bom e ruim. O bom é que eu não me expus a tantas violências afetivas”, reflete Bruno, que afirma ter se entendido como homem negro apenas aos 32 anos de idade, após uma formação sobre comunicação e antiracimo.

Em entrevista ao site EntreFios em 21 de janeiro, Bruno, um dos fundadores do portal Ceará Criolo, conta sua trajetória na Comunicação, desde a definição profissional até suas primeiras experiências no mercado de trabalho, no jornalismo impresso. Ele revive momentos que marcaram sua vida pessoal e profissional e relata as diferentes perspectivas antes e depois de se entender na condição de homem negro.

Sua tomada de consciência racial resultou na criação do Ceará Criolo, um veículo alternativo de comunicação lançado em outubro de 2018 e voltado a pautas da comunidade negra. Sendo uma mídia independente, os problemas de financiamento e de falta de colaboradores são apontados por Bruno como desafios. Ele reforça, ainda, a importância e a necessidade de se manter a coerência quando se trata de parceiros e anunciantes.

Durante a conversa, o jornalista refletiu, também, sobre a precarização da profissão de jornalista, com a onda crescente de intolerância que provoca diversos tipos de agressões, além da desinformação que permeia a sociedade.

Bruno de Castro já passou pelas redações dos jornais O Estado e O Povo, ambos de Fortaleza. Atualmente, além de atuar no Ceará Criolo, é assessor de comunicação na Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará. Em 2020, seu livro E, no Princípio, Ela Veio: Crônicas de memória e amor foi finalista no Prêmio Jabuti.

Confira a entrevista na íntegra e a transcrição a seguir.

Isabela Rifane: Analisando sua trajetória, conseguimos ver que você tem construído uma carreira bem competente. Prova disso são suas vitórias nos prêmios Gandhi em 2010, na categoria Jornalismo Impresso; e no MPCE [Ministério Público do Ceará] em 2019, na categoria Webjornalismo. Mas, antes de tudo isso, você passou por um período de decidir se entraria nesse mundo da comunicação. Conta o que te impulsionou a entrar nesse mundo.

Bruno de Castro: Para ser bem sincero, quem decidiu foi minha mãe. Eu sempre fui uma figura muito expressiva, sempre gostei muito de falar e me comunicar, mas eu não sabia o que queria. Existiam muitas forças me influenciando: meu pai queria que eu fosse médico; um tio queria que eu fosse advogado; outro tio, que eu fosse contador. A comunicação nunca se colocou como uma opção, nem em casa, nem era algo que passava pela minha cabeça. A primeira vez em que surgiu essa vaga ideia de ser comunicólogo foi em um teste vocacional no terceiro ano. Ali apareceu essa ideia, e eu fui descartando as outras. Para medicina, zero talento, porque não consigo ver sangue, não consigo ver pessoas passando mal. Fiquei entre a comunicação e a advocacia. Deixei a contabilidade de lado porque sou uma pessoa que tem muito problema com números. Sou de Humanas mesmo. Inclusive, era um problema na redação [como é conhecido o ambiente de trabalho do jornal] quando tinha que fazer uma matéria com tabela, com gráficos.

Fiquei entre o Direito e a Comunicação. Eu sempre tive uma relação muito estreita com a minha mãe, a gente sempre foi muito próximo, ela sempre foi minha parceira, como é até hoje. Ela me sentenciou, ela disse: “Você não vai ser advogado, não aceito que você seja advogado. Vá ser jornalista, porque advogado mente”. Aquela ideia… Claro que não existe isso. No imaginário que ela criou, em torno da realidade que ela tinha, das informações que ela tinha, a respeito das profissões, o Jornalismo era uma profissão envolta em glamour, em verdade, e busca por justiça social, o que, de fato, é o que a gente persegue quando a gente entra em uma redação ou quando a gente se forma comunicólogo. Na época, eu não tinha uma visão mais sedimentada do que eram as profissões, então a palavra da minha mãe acabou sendo determinante: “Você vai ser porque eu quero que você trabalhe em prol da verdade, da melhoria da vida das pessoas”. Foi o primeiro passo para eu decidir. Depois disso, obviamente, sentei, fui ler e saber o que era a profissão, quantos anos de faculdade eu ia fazer. Se só tinha na UFC ou em outras instituições, o modo de ingresso, que é completamente diferente do que é hoje — eu fiz o vestibular tradicional, aquele de duas fases, com disciplinas gerais e específicas. Vi que, de fato, era uma profissão que dialogava e que eu poderia tentar porque era um pouco do que eu já tinha em casa. Era estimulado em casa a ler muito, me comuniquei muito cedo, sempre fui muito expansivo e, então, digo: “Bom, vamos ver se, de fato, esse é o caminho?”. E te digo, com toda certeza, que, se você me perguntasse “o que faria se não fizesse Jornalismo?”, olha… Eu seria um sujeito muito infeliz, porque eu sou completamente apaixonado pelo que eu faço.

“Hoje em dia, eu já tenho consciência da importância de ocupar os lugares que eu ocupo, sustentar a bandeira que eu sustento.”

Guilherme Castro: Você atuou em vários veículos cearenses de comunicação, incluindo alguns mais tradicionais, como O Povo. Como foi sua experiência nos jornais tradicionais e como você lidou com a rotina mais agitada desses veículos?

Bruno de Castro: “Mais agitada” é uma bondade sua. É bem animada a redação! Eu fui repórter do jornal O Povo (de Fortaleza) durante quase cinco anos, mas, antes disso, eu já vinha de outras experiências. Fui repórter do jornal O Estado (de Fortaleza) também, [onde] passei dois anos — foi minha primeira experiência no jornal impresso e na iniciativa privada. Cobri Política durante dois anos e fui para O Povo ser repórter de Cidades — na época, a editoria se chamava Cotidiano. Isso por si só já foi uma mudança muito brusca, porque o texto é diferente, as abordagens são diferentes, os personagens são diferentes, tudo é muito diferente. Quando eu fiz essa escolha, aceitei esse desafio de ir para O Povo, uma empresa muito maior, com muito mais visibilidade, que foi uma coisa que me assustou muito no começo. Eu lembro que eu ouvi de um colega de profissão o seguinte: “Bruno, tu vai mesmo sair da nata do Jornalismo, que é cobrir Política?”. Até hoje existe isso de que, se você cobrir uma editoria especializada como Política, é um suprassumo da cobertura jornalística. Não à toa, o caderno de Política do O Povo é a menina dos olhos do grupo até hoje, especialmente em ano de eleição, mas não só. Meu amigo falou isso “de sair da nata, que é a cobertura de Política, para ir para o lixo, que é as Cidades”, ou seja, cobrir pessoas que estão em situação de vulnerabilidade, segurança pública, andar em favela e nos bairros mais pobres, ir para o grosso mesmo do Jornalismo. Primeiro, eu fiquei muito assustado com essa fala, porque é uma fala muito violenta. Segundo, eu fiquei muito curioso de saber se era isso mesmo. Eu não enxergava a cobertura de Política como a nata do Jornalismo, francamente, como ainda não enxergo até hoje. Principalmente o modelo de cobertura que se instituiu e que vem sendo praticado nos últimos anos, considero extremamente problemático. Mas eu fiquei naquela de que precisava tentar, precisava experimentar. Nunca havia coberto Cidades, não sabia como era a cobertura de Cidades e fui para o jornal O Povo nessa condição de aprender mesmo. Eu lembro que, quando eu conversei com a Tânia Alves, que era a editora-executiva na época [do caderno de Cotidiano do jornal O Povo], eu disse: “Eu estou vindo de peito aberto mesmo. Eu tenho uma experiência já com impresso, mas eu nunca passei por Cidades; então, você vai precisar ter um pouco de paciência comigo para me ensinar o que é que eu preciso fazer em algumas situações, porque eu não vou saber. Admito isso com toda a fragilidade do mundo porque é o que eu posso oferecer a você, uma pessoa com boa vontade para trabalhar.”

Eu tinha uma resistência pessoal, como tenho até hoje; não mudei ao cobrir Segurança Pública, Polícia, evidentemente falando. Existe uma diferença entre você cobrir Segurança e você cobrir Polícia, são duas coisas completamente distintas. O jornal O Povo sempre se vangloriou de cobrir Segurança, muito embora o perfil fosse muito mais de Polícia. Segurança é uma área mais ampla, na qual a gente discute questões sociais, elementos que são intersetoriais. Polícia, eu estou falando estritamente, da ocorrência policial, da morte, quem matou quem, qual foi o crime, qual foi a arma utilizada, quem era o sujeito envolvido. Se vendia muito a ideia de que O Povo cobria Segurança e que o Diário do Nordeste cobria Polícia. Mas, na verdade, para mim, a cobertura era a mesma, com algumas nuances, porque cada jornal tem sua linha editorial. A diferença maior que eu encontrava era que o Diário do Nordeste tinha uma editoria de Polícia escancarada, tinha lá no alto da página, e o jornal O Povo, não, a cobertura de Polícia do O Povo estava dentro de Cotidiano. Eu deixei isso muito evidente para ela [Tânia Alves] na minha entrevista, no primeiro contato que tivemos e nas reviravoltas da vida, ou nas intencionalidades da vida — porque eu nunca vou saber se isso foi uma conjuntura da empresa ou se foi uma estratégia da Tânia para me colocar nesse lugar — durante os quase cinco anos que eu passei no O Povo eu cobri, praticamente, só Segurança Pública, só Polícia. Foi um desafio muito grande para mim, imagine o que é um repórter negro, gay e morador de periferia, cobrindo Segurança Pública, cobrindo Polícia. Estou colocando essas duas questões porque, em alguns momentos, a gente conseguia fazer discussões que estavam mais na esfera da Segurança do que só na Policia. A gente conseguiu fazer esse diálogo, uma das coisas das quais eu mais me orgulho, porque era uma conjuntura muito difícil, inclusive, uma conjuntura política, à época, muito difícil. O governo Cid [Gomes, governador do Ceará de 2007 a 2014], toda aquele investimento em segurança, em viatura, em armamento, em policial na rua, a taxa de criminalidade aumentando exponencialmente, e os investimentos do governo não davam resultado. Então, a nossa cobertura era muito intensa. A gente tinha uma cobertura factual muito forte do dia a dia, do hard news [referência aos fatos de maior impacto, noticiados o mais rapidamente possível], mas os investimentos que o jornal fazia era muito forte, e eu fazia, principalmente, essas matérias de investimento. Passava a semana apurando para sair na semana seguinte com esse investimento, que, geralmente, era uma série de duas ou três reportagens. Foi um período muito desafiador, [porque] saí de uma empresa pequena, que era o jornal Estado, que não tinha muita visibilidade, mas que foi muito importante para que eu pudesse entender minimamente a logística de uma redação, qual era meu perfil de escrita, quando eu poderia transitar para um jornalismo mais literário e quando que eu precisaria ser um repórter de texto mais relatorial. Foi fundamental essa experiência, mas eu saí de uma pequena para uma empresa imensa, o maior jornal do estado, com um peso político muito forte, onde tudo que a gente escrevia tinha uma visibilidade muito grande e não existia nada do que existia hoje — Facebook, Instagram, Twitter e essa “cultura do cancelamento”. A gente recebia o feedback dos leitores por ligação, por e-mail, o leitor escrevia todo dia dizendo: “Sua matéria não tá boa”; “Você errou nisso”; “Você acertou naquilo”; “Seu texto está muito ruim”; ou então a pessoa ligava agradecendo pela cobertura. Era uma outra relação que tínhamos com o nosso público, o leitor, mas essa mudança de um jornal pequeno para um jornal grande, de uma editoria especializada para uma editoria mais generalista me permitiu ter uma visão mais holística do que era a cobertura, do que era ser repórter, do que era estar como editor, porque, em alguns momentos, eu fiquei como editor interino, então, me permitiu transitar mais pelas possibilidades da redação.

Eu era um repórter jovem, entrei no O Povo, eu acho, com 24 ou 23 anos. Eu era muito jovem, muito inexperiente, não tinha a consciência racial que eu tenho hoje, não me enxergava naquela época como uma pessoa negra. Hoje em dia, eu já tenho consciência da importância de ocupar os lugares que eu ocupo, sustentar a bandeira que eu sustento. Sem ter essa consciência, muita coisa tem seu lado bom e ruim. O bom é que eu não me expus a tantas violências afetivas. Como eu disse, eu cobri a rotina policial durante quase todo o meu período no jornal O Povo. E, muitas vezes, na ocorrência policial que eu estava cobrindo, quem estava morto era alguém parecido comigo: negro, jovem e de periferia, com uma bala cravada na cabeça. E eu estava ali, naquela ocorrência, tendo que narrar o que aconteceu ali, os porquês daquilo, se é que existe algum porquê para justificar o assassinato de alguém. Como eu não tinha a consciência racial que eu tenho hoje, aquilo não me violentava como me violentava [atualmente]. Se eu tivesse que cobrir hoje, eu enxergaria de outra forma, abordaria de outra forma, faria tudo de outra forma, muito embora, na época, sem essa consciência racial, eu tinha a consciência, como todos devemos ter, de respeito às vítimas, de história daquelas pessoas, dos familiares. Hoje, eu entendo que a gente não tem como discutir qualquer assunto — inclusive Segurança Pública e Polícia — se desvinculando da questão racial. Meu olhar naquela época era mais ingênuo por falta de informação, que hoje eu tenho. Então, isso me blindou dessas dores que eu certamente sentiria mais do que eu senti, porque, obviamente, você chegar a uma ocorrência de uma bala na cabeça já é uma violência. Você já vai dormir pensando. Cansei de ter pesadelo de madrugada. Já voltei para casa chorando de pauta porque a história que a pessoa me contou foi extremamente triste, e eu ficava pensando: “Por que eu tenho que transcrever isso? Por que essa história caiu no meu colo? Como eu vou conseguir narrar a dor dessa mulher que perdeu uma filha?”. Foi muito desafiador, mas, também, foi muito edificante porque esse “lixo” do jornalismo — que eu ouvi, que classificaram para mim lá no começo — foi essa experiência, que a Tânia me proporcionou ao me colocar como repórter de Segurança, que me consolidou como repórter, de entender as várias possibilidades que eu tinha para construir as histórias que eu tinha que construir. Então foi uma experiência muito rica, o que não significa que não foi desafiadora.

Olhando para trás, hoje em dia, oito anos depois de ter saído do jornal O Povo, minha última experiência no impresso… Tem hora que dá uma travada de pensar: “Se essa experiência acontecesse agora, eu não sei se eu conseguiria”. Se aquela pauta caísse no meu colo agora, mesmo eu sendo um Bruno mais maduro, enxergando o mundo por uma ótica diferente daquela que eu enxergava antigamente, eu não sei se eu conseguiria. Ser um repórter negro em uma redação majoritariamanete branca, masculina, em uma mídia descompromissada com a questão racial é muito violento. Primeiro porque você olha para o lado e não enxergava uma pessoa parecida com você. Quem está do seu lado é um homem branco, heterossexual, que mora no [bairro] Parque do Cocó, enquanto eu estou aqui no miolo do [bairro] Henrique Jorge, e a rua aqui do lado da minha é uma comunidade pobre que não tem nem saneamento básico. Já é um choque cultural que você leva e de representatividade. Certamente, eu teria angústias, tive angústias de querer olhar para o lado e conversar com alguém, mas não tinha, porque todas as pessoas que estavam ao meu redor eram diferentes de mim. É angustiante, é muito violento. E o ambiente de redação não é só produção. A gente constrói vínculos ali, a gente estreita laços com as pessoas que, possivelmente, a gente vai levar para o resto da vida, como eu tenho amigos do jornal O Povo — não estão mais lá — , mas que eram da minha época. Nós dividimos bancada, uma série de angústias coletivas: medo de ser demitido em uma demissão coletiva, medo de levar uma bordoada de uma fonte, medo de ter a atenção chamada pela editora por ter cometido um erro. A gente constrói vínculos, eles vão para a vida, mas, durante o dia a dia, não é só sentar e escrever, vai ter hora em que você vai baixar a cabeça e você vai desabar porque sua pauta é mais pesada do que você aguenta e você vai precisar de ajuda. E, se você tiver uma pessoa do seu lado parecida com você, que é negro igual a você, LGBT igual a você ou periférico igual a você, é mais fácil de você caminhar. Eu hoje tenho essa consciência. Se eu tivesse essa consciência anos atrás, minha experiência teria sido completamente diferente. Mas foi uma experiência para eu enxergar o mercado de trabalho, eu me descobrir, me enxergar como comunicólogo, como jornalista, entender que eu sou um bom repórter — que isso é outra coisa que é muito difícil de compreender, [porque] a gente se sabota muito. Então foi muito bom para eu sedimentar muitas coisas que ficavam pairando na minha cabeça e que hoje em dia elas estão minimamente pacificadas.

“O jornalismo, em alguns momentos, é muito cruel com a gente porque ele não respeita a nossa dor. A gente parte do pressuposto de que o jornalista não tem sentimentos, que ele tem que ser imparcial, essa lorota que a gente escuta a vida toda e que, na prática, isso não existe em nenhuma dimensão.”

Isabela Rifane: Pelo seu relato, a gente conseguiu perceber que sua experiência foi muito intensa e desafiadora. Queria saber se tem alguma história que te marcou, não só como profissional, mas como pessoa também.

Bruno de Castro: Eu lembro de uma pauta que eu fui cobrir na periferia de um menininho que tinha 5 anos, se eu não me engano, e ele caiu em um buraco de obra da prefeitura. A obra não estava devidamente isolada, nem sinalizada, e a criança, brincando com outros amigos, caiu nesse buraco, que estava cheio de vigas. O menino morreu perfurado por essas vigas. Eu fui conversar com vizinhos e familiares e eu lembro que, quando eu cheguei à casa dele, o pai dele estava sentado na porta da casa, no chão. A porta era branca, era uma casa de muro verde, o chão de cimento batido, a porta aberta, e esse homem sentado no chão com a camisa aberta até metade do peito, desesperado porque tinha perdido o filho. O jornalismo, em alguns momentos, é muito cruel com a gente, porque ele não respeita a nossa dor. A gente parte do pressuposto de que o jornalista não tem sentimentos, que ele tem que ser imparcial, essa lorota que a gente escuta a vida toda e que, na prática, isso não existe em nenhuma dimensão. Quando você chega a uma situação dessa, você faz o quê? O que você pergunta para um pai desse? “Como o seu filho morreu?”. Isso eu já sei. “Por que o seu filho estava fora de casa?”; “O que o seu filho estava fazendo fora de casa?”; “Por que ele não estava no colégio?”; “Não tinha ninguém olhando essa criança?”. Qual é a pergunta que você faz para um ser humano desse? É o tipo de cobertura que é muito violenta: para a família, que vai ter que revisitar uma dor para te falar o que está sentindo; mas para nós também. Essa foi uma das pautas em que eu voltei aos prantos para casa, tive pesadelos de madrugada com esse homem dizendo: “Meu filho morreu”; “O ferro atravessou o coração do meu filho”. Isso é uma coisa muito violenta de escutar de um pai, e você tem que continuar porque você não tem o direito de parar, você tem que ser um trator e passar por cima dos sentimentos das pessoas. A redação demanda isso, você tem que ter as respostas e, na época, as redes sociais estavam começando a ganhar volume; então, terminou de entrevistar, já tinha que ligar para a redação para falar o que o pai da família tinha dito. Era um moedor mesmo. Eu me sentia, muitas vezes, como se eu estivesse em um moedor de carne.

Teve uma outra muito similar também: um menino que estava voltando com o pai de um serviço de moto. Eles foram abordados por uma viatura da polícia, e o pai não parou. O policial atirou na moto e acertou na cabeça da criança. Eu não cobri a ocorrência em si. Esse caso é ainda mais emblemático para mim, porque eu cobri o “pós”, eu fui para o enterro. Eu lembro que eu saí da redação com uma orientação muito precisa de ter uma declaração da mãe, porque era só o pai quem falava — primeiro porque ele estava na ocorrência, a criança morreu quando estava com o pai; mas também porque ele era o único com condições emocionais de falar alguma coisa. A mãe estava em um estado de choque tão absurdo que ela não conseguia, ela não formulava nada, ela ficava paralisada. E eu saí da redação com essa missão. De manhã, a repórter que tinha sido escalada, também, foi orientada a pegar uma fala da mãe, e não conseguiu. Nenhum veículo de comunicação tinha conseguido, e eu fui pautado para conseguir essa declaração. Eu lembro que, quando a editora me chamou para me pautar, ela deu essa orientação, e eu disse: “Gente, eu não vou fazer isso. Me desculpe, mas existem determinadas pautas em que a gente só observa. Eu não vou botar essa mãe contra a parede para perguntar o que ela está sentido, o que ela tem a dizer. Se, durante a cerimônia, ela, por conta dela, falar, eu pego a fala sem o menor problema, mas eu não vou estimular essa fala porque é desrespeitoso com a dor dela. E eu, enquanto repórter, não vou me prestar a esse papel”. Foi uma matéria de observação mesmo. Fui para o enterro, acompanhei tudo, foi um horror. A mãe não falou, passou a cerimônia calada, quem falou foi o pai e um tio, se não me engano. Eu não tinha coragem de chegar perto dessa mulher. Alguns repórteres tentaram e alguns familiares falaram que não dava certo e pediram respeito. Nessas horas, a população tem um ranço muito grande de nós, chama a gente de “urubu”, dizem que estamos nos aproveitando da desgraça dos outros, que não existe nenhum tipo de respeito. Em muitas medidas, isso é verdade, esse jornalismo policialesco de televisão ajudou muito a criar esse sentimento de ojeriza à gente. É um tipo de jornalismo que eu, inclusive, não consumo, não gosto e critico.

Essas duas experiências foram muito violentas, e eu vou citar uma terceira. Teve o caso de um rapaz chamado Kelbson. Desse eu me lembro bem porque tem um componente de classe muito forte. Ele foi vítima de uma saidinha bancária na [avenida] 13 de Maio, morreu e eu fui pautado para cobrir essa história. Fizemos a cobertura, e O Povo deu uma manchete muito emotiva. Era a capa do jornal, uma foto do Kelbson no centro e, embaixo, os dizeres: “Vida interrompida.”. O ponto final era vermelho, como se fosse uma gota de sangue — as estratégias semióticas que se utilizam para causar gatilhos no leitor. Uma semana depois, eu recebi a informação da cobertura de uma chacina no Serviluz. Fui fazer a matéria, achei que ia ter uma repercussão, mas, no dia seguinte, minha matéria foi uma secundária, de canto de página. Eu abri o jornal pensando: “Cadê a matéria enorme que eu deixei ontem? O que aconteceu?”. Eu olhei o desenho da página e não mudou nada, realmente, era aquilo mesmo e eu fui conversar com meu editor. Perguntei o que aconteceu com a minha matéria que tinha se transformado naquela “tripa”, se teve algum erro de apuração, se estava mal escrito. Eu sempre busquei muitos feedbacks dos meus editores porque eu acho que é um processo de construção, precisamos ouvir o que os nossos colegas têm a dizer para a gente aperfeiçoar o que estamos produzindo. Nenhum texto é perfeito, pode ser o jornalista mais experiente, sempre vai ter alguma coisa para mudar, para cortar, para ser substituída, para derrubar. Sempre existe. Meu editor falou pra mim: “Bruno, eu estou extremamente chateado com essa situação. Inclusive, eu levei essa reclamação para a chefia, para os outros editores, para a pessoa que fez a capa, porque eu também achava que deveria ter sido a capa. E o que eu ouvi foi: ‘O Kelbson é o nosso público-alvo; esses meninos do Serviluz, que foram mortos, eles não são’”. Isso diz muito. Ao fazer isso, a gente diz que uma vida importa mais que a outra, que uma pessoa das classes A e B merece uma manchete de jornal, com um dizer emotivo, com uma gota que dá a entender que é sangue. Mas três meninos pobres que moram em uma área extremamente estigmatizada da cidade, que é o Serviluz, que foram abandonados pelo Estado, que não têm acesso ao básico, que não sabem o que é uma universidade, que não sabem o que é a certeza de ter comida dentro de casa, não merecem estar na manchete. Eles merecem uma secundária ou uma tripinha. Essa foi a minha primeira experiência explicitamente violenta com o jornalismo, ouvindo do meu editor que aqueles meninos não eram o público-alvo do jornal, então eles não “mereciam” — meu editor não usou esse termo, sou eu que estou utilizando — estar na manchete do jornal, enquanto que uma semana antes tinha um caso com uma pessoa só. Nem o fato de terem sido três suprimiu o fato de ter sido um.

São três experiências que me marcaram muito a cobertura de Polícia, de Segurança Pública — como queiram chamar, mas eu insisto em chamar de “Polícia”. É uma cobertura que violenta muito a gente. A gente é confrontado o tempo todo com todas as certezas que a gente tem, porque a gente chega à redação achando que a gente sabe um monte de coisa e, quando você, se depara com essas histórias, você vê que suas certezas caem todinhas, se sustentam em absolutamente nada. Você volta para casa, chora, se deita em posição fetal, tem pesadelo, fica com a fala do personagem voltando à sua cabeça, reformula um monte de coisa dentro de ti. Na próxima pauta, já faz um outro tipo de abordagem ou você propõe para sua chefia que seja feita um outro tipo de cobertura. Às vezes você vai conseguir mudar; às vezes, não. É uma disputa. A redação do jornal impresso é uma disputa de narrativas, cada repórter vai para a rua, volta para a redação com uma narrativa e aquelas narrativas vão se digladiar durante o dia para ver qual vai ser a manchete que vai vender jornal. Se teu material dialoga com seu público, possivelmente, você vai estar na manchete de jornal; se não, vai ser só um canto de página.

Guilherme Castro: Em todas as áreas da nossa sociedade, a questão racial se faz muito presente e ainda há quem diga que não existe racismo no Brasil. Mas nós sabemos que existe e é uma problemática que existe, também, no universo da comunicação. Em relação à sua experiência como jornalista negro, quais foram as maiores dificuldades que você encontrou para alcançar seus objetivos dentro da profissão? Você já se deparou com alguma forma de preconceito?

Bruno de Castro: Primeiro que eu não alcancei ainda meus objetivos, certo? Ainda estou perseguindo-os. Assim, toda pessoa negra tem algum, ou alguns ou vários episódios de racismo para relatar. Não existem pessoas negras que não sofrem racismo, a não ser que elas não se enxerguem como pessoas negras. Eu demorei a me enxergar como um sujeito negro. Como eu disse para vocês, na época do jornal O Povo, eu não tinha a consciência racial que eu tenho hoje, eu não usava cabelo afro, não usava com temática afro, eu não debatia esse assunto, eu não lia autores negros, eu não me enxergava como uma pessoas capaz de produzir conhecimento e de ajudar outras pessoas a pensarem criticamente. Eu não tinha a consciência que eu tenho hoje porque o mundo não é moldado por pessoas negras. Em toda referência que temos no mundo, nós somos condicionados a enxergar a pessoa branca como o ideal, então eu demorei a me entender. Eu me entendi como um sujeito negro aos 32 anos de idade, durante uma formação sobre comunicação e antiracimo, que foi dela que nasceu o Ceara Criolo, portal do qual eu faço parte, com muito orgulho, desde 23 de outubro de 2018, quando colocamos o portal no ar e mantemos até hoje.

Até meus 32 anos, eu vivi muita coisa que eu não enxerguei como racismo. Eu botava na conta da brincadeira, da piada, do humor, de qualquer coisa, menos na conta do racismo, e isso é muito perigoso. Se qualquer coisa que você fala fere a dignidade da pessoa em qualquer esfera, racial, sexual, classe, afetiva, o que seja, não é piada, não é humor, não tem graça, não é para ser feito. Hoje, eu enxergo como uma série de violências que sofri dentro da redação. De chefe chegar em mim e dizer: “Eu não vou te dar isso aqui, não, porque eu sei que tu não vai fazer, tu não tem capacidade de fazer”. E dava para outra pessoa, com muito menos experiência que eu em cobertura, mas que tinha uma aparência diferente da minha. Na época, eu não enxergava isso como racismo ou homofobia, porque, também, tem o componente homofóbico, hoje eu enxergo. Antes, como eu não enxergava, passava, hoje, não passa mais. Não permito, não admito ser deixado de lado de qualquer projeto ou iniciativa com esse tipo de argumento. “Baseado em que você está dizendo que eu não consigo?”. Eu tenho uma graduação, três especializações, estou fazendo um mestrado, sou finalista do principal prêmio de literatura do meu país, tenho não sei quantos prêmios de jornalismo no meu currículo… Por que eu não sou capaz de fazer? Qual a sua justificativa para isso? Tecnicamente, não tem justificativa para você me dizer isso. Eu vou partir do zero como qualquer pessoa partiria; então, eu vou reivindicar meu lugar, eu vou fazer, sim. Por que não? Hoje, eu não aceito mais, mas já passei por muitas situações de matéria minha sair, ter uma repercussão que a chefia não esperava e dizer: “Tinha que ser aquele neguim”. Não foi “neguim” em um tom interessante, como nunca é. Eu não sou neguim, meu nome é Bruno, não quero ninguém me chamando pela minha etnia, pela minha raça, eu quero que me chamem pelo meu nome. Você não chama um repórter branco, que fez uma matéria que não deu a repercussão que você queria, você não chama ele de branquim. Então por que você vai me chamar de neguim? Não admito, sou um profissional, como qualquer colega de redação, e exijo ser tratado com respeito, como qualquer colega de redação. Mas as dinâmicas de redação não se dão com tanta simplicidade, existem componentes no dia a dia que vão além do que a gente pode manejar. Existem componentes políticos, afetivos, existem várias questões, forças externas que também influenciam. Tudo isso — para um repórter negro em um ambiente como esse — é muito violento porque o material que o repórter negro faz passa pelo escrutínio da própria categoria e do leitor com muito mais rigor. A cobrança em torno da gente é muito maior, como se não pudéssemos errar. Digo isso de cátedra mesmo. Vi muito colegas brancos cometendo erros absurdos, que a chefia fechava os olhos; e, quando eu cometia um erro muito menor, eu era chamado no canto, ou recebia uma advertência na frente de todo mundo, ou recebia ameaça de levar uma suspensão, como aconteceu uma vez.

Você percebe que existe uma assimetria nesses tratamentos e é muito difícil você ter que lidar com isso e escrever uma matéria que vai sair no dia seguinte porque ninguém se importa se você está bem, ou se não, se você sofreu racismo ou se não sofreu, se aquela fala que fulano disse te ofendeu ou não, você tem que entregar sua matéria. Se não entregar, vai atrasar a página, a finalização, a rodagem, a logística de entrega. É uma dinâmica muito difícil, a gente precisa, urgentemente, colocar mais cor na redação, tanto do ponto de vista racial, quanto do ponto de vista da identidade de gênero. Ainda tem algumas editorias típicas do macho hétero branco: Economia, Esporte… Principalmente, Esporte — quem cobre é o macho branco hétero. “Viado” não pode estar ali, uma mulher não pode estar ali. Se estiver, é sabendo que vai sofrer uma série de violências e pressões. Por óbvio, existem alguns movimentos de mudanças. O Povo mesmo tem um colunista de Esportes que é abertamente homossexual, que muito recentemente virou editor-executivo do caderno, que, na época em que eu trabalhava lá, era repórter como eu, o André Bloc. Ele é uma das pessoas que mais entende de futebol como eu e que agora está lá ocupando um lugar que merece, de comentarista de futebol, porque é uma pessoa que entende do assunto, mas que muitas vezes foi alijada pelo fato de ser gay, porque, na cabeça da humanidade, gay não pode comentar futebol. No ambiente de redação, essa disputa de narrativas, essas disputas políticas — porque tudo é político no fim das contas — é muito violenta, precisa ter sangue no olho e ir para a disputa mesmo, porque esperar reconhecimento não vai acontecer, definitivamente. Ou você conquista seu espaço com um trabalho extremamente acurado, uma apuração bem-feita, uma redação criteriosa, um relacionamento com as fontes e seus colegas de redação . Tudo isso é muito importante, não é só o produto que você entrega definitivamente. E, para tudo isso acontecer, tudo é relação, relação humana, racial, afetiva. Você vai ouvir piadas racistas, comentários que não cabem, aí você vai reagir conforme o entendimento que você tem daquele assunto, que eu não tinha na época, mas que hoje tenho e não admito mais. Então você reage conforme a informação que você tem. O Bruno jornalista de hoje não é o mesmo Bruno que estava no jornal O Povo quase 10 anos atrás. É um Bruno que enxerga as coisas por um prisma, principalmente, do componente racial. E isso tem sido determinante na minha vida para tudo, para o que eu consumo, para o que eu leio, para os lugares que eu frequento, para as pessoas com quem eu me relaciono, para as empresas para onde eu mando material. Não tenho interesse em me relacionar com uma série de empresas mesmo, porque a prática dessas empresas violenta o que eu sou. Então, olhar para trás e ver que eu passei por uma série de experiências racistas é horrível, mas o fato de eu não ter essa consciência racial [à época] me blindou de uma série de sofrimentos que eu poderia ter tido. Hoje em dia, tendo a consciência que eu tenho, eu não permito mais que isso aconteça.

“Quando você quer ler uma história e essa história não existe, você tem que escrever essa história, você tem que sentar à frente do seu computador e escrever a história que você quer ler. E eu acredito muito nisso, como escritor que sou, mas também como comunicólogo que sou, mas, principalmente, como a pessoa negra que sou”.

Fabiana Melo: A gente sabe que não existem muitos veículos de comunicação voltados exclusivamente para a comunidade negra. Não são todos os estados que têm projetos como o Ceará Criolo. Inclusive, ele foi o primeiro daqui, do Ceará, voltado para o povo negro. Em que contexto você e os outros fundadores notaram a necessidade de criá-lo?

Bruno: Eu sou suspeito porque eu realmente sou apaixonado por esse projeto. Como eu disse, o Ceará Criolo nasce num contexto de formação minha e dos colegas com os quais eu criei o Ceará Criolo. A gente estava fazendo uma capacitação do Sindicato do Jornalistas [no Ceará, o Sindjorce]. Era um curso de comunicação e igualdade racial, foram quatro meses de formação. A gente tinha encontros semanais com pesquisadores, com lideranças políticas e acadêmicas, pessoas que chefiam projetos antirracistas em outros estados, grandes instituições, inclusive. E aí, ao final desse percurso, a gente tinha que apresentar um produto de comunicação antirracista, podia ser qualquer coisa, podia ser um artigo científico, podia ser um ensaio fotográfico, podia ser uma matéria de televisão, podia ser um spot de rádio, podia ser um podcast, podia ser qualquer coisa. E aí, quando eu me juntei com o Rafael [Ayala], a Jéssica [Carneiro], a Rayana [Vasconcelos] e a Tatiana [Lima], a gente conversando ali sobre o que a gente poderia criar, a Tati sugeriu que o nome fosse Ceará Criolo, por conta da música “Sarará Criolo” [expressão presente na música Olhos Coloridos], de Sandra de Sá. Então, o nome vem daí, por conta da sonoridade, Sarará, Ceará, Sarará Criolo, Ceará Criolo. A Tati fez essa brincadeira, a gente curtiu a sonoridade, a gente achou bacana e aí, trocando ideia, eu propus: “Gente, por que a gente não lança um portal de comunicação? Nós somos jornalistas e publicitários, eu tenho experiência em jornal; o Rafa também é jornalista e tem experiência em assessoria de comunicação; a Tati trabalha em agência de publicidade; a Jéssica também; a Raiana também; então vamos pegar aqui as expertises de cada um e vamos criar um portal de notícias”. E assim surgiu a ideia no comecinho de outubro. No dia 23 de outubro [de 2018], a gente colocou o portal no ar, apresentou para alguns, e um mês depois a gente ganhou o prêmio de melhor produto de promoção da igualdade racial do Ceará daquele ano e estamos com o Ceará Criolo até hoje. O Ceará Criolo de hoje não é o mesmo daquela época. A Tatiana e a Raiana se afastaram, disseram que já tinham cumprido com a colaboração que queriam dar e preferiram tocar projetos pessoais. E continuamos eu, o Rafa e Jéssica — dois jornalistas e uma publicitária tocando esse projeto.

Olha, quando a gente surgiu, Fabiana, de fato, em 2018, a gente não tinha nada aqui de referência. E, quando eu digo “de referência”, não é só na comunicação, porque a gente vive num estado em que a população, segundo o censo do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], é majoritariamente negra, preta ou parda, mas as narrativas oficiais, do governo, dos livros de história, das escolas, da política, todas essas narrativas dizem que o Ceará é um estado que não tem negros, que nós somos a primeira unidade da federação a libertar os escravizados, porque os negros aqui eram muito pouco ou não tinham tanta importância, e isso não é verdade. Registros históricos comprovam que a presença negra no Ceará foi muito forte e que tem uma carga de influência muito grande na formação da gente sociocultural e politicamente também. A gente tem muitas referências negras na nossa cultura, mas que são apagadas; referências, inclusive, básicas. Todo mundo adora assistir à quadrilha [grupo de dança dos festejos juninos], todo mundo acha a coisa mais linda festa de São João, mas não se toca de que o vestidinho de chita que a menina está usando para dançar era usado pelos negros na senzala, porque, na época da escravidão, chita era um tecido descartado pelas pessoas brancas. Então os negros pegavam aquele tecido — principalmente as mulheres — e faziam vestidos, saias para elas e para os homens. Então é um tecido negro, é um tecido nosso. O samba nasceu da negritude, a feijoada nasceu da negritude, o mungunzá nasceu da negritude, o acarajé nasceu da negritude. Então, a gente tem uma série de referências negras na nossa cultura que se tornaram símbolos nacionais, deixaram de ser do povo negro e se tornaram símbolos nacionais, e isso aqui, no Ceará, é muito forte. A gente cresce ouvindo que não tem negro e isso é tão forte que convence até a gente que é negro. Por isso que eu, até os meus 32 anos de idade, não me apresentava como uma pessoa negra, eu era “moreno”, eu tinha a “pele clara”, eu tinha “cor de jambu”, eu tinha qualquer coisa, menos a negritude dentro de mim, porque se associar ao negro é uma coisa ruim, socialmente as pessoas associam a uma coisa ruim, a ser pobre, a ser violento, a ser ladrão, a não ter inteligência.

A gente não pode ocupar esses lugares, da riqueza, da intelectualidade, tudo isso é negado para gente. Então, quando o Ceará Criolo nasce da nossa inquietação, de nós cinco com esse cenário, a gente olhou para a comunicação que era feita pelo jornal O Povo, pelo Diário do Nordeste, pelo Sistema Verdes Mares, pela TV Cidade, por toda essa galera que está aí, da “mídia hegemônica”, como a gente chama, e a gente não se sentiu representado e contemplado com o tipo de material que eles publicam. Então, se a gente não está satisfeito com uma coisa, a gente tem que ir lá e mudar, ou a gente tem que fazer do jeito que a gente acredita que tem que ser feito. Toni Morrison — que é uma autora norte-americana que morreu recentemente, a primeira mulher negra a ganhar o Nobel de Literatura — diz que, quando você quer ler uma história e essa história não existe, você tem que escrever essa história, você tem que sentar à frente do seu computador e escrever a história que você quer ler. E eu acredito muito nisso, como escritor que sou, mas também como comunicólogo que sou, mas, principalmente, como a pessoa negra que sou.

Eu não acredito, Fabiana, nos outros jeitos de se fazer comunicação hoje, eu não acredito. Antes, não era assim porque eu não tinha a consciência que eu tenho. Hoje eu não acredito em outro jeito de fazer comunicação que não seja discutindo marcadores sociais de diferença; discutindo raça, discutindo gênero, discutindo identidade, discutindo classe. Tudo isso precisa estar no jornalismo que a gente pratica, e ele não tem que estar só na matéria que você entrega, ele tem que estar na sua formação, tem que estar na grade curricular do seu curso. Identidade não é pra ser privilégio de alguns alunos que têm professores que são aliados dessa temática, como é o professor de vocês aqui agora. Isso é para estar na matriz curricular da formação de vocês, é para ser a espinha dorsal da formação de vocês. Vocês têm que sair da redação não só sabendo o que é um lide, um sublide, um bigode, um título, uma caixa de serviço, um box, uma respiração, um olho. Não é só isso que vocês têm que saber. Isso é muito importante, a parte técnica é muito importante, mas não é só isso, porque, dentro de cada elemento desse de página de vocês, tem uma história. É uma pessoa que está ali, e a história daquela pessoa não é atravessada só pelo sucesso e pelo fracasso. Ela é atravessada pelo sucesso porque ela pode ter sido um sujeito branco, cheio de facilidades, rico, cheio de acessos, que tinha condição de comprar livro, tinha condição de entrar na UFC, que ia pra UFC de carro, que não comia no RU [restaurante universitário], porque achava a comida ruim e ia para o shopping comer na praça de alimentação etc.. E a história dessa pessoa pode estar marcada pelo fracasso pelo fato de ela ser negra, moradora de periferia, na casa dela não ter saneamento básico, ela não ter dinheiro para comprar livro, ela ter que comer no RU — isso quando consegue entrar na universidade pública, porque muitas vezes ela não consegue — , de ter que andar de ônibus e estar pegando Covid, de pegar Covid e não conseguir atendimento no posto de saúde porque o posto de saúde do bairro dela não funciona e, curiosamente, os postos de saúde de áreas com o IDH [índice de desenvolvimento humano] baixo são os piores, que é onde está a população preta.

Então, tudo isso precisa ser considerado e, no nosso dia a dia de redação, pela própria dinâmica da redação, tudo isso é desconsiderado. Via de regra, a gente não leva esses aspectos em consideração quando a gente vai atrás de uma fonte. A gente não se preocupa se a Fabiana é branca ou preta, “eu quero a Fabiana” — quer dizer eu quero qualquer fonte, “qualquer um aí”. “Me arranja aí qualquer um que fale aí sobre esse assunto”, é desse jeito que funciona. Quando a gente tem um entendimento de que raça, principalmente, demarca a vida das pessoas, meu tratamento vai ser: “Oi, Fabiana, tudo bom? Aqui é o Bruno, repórter do jornal O Povo, tudo bem? Eu tô fazendo uma matéria sobre um posto de saúde que não funciona ali, no ‘bairro tal’, e eu queria ouvir um especialista de saúde pública negro”. Isso muda completamente a perspectiva da sua matéria, pode ter certeza, porque o economista branco que mora numa cobertura no Parque do Cocó pode fazer todas as visitas que ele quiser fazer na vida dele a uma favela, ele nunca vai saber o que uma pessoa preta favelada passa, porque ele nunca vai ser uma pessoa preta favelada, ele sempre vai ser o homem branco que mora na cobertura no Parque do Cocó, entendeu? Então, isso muda muito a perspectiva do jornalismo que a gente produz. Os jornais comerciais, as empresas de comunicação funcionam nessa lógica de reproduzir o pensamento do homem branco, rico, morador do Parque do Cocó.

O Ceará Criolo, o Alma Preta Jornalismo, o Notícia Preta, o site Mundo Negro, o Kilombas Podcast, tantas outras iniciativas racializadas de jornalismo trabalham com a perspectiva de pedir um especialista negro, de amplificar a voz do homem negro de periferia que está nesse bairro que não tem saneamento básico. Percebe a diferença? Em um [veículos convencionais], você está dando palanque para uma pessoa que já tem; em outro [veículos alternativos], eu estou possibilitando a vida de uma pessoa que é completamente inviabilizada.

“É muito difícil as pessoas entenderem que o antirracismo, a gente não faz só no grito. O antirracismo é feito praticando. O antirracismo não é uma hashtag que você coloca no Instagram, o antirracismo é você se dedicar a entender como funciona o mundo e não reforçar essa lógica”.

Gabriel Damasceno: O Ceará Criolo é um ótimo exemplo de jornalismo independente. Como você falou, ganhou vários prêmios. Por essa sua experiência, quais são as principais dificuldades que você percebeu para se manter uma mídia independente aqui, no Brasil?

Bruno: Indiscutivelmente, eu te digo que a maior dificuldade é o financiamento. É muito difícil se sustentar como mídia negra. O Ceará Criolo vai completar quatro anos em outubro [de 2022] e, só agora, quase quatro anos depois, é que nós — eu, Rafael e Jéssica — estamos começando a ganhar dinheiro com ele. E, ainda assim, está a léguas de distância do que nós deveríamos ganhar para o esforço que nós fazemos e para o que nós devemos receber tomando como base o piso da categoria. Eu não estou falando nem do que eu acho que eu mereço — que é muito mais — , estou falando do piso da categoria. A gente não chega nem perto do que deveríamos receber. Literalmente, é uns trocados que caem na nossa conta por uma ou outra parceria que a gente faz. Então, o financiamento é um fator preponderante, mas não é uma realidade só do Ceará Criolo, não. Eu faço parte de vários coletivos negros de comunicação e é uma reclamação homogênea. É muito difícil porque, claro, cada coletivo tem sua realidade regional, mas, via de regra, as pessoas não querem se associar a esse tipo de jornalismo porque é militante, é planfetário, tem um tom de manifesto, e as pessoas cultuam essa lorota de que o jornalismo é imparcial, mas ele não é. O jornal O Povo não faz jornalismo imparcial, Diário do Nordeste não faz jornalismo imparcial, jornal nenhum faz, isso não existe. Vocês já devem ter ouvido isso em sala de aula, mas não custa reforçar: se eu coloco dois repórteres, duas pessoas da turma de vocês, do mesmo semestre, com acesso às mesmas informações, a mesma formação, a mesma estrutura de cobertura, o Gabriel e a Hayra vão me entregar textos completamente diferentes, porque a experiência de vida do Gabriel é diferente da experiência de vida da Hayra, que são duas pessoas brancas. Eu sou uma pessoa negra. Se eu for cobrir essa pauta, vai sair algo completamente diferente, como vai sair diferente da Lorén, da Fabiana, da Maria Clara, do Robson, da Isabella e do Guilherme. Cada um vai entregar um texto diferente, com palavras diferentes, porque o vocabulário que cada um tem é diferente do outro, nunca essa cobertura vai sair igual, nem na reprodução de aspas dos personagens essa reprodução vai sair igual, porque vai ter uma palavra que o Gabriel não vai entender, porque o áudio dele não ficou bom, vai ter uma palavra que o Guilherme vai preferir trocar por um sinônimo para ficar mais fácil para o leitor dele compreender, e isso é possível, então, não vai chegar igual, nunca. Não tem como o jornalismo ser imparcial, e é ótimo que o jornalismo não seja imparcial, ele tem que ser diverso mesmo. Agora, quando esse mito da imparcialidade se sedimenta do modo como se sedimentou aqui, no Brasil, a gente fica nesse conto de fadas de que o jornal hegemônico entrega a verdade, o jornalismo imparcial. E o Ceará Criolo vai vir com um texto superparcial, posicionado. E as pessoas não querem se vincular ao jornalismo negro — tô dizendo “negro”, mas com o jornalismo LGBT é do mesmo jeito, com o jornalismo feminista é do mesmo jeito e com o jornalismo sindical é o mesmo jeito. Todo o jornalismo que não seja esse jornalismo de empresa, das grandes empresas de comunicação, ele vai ser colocado em cheque. E não é o cheque que a gente queria, de dinheiro, é o cheque para questionar a nossa capacidade de fazer alguma coisa.

Além disso, a mão de obra. É impressionante a quantidade de gente que quer posar de antirracista e não quer trabalhar. É só o que tem, mas é “de ruma”. Tem uma galera que fala que quer ajudar: “Deixa eu fazer parte do Ceará Criolo, eu quero levantar a bandeira do antirracismo, porque é um absurdo pessoas negras serem submetidas a violência. E a igualdade racial, e a equidade racial, e vamos levantar a bandeira, e George Floyd ter sido assassinado é um absurdo”. “Ok, quer entrar, colega? Pois beleza, você entra”. Quando chega no dia seguinte: “Ei, surgiu aqui uma pauta. Tu pode fazer? Vou te mandar aqui e tal, é mais ou menos assim, tá aqui o contato da fonte. Ou, então, não precisa nem tu ouvir ninguém, é só tu dar um reformulada aqui, nesse material, que é um material de agência”. “Ai, não posso, não”; “Ai, eu tô ocupada”; “Ah, não, eu tô tão cansada”; “Cheguei tão cansada, posso não”; “Ô, amigo, deixa para amanhã”; “Ô, amigo, pede para outra pessoa”; ou, então, nem atende, nem visualiza, sabe? É muito recorrente. E aí a gente tem que se afastar desse povo. Hoje em dia, estou numa vibe da minha vida em que eu não faço mais questão, porque não vale a pena, é um desgaste que não vale a pena, mas é muito recorrente aparecer pessoas dizendo que querem mudar o mundo e, na hora de escrever uma matéria de quatro parágrafos, essas pessoas se ausentam. “Estou muito cansada”; “Trabalhei hoje o dia todo”. Aí, dez minutos depois, você olha no Instagram dela, e ela está numa roda de samba. Ela não podia sentar para escrever uma matéria de três, quatro parágrafos, mas ela tinha energia para estar em uma roda de samba. “Mas as pessoas têm direito à diversão, nem todo mundo é workaholic [aquele que trabalha compulsivamente]”. Sim, todo mundo tem direito a ter seu momento de diversão, tenho horror a essa teoria do “trabalhe enquanto eles dormem”, acho isso uma coisa superopressora e não é por aí. O problema é quando essa postura do “não posso escrever, mas posso estar em uma roda de samba” vira todo dia, ou então quando você se depara com pessoas que: “Bruno, eu não posso escrever essa matéria aqui, mas, se for para entrevistar o Lázaro Ramos, eu estou à disposição”; “Se for para cobrir o show da Elza Soares, eu vou”; “Se for para entrevistar a Iza, menino, eu vou demais, vou perder a oportunidade de entrevistar a Iza?”. “Mas essa notinha, eu não posso fazer, não, amigo, estou muito ocupado”. Então, para mim, são as duas piores coisas para além do contexto que eu já contei para vocês de apagamento de racismo. É muito complicado, a gente está num período em que nunca se produziu tanto conteúdo na vida, mas pessoas dispostas a isso são difíceis. É muito difícil as pessoas entenderem que a gente não faz o antirracismo só no grito. O antirracismo é feito praticando. O antirracismo não é uma hashtag que você coloca no Instagram, o antirracismo é você se dedicar a entender como funciona o mundo e não reforçar essa lógica de que pessoas brancas merecem ser ovacionadas e pessoas negras podem ser deixadas aqui porque são pessoas negras. O antirracismo é uma perspectiva de mundo, é uma prática de vida, é você sentar e escrever, é você debater com o colega, é você ver o colega falando uma piada e você dizer: “Ei, tá errado, não é assim”. É isso, sabe? A gente pratica, ficar só no discurso, na rede social postar e no dia a dia ser um escroto, sair atropelando seus colegas, não dar oportunidades para as pessoas, não ouvir fontes negras, ou, quando você for retratar um personagem negro, você estigmatizar esse personagem. Então, financiamento e mão de obra com toda a certeza.

Fabiana Melo: Você tem uma ótima base quanto ao jornalismo independente e, sem dúvidas, tem conhecimentos valiosos. Pensando em sua prática, com a criação e consolidação do Ceará Criolo, quais conselhos você daria para alguém que planeja desenvolver um projeto de comunicação independente?

Bruno de Castro: Primeiro, tenha fé. Olha, eu acho que a primeira coisa: não pode ser um jornalismo de modinha: “vou fazer porque todo mundo está falando sobre isso”; “vou fazer porque eu quero bombar”; “quero ter vários likes”. Porque hoje em dia é um problema, também, de jornalista achar que é celebridade, que é famoso, influencer digital, é uma praga isso na vida da gente e não tem ajudado. Essas pessoas podiam ter usado essa plataforma pelo menos para levantar bandeiras decentes, mas, na verdade, é pura autopromoção que serve para um total de zero coisas, a não ser para elas ganharem dinheiro com isso. Então, eu acho que a primeira questão é ser um jornalismo com algum engajamento social, ele tem que ter alguma razão de ser. Do mesmo jeito que a razão das empresas de comunicação é o lucro, o jornalismo independente tem que ter alguma razão de ser. Eu vou criar o Ceará Criolo para quê? O Ceará Criolo existe para visibilizar pessoas negras. Reparem no termo “visibilizar” pessoas negras: eu não estou dando voz a ninguém. Nenhum jornalista, nenhum repórter dá voz a ninguém, as pessoas têm as próprias vozes. O que nós fazemos como comunicólogos, como produtores de conteúdo, é possibilitar que essas pessoas tenham suas vozes amplificadas. Cada um cria sua própria voz, a sua narrativa, e o Ceará Criolo é um instrumento de visibilizar essas pessoas, essas histórias, essas reivindicações. Então, eu acho que o primeiro sentido do jornalismo independente — não interessa qual — tem que ser ter uma razão de existir.

Segunda, se cercar de pessoas que realmente querem trabalhar, porque, como eu disse, jornalismo independente tem uma dificuldade muito grande de captar recurso. Então, dificilmente, você vai viver disso. Eu, a Jéssica, o Rafael, a gente brinca dizendo que o jornalismo do Ceará Criolo é um jornalismo da hora que dá, porque eu escrevo quando dá, quando eu chego em casa depois de oito horas de expediente na Defensoria Pública, lidando com as histórias mais horripilantes que você possa imaginar, porque nosso público-alvo são pessoas extremamente marginalizadas, pessoas que às vezes não têm o que comer em casa. É eu chegar depois de um dia desse, assistir a uma aula de mestrado, que não é fácil, e logo em seguida ver o que chegou no email do Ceará Criolo e decidir o que escrever, quem eu posso acionar. Então é entender que como o jornalismo independente demora a dar dinheiro e, quando dá, não é essas coisas todas, você vai precisar ter pessoas da sua confiança ao redor, não necessariamente pessoas que pensem como você. A diversidade de pensamento é extremamente saudável, a gente precisa se cercar de pessoas da nossa confiança e que tenham um olhar minimamente alinhado com o nosso. E, também, ter, com muita tranquilidade, o discernimento de que a gente não precisa levar o mundo nas costas, eu não preciso produzir todo dia, eu não preciso levantar todas as bandeiras do mundo, eu não preciso comprar todas as brigas do planeta, porque a gente não consegue, a gente tem que ser estratégico com os nossos posicionamentos. Vai ter pauta do movimento negro que eu não vou alcançar, porque emocionalmente me afeta, afetivamente me afeta, financeiramente me afeta. No Ceará Criolo, a gente já chegou, para você ter uma ideia, a estar com o especial quase todo pronto e desistir de publicar porque uma fonte chegou para gente e disse: “Bruno, não publique, não é o momento ideal para vocês publicarem isso; se vocês publicarem, vocês vão gerar consequências extremamente prejudiciais para a comunidade e isso pode voltar para vocês de uma maneira que vocês não gostem”. Resumindo, nossa integridade física estava em perigo. Se a gente publicasse, poderíamos receber um ataque em casa, na rua. Então, é saber que, entre ter um especial publicado e a minha integridade física ser exposta à possibilidade de eu levar um tiro e morrer, eu prefiro não publicar o especial. Eu acho importante ter em mente que a luta é necessária, fazer esse jornalismo sempre na melhor qualidade, não é porque é um jornalismo que não é empresarial, que não funciona nessa lógica dos jornais tradicionais, que eu vou fazer de qualquer jeito. Eu não admito entregar um texto menor do que o melhor que eu possa dar. Se for para entregar um texto meia boca, eu não faço, porque é meu nome que está ali. Se eu não tenho zelo com o material que eu entrego, eu estou fazendo o quê?

“A gente não pode se dar ao luxo, e aí é uma visão muito particular, de não participar de determinados espaços. Eu tenho que estar lá dentro, pessoas negras têm que estar lá dentro para ajudar a desfazer aquela lógica”.

Gabriel Damasceno: A mídia alternativa aborda certos assuntos que não costumam ser pautados na mídia tradicional. Como você disse, o Ceará Criolo tem como principal função visibilizar pessoas negras, o que muitas vezes não acontece na mídia tradicional. Como você acha que a mídia independente influencia os leitores? Você acha que essa influência pode trazer bons resultados no futuro?

Bruno de Castro: No futuro não, a gente já tem resultado no presente! Olha, eu não tenho como comparar o alcance de nenhuma mídia negra — por maior que ela seja — com o alcance de qualquer mídia empresarial — por menor que ela seja. Por que eu digo isso? Nós temos atualmente dois grandes portais negros que disputam o primeiro lugar de audiência: o Alma Preta Jornalismo, que é uma agência especializada em jornalismo preto lá de São Paulo; e o site Mundo Negro, ele é mais antigo, tem 11 ou 12 anos de existência. O Alma Preta tem sete [anos], e os dois prestam um serviço espetacular ao jornalismo, em primeiro lugar, e à comunidade negra. Porém, nenhum dos dois chega nem perto, por exemplo, do jornal O Povo. O Alma Preta tem atualmente 405 mil seguidores [no Instagram]. O jornal O Povo, que é um jornal local, por assim dizer, tem um milhão e meio, tem quase quatro vezes mais seguidores que o Alma Preta. O Mundo Negro tem 450 mil seguidores. Se você juntar o Mundo Negro e o Alma Preta, que são os dois maiores portais negros do pais, não chega nem perto do jornal O Povo. O jornal Folha de S.Paulo tem 3 milhões de seguidores só no Instagram, é uma diferença maior ainda, e o Folha é o maior jornal do país. Então, eu não tenho como comparar o alcance e a penetração social de qualquer mídia negra com qualquer mídia hegemônica. Mas eu não tenho como negar que tem sido feito um movimento muito grande, um movimento contrarrevolucionário muito grande. Dos últimos 12 anos para cá, nunca se criou tanta mídia negra no país como agora. Existe pesquisa que comprova isso. O Ceará Criolo faz parte desse movimento. Isso é muito simbólico, isso reflete uma ânsia social por outro tipo de informação, as pessoas não estão mais satisfeitas com a informação que está posta, não existe mais a verdade universal do jornal nacional, o que não significa dizer que esses veículos negros tenham chegado ao seu ápice. Pelo contrário: falta muito ainda. Então, eu não tenho como fazer essa comparação, ela é desleal, inclusive, porque a mídia convencional funciona com uma lógica de dinheiro que a mídia negra não funciona. Vou lhe dar um exemplo prático: você entra num grande portal desse, tem lá um anúncio imenso de uma marca, a Folha ganha milhões com esse anúncio. Você sabe quantos reais entra no Ceará Criolo dessa marca? Nenhum. Sabe por que não entra? Porque eu não aceito, por um posicionamento político. Tem um grupo que é o que mais assedia o Ceará Criolo para a publicação de conteúdo e anúncios, o tempo inteiro, chega a ser constrangedor, e a gente não aceita, porque não faz sentido eu me vincular a uma marca que matou um homem negro dentro do estabelecimento, não tem cabimento eu me associar a uma marca dessa, essa grana está suja com o sangue do meu povo. Não tem como comparar, a gente faz um esforço muito maior para o nosso material chegar nos lugares. O Ceará Criolo está comemorando, agora, quatro anos de existência, e a gente bateu, recentemente, 500 mil acessos ao nosso site, sem nenhum anúncio, sem nenhuma postagem impulsionada no Faceebook. Eu desafio qualquer pessoa a buscar impulsionamento de coisas do Ceará Criolo, não existe. O trabalho da mídia negra é um trabalho orgânico, ele não tem esse viés comercial nos mesmos moldes de uma mídia tradicional, porque que eu estou fazendo essa diferenciação dos mesmos moldes, porque é óbvio que entra algum dinheiro, mas não é na mesma lógica de funcionamento. A gente não aceita se vincular a uma série de empresas que têm práticas escravocratas. Jamais entraria no Ceará Criolo um anúncio de determinada marca historicamente acusada de trabalho escravo. Nas mídias tradicionais entram, elas estão vendendo o espaço delas para qualquer pessoa que queira botar ali, é dinheiro que está entrando. As mídias alternativas, em via de regra, não funcionam nessa lógica. Existem situações que destoam, obviamente. Eu já vi site negro postando coisa sobre tais marcas, vai da linha editorial de cada um, mas são sites dos quais os próprios leitores cobram posicionamento. Então, eu, Bruno, prefiro não pagar esse preço de ter dinheiro na minha conta para sustentar o Ceará Criolo e o mesmo estar publicamente sendo colocado como um veículo a serviço de uma lógica que ele mesmo critica. Estar no Ceará Criolo não me anula de estar em outros espaços, só que a militância que eu faço no Ceará Criolo é diferente da militância que eu vou fazer no jornal O Povo, porque a energia que eu não gasto no Ceará Criolo eu vou gastar no jornal O Povo peitando, pautando, batendo de frente, demarcando meu espaço. São espaços diferentes que a gente precisa ocupar, a gente não pode se dar ao luxo. E aí é uma visão muito particular, de não participar de determinados espaços. Eu tenho que estar lá dentro, pessoas negras têm que estar lá dentro para ajudar a desfazer aquela lógica, agora vai do posicionamento político de cada um.

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