Wanderson Petrova: “Fazer grafite na rua é um ato de coragem”

Levi César
EntreFios - tecendo narrativas
29 min readOct 16, 2020

Em entrevista ao EntreFios, o artista visual do Crato falou sobre seu engajamento em trabalhos sociais, além de relatar as experiências vividas graças ao sucesso dos seus murais entre artistas como Madonna e Katy Perry

Por Andressa Monte, Beatriz Reis,
Jeferson Falcão, Levi César,
Maria Letycia, Matheus Lima,
Mariana Matias e Pétala Brito

Wanderson Petrova é artista visual e estudante de Artes Visuais na Urca / Arquivo pessoal

Existem muitas formas de expressões artísticas possíveis. A arte pode ser representada pela música, pela dança, pela pintura, por esculturas e muitos outros modos. Além disso, há a possibilidade de transformação da realidade de pessoas em situação de vulnerabilidade social, de localidades e até mesmo de cidades a partir da ação transformadora da arte.

Devido à pandemia do novo coronavírus, espaços culturais como museus, galerias de arte, cinemas e teatros tiveram que fechar as portas ao redor do mundo. No entanto, mesmo em uma situação tão adversa para artistas, a exemplo da maior pandemia dos últimos 100 anos, a arte continua sendo uma das mais belas expressões humanas.

Para debater esse e outros temas, o EntreFios recebeu, em 16 de setembro, o artista visual, pintor e cenógrafo Wanderson Petrova. Natural do Crato, atualmente ele cursa Artes Visuais na Universidade Regional do Cariri (Urca) e trabalha com arte em projetos sociais para o desenvolvimento de jovens que cumprem medidas de ressocialização em Centros Socioeducativos do estado, além de produzir murais espalhados por sua cidade natal e realizar trabalhos artísticos por contrato.

Wanderson dedica a maior parte de suas obras a mulheres e cantoras famosas no cenário nacional e internacional, tendo, inclusive, alguns de seus trabalhos divulgados por elas em suas respectivas redes sociais, como ocorreu com a cantora Madonna.

O artista também utiliza seu trabalho como forma de protesto e resistência contra práticas e discursos preconceituosos, discriminatórios e desrespeitosos em relação às mulheres, à comunidade LGBTQI e aos negros.

Confira a entrevista na íntegra no vídeo e alguns trechos transcritos a seguir.

Wanderson Petrova concede entrevista a equipe do Entre Fios (Reprodução: Youtube)

Jeferson: Wanderson, você pinta quadros desde pequeno, né? Quais foram os primeiros contatos que você teve com a arte visual?

Wanderson: Olha, o meu entendimento sobre o contato com arte me atravessa aqui uma memória da infância, que é quando eu percebo que na minha casa existem alguns materiais que têm pigmentos, que largam tinta, esses materiais sendo batom ou lápis de olho da minha mãe. Então qualquer coisa que ao gerar o atrito eu tivesse algum risco, alguma cor, eu utilizava para desenhar. Então minha mãe observou isso e comprou os materiais que seriam mais adequados para traçar, para desenhar, para expor ali as minhas emoções naquele momento. Mas eu quebrei muito batom de minha mãe desenhando [risos].

Andressa: Nas suas obras, a gente nota um empoderamento feminino muito grande, sempre a mulher no espaço mesmo de domínio e de fascínio. Você se inspira em algum artista plástico que tem esse mesmo envolvimento? Quais foram suas primeiras inspirações na arte?

Wanderson: Eu fui criado por uma mulher, uma pequena grande mulher, na verdade. Minha mãe é uma figura que tem 1,47 m de altura, mas que tem uma força muito grande. Então, desde o processo da minha educação ou do meu direcionamento artístico, em que ela é a figura principal para isso, eu observava bastante como ela lidava com as coisas do dia a dia. Por exemplo: Dia dos Pais, é comum que vão os pais à escola para participar da comemoração em si, para estarem acompanhando seus filhos. Mas meu pai não ia, quem ia era a minha mãe. Então eu sou atravessado por essa relação de identificar que a força feminina, a forma com que minha mãe se posicionava diante de questões simples, para mim, me foi tão forte, tão forte que eu não consigo dissociar. A força que há em mim é dela. Eu sou um homem, mas a minha relação de verocidade, de força, de correr atrás do que eu penso, do que eu sonho e tornar o que eu sonho real, ela é amplamente feminina, porque eu cresci vendo minha mãe fazendo isso, vendo minha mãe ralando duro, vendo minha mãe enfrentar várias vezes algum tipo de situação sobre machismo, até dentro da minha própria casa. Então meu processo de produção, enquanto artista, ele foi muito atravessado por isso. Portanto, é comum que, nas minhas obras, na sua grande maioria, está uma homenagem às mulheres, as mulheres em geral, seja a mulher que é dona de casa, seja a mulher que é a rainha do pop, seja a rezadeira do bairro onde eu moro. Então, de forma geral, eu acho que a figura feminina é bastante importante e decisiva no meu trabalho e na minha vida.

“Eu sou atravessado por essa relação de identificar que a força feminina, a forma com que minha mãe se posicionava diante de questões simples, para mim, me foi tão forte, tão forte que eu não consigo dissociar. A força que há em mim é dela”.

Andressa: Você demonstra ser muito fã da Madonna, a gente ver isso muito claro…

Wanderson: Fã não, devoto!

Andressa: É devoção mesmo. Você pintou sobre esse fascínio pela mulher, esse empoderamento que já é muito marcante na sua infância. Como você explica essa preferência em mostrar as divas do pop, essas questões principalmente da música? Às vezes, quando uma artista está lançando um álbum, você pega uma arte… A gente vê uma presença muito forte da música. Você teve alguma influência para ter essa característica?

Wanderson: Então, a Madonna entra na minha vida já na infância. Meu pai faleceu e eu me lembro de ver a casa cheia de pessoas. É comum, né? Os familiares vêm se despedir e toda essa relação ritualística... Eu me lembro de me fechar no quarto e, na época, havia uma emissora de televisão que rodava videoclipe sempre no mesmo horário, não sei se vocês lembram disso. E aí estava passando “Like a Prayer” [clipe de Madonna]. Aquela música naquele momento, eu acabava de perder meu pai, haviam muitas pessoas chorando, muita gente conversando ao mesmo tempo, muitas vozes pela casa. E aí eu decidi me trancar no quarto e eu escutei aquela música. Aquela música me acalmou de alguma forma. Até então eu não sabia inglês, mas a melodia me atravessou, porque música tem energia, tem esse poder, né? Então, dentro disso, eu fiquei pensando sobre isso, sabe? Sobre essa música que me acolheu em um momento ruim. E, tempos depois, eu descobri que quem cantava era a Madonna. E, desde então, eu passei a ter uma aproximação, uma conexão, não é nem “aproximação” o termo, uma conexão com o tipo de melodia que ela produzia. Descobrindo o que falava a música, do que se tratava — fé, ausência, perder os medos, seguir em frente — , foi que eu não consegui mais dissociar essa poética. Quando eu penso em canção, em música, em música que mexe comigo, eu penso nas canções da Madonna. E foi aí que eu me coloco como um fã, na verdade, como alguém que se conecta a isso. Como artista, eu passei a apreciar essa música, o processo de videografia dela, e passei a ver que eu poderia também, à minha forma, materializar isso com o que eu sei fazer. Eu escuto, eu leio, hoje eu sei a tradução. E como é que isso mexe comigo? Essa música fala da comunidade que eu vivo? Fala das pessoas? Fala das pessoas que são como eu? Eu vou pintar, eu vou escrever isso e eu vou escolher um lugar em que as pessoas também possam se conectar com tudo isso. E aí eu fui para a rua pintar. Então acho que eu fui um pouco adiante na resposta. Vem disso, sabe: o fã da Madonna nasce quando a música se conecta com ele e o artista que é fã da Madonna acontece quando ele passa a produzir sobre o que ele tá escutando, sobre como ele concorda com a linha de raciocínio dela e sobre como ele aplica isso também na própria comunidade onde vive.

“Eu me lembro de me fechar no quarto […], estava passando “Like a Prayer” [clipe de Madonna]. Aquela música naquele momento, eu acabava de perder meu pai, haviam muitas pessoas chorando, muita gente conversando ao mesmo tempo, muitas vozes pela casa. E aí eu decidi me trancar no quarto e eu escutei aquela música. Aquela música me acalmou de alguma forma”.

Pétala: O Crato é cheio de regionalidades, você está cercado disso. Isso influencia em alguma parte nas suas obras, no seu traço?

Wanderson: Influencia bastante, porque, assim, além do aspecto rico culturalmente, além das manifestações legítimas que ocorrem e só ocorrem aqui, no Cariri [região no sul do Ceará, onde se localiza a cidade do Crato], nós também temos outro aspecto, e é ruim, que é uma coisa completamente, que nada completamente em uma direção contrária a isso. Por exemplo, quando eu pinto mulheres na rua, quando eu pinto divas pops, quando eu pinto a minha mãe na rua, porque existem mulheres espalhadas em obras minhas por toda a cidade… E, quando eu faço isso em uma cidade em que o feminicídio é alarmante… Outro dia mataram uma senhora na praça aqui, na minha cidade, e na frente de todo mundo, de uma forma gratuita, assim como como quem nasce uma flor e se olha para a naturalidade daquilo. Mas é uma pessoa, era uma mãe, era uma mulher, e isso aqui ocorre por conta de briga de casamento, porque o cara não aceita o fim do relacionamento. Então, quando eu pinto essas mulheres, eu também estou me posicionando politicamente, eu também estou gritando de alguma forma, mesmo que velado ou não, mesmo que explícito ou não, para que isso acabe. Não é pintar e “vai terminar o feminicídio”, mas é pintar para reconhecer a potencialidade dessas mães, dessas guerreiras, que são muito colocadas como palavras pejorativas, com dizeres pejorativos ou colocadas à margem, quando na verdade não são. A mulher é uma potência, ela deve ganhar tanto quanto o homem, ela tem o direito de viver tanto quanto qualquer outra pessoa. Então eu fico muito revoltado com tudo isso, e isso é a minha forma de gritar também. Logicamente, é importante a gente denunciar, é importante a gente acolher, é importante a gente mobilizar as pessoas, mas enchendo a cidade [com pinturas de mulheres], em terra de homens, me desculpe a palavra, “ignorantes e escrotos”, a gente também está se posicionando contra isso.

“Quando eu pinto essas mulheres, eu também estou me posicionando politicamente, eu também estou gritando de alguma forma, mesmo que velado ou não, […] para que isso acabe. Não é pintar e ‘vai terminar o feminicídio’, mas é pintar para reconhecer a potencialidade dessas mães, dessas guerreiras”.

Levi: Seus murais ganharam uma repercussão bem maior […] quando grandes estrelas internacionais, cantoras publicaram, repostaram nas redes sociais delas. Algumas de suas obras homenageiam Katy Perry, Anitta, Cardi B, a própria Madonna, a Miley Cyrus. Isso para você deve ter sido algo de extrema honra. […] Como elas [artistas] chegaram até elas [pinturas sobre as artistas] e como foi para você toda essa repercussão? Como você recebeu e lidou com isso após toda essa repercussão mundial?

Wanderson: Eis uma coisa boa da internet, né, que é essa relação de aproximar as pessoas quando ela é utilizada de uma forma correta. Eu sou muito grato às pessoas que me seguem no Instagram e eu não estou bancando aqui o “digital influencer”, não. Mas eis a importância disso também, se conectar com as pessoas, fazer trocas, aprender com elas, e esses aplicativos permitem essa proximidade que, no campo material, no campo aqui, fora da telinha, por muitas vezes é distante e impossível. Então eu devo essa conexão com todas essas mulheres que são matrizes geradoras de inspiração para com o meu trabalho, as pessoas que acompanham ele, né? A você que acompanha e faz um elogio, que olha lá, porque são as pessoas que se conectam de tal forma que passam a fazer ali uma propaganda do artista, uma corrente do bem ou se conectam também com isso e mandam para um amigo, que mora lá do outro lado do país e diz: “Olha aqui esse cara que mora aqui, no Ceará, ele pintou uma diva”, que “ave, Maria, eu me conecto muito bem com ela”, “é a minha diva preferida”, “é a mulher que compôs uma música que salvou minha vida” ou “é a mulher que compôs uma música que eu usei no meu casamento”. Então, quando a gente cria, eu sempre digo isso, quando a gente cria, a gente não cria para si. Quando eu pinto elas, eu não pinto para mim, eu pinto sobre elas. Tem uma inquietação aqui dentro que eu preciso materializar o que eu penso, o que eu acho. Vou lá e pinto. Mas, sobretudo, a obra também é de outras pessoas, ela passa a não ser totalmente propriedade do artista que pintou, uma vez que o artista está pintando uma imagem que é de outra pessoa e ela passa a se conectar com as pessoas. E isso vai achando caminhos que não tem mais como você ter controle, né? Não tem como controlar para onde a sua arte vai. Não tem como controlar, por exemplo, o que podem fazer com a sua arte, porque é um filho que você tem e você coloca na rua, dá acesso às pessoas e as pessoas vão se conectando com isso. Então eu acho que essas artes, em resumo, ela só chegaram nessas mulheres por conta de todo esse amor que eu recebo de volta e de toda essa conectividade que as pessoas têm comigo, e isso é incrível. Assim, eu sou muito grato aos meus seguidores, aos espectadores desse trabalho, às pessoas da minha cidade, ao poder público aqui, do estado [do Ceará], que é muito maravilhoso para pôr o meu trabalho, muito respeitosos também. Então é um conjunto de todas essas coisas que até agora tem sido muito positivo.

Levi: Como é que foi para você quando você viu pela primeira vez, quando chegou até você o “olha aqui, a Madonna acabou postar, repostar nas redes sociais dela uma arte sua”? Como é que foi? Eu imagino que deve ter sido bem surpreendente.

Wanderson: Menino, olha, a primeira vez que isso me ocorreu, deixa só contar uma coisa para vocês. O meu primeiro trabalho de arte na rua, na parede, foi exatamente o primeiro trabalho que impulsionou todos os outros. O que é que eu quero dizer? O meu primeiro grafite sobre a Madonna, a Madonna dois dias depois já viu e isso mudou minha vida, né? Então hoje eu tenho um certo controle emocional em poder falar sobre isso, mas eu ainda sinto aquela sensação que é supercomum de engasgo, de “ave, Maria!”. Eu não sei nem como classificar, porque imagina você, no interior do estado do Ceará, com um sonho de ser artista… De produzir, na verdade, porque ser artista a gente é, independentemente de qualquer tipo de dificuldade. Quando eu perguntei para minha família o que eles achavam quando eu ingressei na universidade de arte — porque é impossível, para mim, dissociar a produção de conhecimento —, todo mundo riu, todo mundo disse que a arte era coisa de vagabundo, que eu não ia ganhar dinheiro, que eu teria que estar em outro tipo de profissão se eu quisesse ser alguém na vida. Todo mundo, com exceção da minha mãe, desacreditou em mim. Então eu pintei na rua e escutava muita piada. Já jogaram coisa em mim quando eu estava grafitando. Por exemplo, no dia em que eu estava grafitando essa primeira arte da Madonna, eu tive que me esquivar de uma garrafa de cerveja, e foi bem rápido, mas jogaram e nem pegou, e aí eu olhei para o carro e fiz: “Não pegou”. E continuei pintando. Então é bem emocionante, assim, olhar toda a trajetória de onde eu venho, do que eu acredito e chegar a dizer que eu não sobrevivo de arte. Eu vivo da arte, né, eu tenho conseguido, eu tenho uma profissão, eu sou artista, eu consigo pagar minhas contas com o que eu construo com muito amor. Então o caminho de lá até aqui é uma das emoções que mais mexe comigo. Porque foi uma pessoa lá de fora, apesar de eu já pintar há muito tempo, apesar de eu já produzir há muito tempo antes dessa projeção internacional. Mas precisou de alguém lá de fora colocar o dedo no que que eu faço e dizer que isso é arte, para que aquelas pessoas à minha volta pudessem entender, pudessem valorizar, pudessem comprar ou pudessem oportunizar situações para mim. Então, eu costumo dizer que na época foi a Madonna do outro lado do planeta que me apresentou para a minha própria cidade, que é relativamente uma cidade pequena em habitantes se comparado a outras. São muitas emoções que mexem comigo, sabe? De não desistir, de produzir, de acreditar e abraçar tudo que vir.

“O meu primeiro grafite sobre a Madonna, a Madonna dois dias depois já viu e isso mudou minha vida, né? Então hoje eu tenho um certo controle emocional em poder falar sobre isso, mas eu ainda sinto aquela sensação que é supercomum de engasgo, de ‘ave, Maria!’. Eu não sei nem como classificar, porque imagina você, no interior do estado do Ceará, com um sonho de ser artista… […]. Foi a Madonna do outro lado do planeta que me apresentou para a minha própria cidade”.

Matheus Lima: Como o Cariri tem recebido essa fama nacional e internacional em relação às suas obras?

Wanderson Pereira: O Cariri é uma uma terra de pessoas muito sonhadoras. Eventualmente uma pessoa ou outra vai dizer alguma coisa… Já tentaram apagar algum trabalho meu aqui, na cidade, mas no seu montante toda a minha história virou uma faísca de fé, sobretudo para outros artistas que também, depois desse movimento de grafitar as ruas, passaram também a grafitar as ruas. Então isso é muito, muito prazeroso, porque eu abri uma fagulha. Ninguém abre porta para ninguém, você faz isso mesmo por você, sabe? No caso, eu tinha muitos sonhos de adentrar nas galerias, mas sempre me foi dito “não”, “não tá bom o suficiente”, “não é bom”. Então fui lá com minhas tintas e abri a minha própria porta. E, quando eu passo nas ruas, que eu vejo um grafite tão bem resolvido quanto o meu, tão bonito quanto o meu nas ruas, que era uma coisa que eu não via antes, não sei se por minha causa, mas eu fico pensando: “Poxa, que massa que mais pessoas estão saindo das suas casas, mais artistas estão ousando”. Porque fazer grafite na rua é um ato de coragem, sobretudo porque você vai fazer, você não sabe se volta, você não sabe o que pode acontecer, então tem todos esses “poréns” e ver a quantidade de grafite que estão começando a acontecer na região me enche de muita satisfação e de muito orgulho. Não só de onde eu cheguei e de estar com esse reconhecimento agora, mas perceber que, nessa região [Cariri], há pessoas tão boas e tão brilhantes quanto eu.

Andressa Monte: Wanderson, você tem trabalhado em projetos sociais, junto com o governo do estado do Ceará, tem esse apoio do poder público. De que modo você tenta dialogar a arte que você ensina nessas ações com as realidades dos jovens?

Wanderson Pereira: De verdade, é um dos trabalhos que eu tenho maior orgulho em estar atuando, que é esse junto ao governo do estado e a associação socioeducativa. Esse trabalho nasce da proximidade de algumas pessoas com essa temática, né? As medidas socioeducativas, a arte enquanto um agente modificador. E a primeira pessoa que me apresentou a esse trabalho foi Andressa, que é uma moça maravilhosa que eu conheci na cidade vizinha. A gente tem alguns projetos sociais juntos, hoje ela é diretora do centro socioeducativo José Bezerra de Menezes, aqui, em Juazeiro [do Norte], e todo esse trabalho aqui é muito amarradinho com pessoas incríveis de Fortaleza, da SEAS [Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo do Estado do Ceará]. Primeiro preciso falar disso, porque eu acredito que nada se constrói sozinho, e essas pessoas que amarram e apoiam isso são cruciais e fundamentais para a execução desse trabalho. Então tem uma equipe junto ao governo do estado, através do superintendente, Dr. Ramon, e todo mundo que faz parte da SEAS. Enfim, falando sobre a minha relação com o trabalho… Primeiro eu precisei conhecê-los, né, porque, quando a gente vai com um projeto pronto para aplicar em uma unidade como essa, a gente está cometendo ignorância, porque é tipo como colonizar o outro, é tratar o outro como o campo da experiência, e aqui não funciona dessa forma. Então precisei ter vivência com os meninos. Vinha alguns dias para essas unidades, essas unidades de meninos que cumprem medidas socioeducativas, conhecê-los, ver se eles se conectariam com esse tipo de linguagem de arte, que seria a pintura a princípio em tela, e ouvi-los mais do que falar. Fizemos uma experiência há quatro anos, eu estou há quatro anos nesse trabalho, e as respostas que me vêm dessa proximidade são muito ricas. Por exemplo, nesta série de quadros em que a gente desenvolveu, é falado muita questão de ausência, “por que é que eu tô aqui?”. Ausência da família, a negação dos espaços… A gente fez, antes do processo de pandemia, nós tínhamos saídas externas, e aí nós fizemos uma exposição que falava sobre o eixo familiar e foi dentro de um shopping aqui, da região, Cariri Garden Shopping, que também foi um parceiro maravilhoso para esse projeto. E lá eles ficaram muito receosos, assim, tipo, “mas o shopping é para mim?”, “não, professor, não vou”, “eu não vou porque, quando eu for lá, no shopping, as pessoas vão ficar me olhando”. Para a gente, é tão simples adentrar no shopping, né verdade? A coisa mais simples do mundo. Mas, para eles, era um bicho de sete cabeça, parecia um monstro que não deixava eles terem essa aproximação. E aí a gente vai questionando várias coisas: oportunidade que não tem, o meio onde vive, como vive, o que falta. Falta comida? Falta afeto? Falta respeito? Falta família? Tem meninos que saíram daqui já para ir para onde? Sem família, não tinha para onde ir, então essas aulas acabaram virando um ponto de fuga e também um ponto de denúncia, em que, nos quadros, ou nas pinturas, ou nos experimentos que temos aqui em sala, no campo da fotografia, ou da modelagem, ou da escultura, eles passam a falar coisas que eles viveram, que para psicólogo ele não fala, por exemplo, para polícia ele não chegou a falar, mas para mim eles passam a confessar. E, a partir disso, a gente pode direcioná-los para um caminho melhor, uma oportunidade segura e sobretudo conhecê-los. E, após essas aulas de artes dentro desse formato, a gente vê a disparidade. Antes, esses alunos eram um pouco mais ríspidos, medo do desconhecido… Hoje são meninos que parece uma escola, de verdade, tem toda essa relação do “bom-dia”, do toque, do “professor, como vai?”, “eu posso ajudar?”, “professor, posso lavar os pincéis?”. Então, há toda uma ausência familiar que ele não tem antes de entrar aqui, que aqui ele passa a desenvolver. E não tô dizendo que isso é uma coisa boa, porque a gente fica pensando que, por exemplo, esse afeto e as estruturas familiares deveriam ter antes de entrar aqui. O triste disso é que eles passam a desenvolver esse afeto aqui dentro, presos, e isso é muito emocionante, sobretudo para mim. Eu tinha várias dúvidas sobre vir trabalhar nesses espaços, mas a primeira vez em que eu pisei tem quatro anos e não quis sair, porque é onde eu vejo que a minha arte é útil, porque aqui eu não tô vendendo um quadro, aqui eu não tô falando sobre uma diva pop e que “eita, que massa que ela que ela me conhece” ou que “ela citou meu nome”. Aqui eu tô me conectando com uma parte da arte que ajuda o menino a dar “bom-dia”, que ajuda esses meninos a abraçarem, que ajuda esses meninos a terem outra perspectiva, que fora daqui eles não tem. Então é muito forte para mim esse trabalho na unidade, sabe? É onde eu vejo que eu não devo desistir disso que eu acredito. Então é bem complicado falar deles porque me emociona bastante, que a gente sabe o que é que falam desses meninos lá fora, e conhecer a realidade aqui de perto é muito complicado, sabe? [Wanderson se emociona e faz uma pausa]. Desculpa.

Andressa Monte: É um trabalho muito bonito, Wanderson, realmente tem que ter muito orgulho, porque você faz a diferença, está ali mudando uma realidade cruel e está dando uma perspectiva de futuro. E o carinho que você tem com a arte é muito bonito. Obrigada.

Pétala Brito: Wanderson, pegando esse gancho desse projeto maravilhoso que é socioeducativo e é muito bonito, você vê que as pessoas são transformadas pela arte. Você pensa em dar continuidade a esse projeto ou está pensando em trabalhar em outros projetos nessa área aqui, no estado do Ceará?

Wanderson Pereira: Na verdade esse projeto se estende em todas as casas de meninos que cumprem medidas socioeducativas no Ceará inteiro. Então eu não atuo somente em Juazeiro [do Norte], mas aí em Fortaleza também, nas casas que cumprem medidas socioeducativas, assim como em Sobral, por exemplo. Então esse projeto tem uma extensão.

Pétala Brito: Você pretende expandir mais ainda para outros estados, levar para outros lugares, ou só aqui mesmo, no Ceará?

Wanderson Pereira: Eu queria porque, de verdade, é muita coisa a ser feita, há muita coisa a ser atingida. Mas, quando a gente começa uma coisa, ela tem que ter começo, meio e fim. Então a nossa luta ela é uma luta que hoje se concentra em garantir uma continuidade desse menino quando sai da unidade. Então, se eu ensino ele a pintar, se aqui ele se enche de esperança com todo o trabalho da equipe que há aqui, de mediação, de aproximação, quando esse menino sai daqui, da unidade, ele precisa ter um trabalho, ele precisa trabalhar às vezes com uma coisa que ele descobriu que é bom aqui dentro. Então a luta hoje é por garantir uma continuação para isso, entende? Isso é muito complexo e envolve muitas pessoas. Então a hora de abandonar esse trabalho, de deixá-lo, é quando eu conseguir, junto com todas as pessoas maravilhosas que trabalham comigo, que me deram essa oportunidade, efetivar essa continuidade.

Levi César: Você destacaria o caso de algum desses meninos que saiu da unidade e foi ressocializado ou que conseguiu um emprego e, de certa forma, estabilidade ou até mesmo mudanças que você poderia relatar? Como você já iniciou a responder na outra pergunta: mudança de comportamento mesmo, se você consegue perceber isso, mudança no modo de ver, de enxergar a vida, modo de enxergar a realidade em volta dessas pessoas que são atendidas.

Wanderson Pereira: Já e assim… Ocorreu isso de forma bem engraçada, na verdade, porque teve um rapaz que passou por minhas aulas, que ele tem uma proximidade mais para o campo do abstrato, e aí nada de figurativo, né? Ele não tinha tanta proximidade, nenhuma técnica muito apurada para fazer questões figurativas, quadro de pessoas e esse tipo de coisa. Então eu sempre ajudava a ele nesse aspecto. E aí, assim que ele saiu daqui, ele disse: “Professor, eu tenho um carro velho”. Aí eles me pedem, normalmente quando saem daqui, para levarem uns quadros, quando a gente não destina essas peças para algum tipo de galeria. Então ele levou o quadro, e um belo dia ele passou por mim no carrinho fazendo frete lá pelo centro da cidade. Aí ele tava com uma tábua solta no carro, ele parou, aí ele pegou e disse assim: “Professor, dá para o senhor fazer uma placa bonitinha do jeito que o senhor faz de ‘pega-se frete’, meu telefone e o meu nome nessa placa? Que eu agora não vou fazer aquelas coisa mais, não”. Aí eu disse: “Dá!”. Aí eu disse: “Eu posso pegar a placa e levar para casa?”. Era uma tábua relativamente grande. Levei. A gente combinou, eu tava fazendo uma pintura comercial no centro, então ele passou pelo mesmo local que ele me encontrou e pegou a placa e, de vez em quando, eu vejo ele no carro rodando pela cidade. Então ele tá trabalhando. Não foi para o campo da pintura, mas foi para o campo do trabalho, o trabalho formal, o trabalho honesto, e me emociona bastante ver o carro com a placa — ave, Maria! — pra lá de colorida em cima desse carro. Ele vem de uma situação que era muito difícil para ele deixar os atos infracionais, e, quando eu vejo ele trabalhando — e você vê, porque a cidade é muito pequena — , então as pessoas estão sempre mudando, sempre carregando as coisas, e isso é muito comum de se ver. Aí eu vejo esse carro com essa placa colorida, então eu posso estar a uma distância imensa, eu sei que é ele. Há outros meninos que enveredaram para o campo da tatuagem e são tatuadores muito bons, aperfeiçoaram a relação do desenho, também nas minhas aulas e em outras aulas de artes que nós temos aqui, na unidade. Então está sendo muito gratificante, isso é a prova de que a ressocialização… Até discordo dessa palavra [“ressocialização”], porque, quando você fala “ressocializar”, parece um internato rígido que você tem que mudar sua figura, a sua natureza à força, porque senão coisas vão acontecer com você. Mas, de fato, a gente oportuniza, oportunizando essas situações e fazendo trocas com muita humanização. A mudança é possível, então nós temos esses exemplos. Esse menino que fez a tatuagem é outro exemplo, mas há outros. Tem rapazes que trabalham no Detran daqui, rapazes que trabalham vendendo remédio de porta em porta. Então foram meninos que, não pela aula… Engraçado, a aula é sobre arte, desenho e cultura, mas lá fora eles entenderam que eles podem traçar, ganhar de pouquinho em pouquinho, juntar um pouquinho que ganha, e não correr outros tipos de risco que a vida anterior a essa a que eles estavam expostos. Então isso é muito gratificante, é nisso que eu vejo que esse trabalho surte efeito, que esse trabalho realmente modifica. Porque não é sobre pintar um quadro novo e vender. É sobre traçar uma vida mais colorida, mas às vezes não é justa, às vezes não mais fácil. Mas perceber que há outros caminhos.

Andressa Monte: Wanderson, resumindo a sua trajetória de muralista, de um artista visual que foi reconhecido por grandes personalidades da música internacional. Como a sua trajetória pode ser uma influência para outras pessoas que querem fazer arte?

Wanderson Pereira: Eu acho que, no momento em que você pinta, as coisas que eu pinto, ou que você fala as coisas que eu falo, preciso também afirmar que eu sou um artista e um homem gay. Então, quando as pessoas veem todas essas relações em uma única pessoa, eu passo a facilitar a vida de outro jovem gay que tem o mesmo sonho que eu, que tem outro tipo de sonho, e a dizer: “Olha, dona de casa, eu tenho uma mãe que me aceita, eu tenho uma mãe que me respeita, eu tenho uma mãe que nunca me puniu por eu ser quem sou e nunca deixou faltar lápis de cor pra mim, que deixou quebrar o batom, que deixou eu riscar, tentar fazer um desenho na parede com os lápis de olho dela e que eu nunca apanhei por isso!”. Então eu acho que a força que eu tenho e a propriedade que eu tenho de dizer isso e não chorar mais também ajudam outras pessoas que sonham como eu. Quantos rapazes na minha cidade não estão na mesma condição de serem artistas tão incríveis quanto, mas têm medo? Quantas famílias olham para esse rapaz ou para essa moça que tá em casa, porque é muito difícil para mim dissociar as coisas… Eu sou um conjunto dessas coisas, na verdade, e isso está explícito no meu trabalho, está explícito na minha forma de vestir ou de mexer no cabelo. Então eu fico pensando… Eu não sou tão jovem mais, mas eu fico pensando na quantidade de jovens que têm seus sonhos esmagados ou que são “corrigidos” de uma forma tão brusca, tão feroz, que acabam virando adultos frustrados, com medo, medo de ousar, medo de tentar, medo de levantar de novo e acabam aí a vida artística, a vida pessoal, né? Por todo esse tipo de medo, então até um apelo que eu faço, sabe? Para que as mães incentivem, para que os pais incentivem, para que alguém próximo incentive, porque isso foi tão decisivo na minha vida, sabe? Esse negócio de meter a cara, de falar mesmo, bem como conseguir traçar um emprego, de conseguir manter conexões com as pessoas, por conta desse apoio, tão decisivo, que eu tive da minha mãe. Eu fico pensando nas pessoas que não têm isso. Então o Wanderson, hoje, construído por todo esse apoio e por todo esse processo de estrutura em casa, ele tá falando com vocês hoje porque tive tudo isso. Então, e quem não tem entende? Então, acho que… Alguém que vá assistir a essa entrevista. Não sei se vocês vão rodar ou colocar em algum Instagram, alguma coisa… É muito importante ouvir essa questão, porque aqui, na região [do Cariri], eu escuto muito: “Um dia eu vou chegar a ser como você”, “um dia a Taylor Swift também vai gostar da minha arte”, “um dia a Beyoncé vai ver meu trabalho, eu amo a Beyoncé, nenhuma que você falou, pintou, eu não gosto muito, não, mas da Beyoncé eu gosto. Eu vou pintar a Beyoncé!”. Então, assim, coisas pequenas que parecem bobas, mas que têm uma força tão grande, entende? E aí eu sempre me questionei: mas o que é que falta para “fulano” pintar a diva dele no muro, né? Se é só isso, o que é que falta? Às vezes falta tanta coisa. Apoio em casa, dinheiro, estrutura, escola, professores qualificados para a arte, que agucem esse sentimento mais aberto dos seus alunos. Então, assim, eu aqui, na cidade, né? Nessa… em uma escala “pequenininha”, eu fico muito feliz em já gerar esse tipo de discussão. Inclusive, as escolas aqui do Cariri, recentemente, o Jefferson até… eu acompanho o Jefferson, Jefferson também me acompanha nos stories, né? Então, em algumas escolas, nessa época de aula online, eu fui tema de algumas aulas, né? Sobre pintar na rua, pintar para modificar, quem é o Anderson Petrova? E foi muito engraçado. Teve gente perguntando, “E ele mora aqui mesmo? Perto de mim? Mentira, ele “tá” morando fora”. Não, eu moro aqui. Então, tudo isso é muito importante.

Jeferson: Como foi participar da pintura de uma ala do hospital da Madonna no Malawi [país no sudeste africano]?

Wanderson: Menino, foi uma coisa incrível, foi algo que eu fico meditando mesmo, sabe? Porque, primeiro, eu fui com essa vaidade, né? Porque estava indo pintar a convite da Madonna, para a Madonna, para as crianças do Malawi também, né? Entretanto, eu fui subir no avião com toda essa vaidade, né? Esse ego lá em cima, “poxa, agora a coisa vai, né?”. E há uma validação muito grande, diante de um convite desse com o nome do artista que participa. Então foi nisso, né? Na pura vaidade. Chegando lá, é muito complexo, porque a relação de vulnerabilidade em que as pessoas estão é muito delicada, né? E é um espaço que é muito cruel com as mulheres, com as meninas. Então eu baixei um pouco para a realidade. Não queria adentrar muito na relação dos pormenores bastante, porque, imagina, se você é convidado para ir para a casa de uma pessoa fazer um trabalho e ocorre alguma situação e te deixa desconfortável entre elas, você pode até resolver, tomar alguma iniciativa, mas, quando você sai de lá, a relação, a ética sobre isso é não falar sobre o ocorrido, concorda? Então, enfim, houve muitas coisas que mexeram comigo, a pobreza de fato é extrema, a fome é extrema, é toda uma relação de necessidades que, se não fosse Madonna e o trabalho do “Raise in Malawi”, as pessoas passariam maus bocados. Eu chorei bastante quando eu cheguei, porque eu pensei… Eu, que tava com toda aquela vaidade de chegar e pintar pra rainha do pop, olhei lá e vejo a situação em que as pessoas se encontravam, né? As relações de enfermidades ali, pessoas que estavam para morrer já, aí eu não pensei outra coisa. Se acabou minha vaidade, acabou meu ego, acabou tudo isso. Eu só pensava em como que minha pintura ia ajudar aquelas pessoas. Foi então que, tipo, eu estava pintando na sala, Madonna me escolheu para pintar uma das salas mais delicadas, que era a sala de descanso e cirurgia intensiva, e era a sala em que ficavam as crianças. Então ela escolheu uma arte do meu portfólio, ela olhou todo o meu portfólio virtual, assim como as minhas redes sociais, e ela encontrou uma arte de três anos atrás, que ela mais gostou, e pediu que eu reproduzisse nessas paredes. E aí, era uma floresta azul com alguns pássaros, né? Cerca de 64 colibris, em baixa luz, essa floresta acende. Diante de tudo que eu vi no Malawi e diante do meu processo de pintar, eu fiquei dizendo assim: “Mas como é que alguma coisa tão subjetiva vai ajudar as pessoas, vai mudar a vida das pessoas, vai ser só um painel na parede, né?”. Ignorância minha. Quando eu vi uma menina recebendo remédio no braço chorando, chorando, chorando, chorando, e a enfermeira contando uma história dos pássaros, da borboleta, que o passarinho ali era muito valente e que ele também iria tomar injeção, mas ele precisava que ela parasse de chorar porque senão ele ia voar, ia embora da floresta… A menina para de chorar, olha para mim e sorri, olha para as minhas mãos, vê que eu tô com a mão suja de tinta, sorri mais ainda. E aí, quando vê, ela já tem tomado o medicamento. E aí ela abraça a enfermeira e pede para ficar mais um pouquinho ali, me vendo pintar. Foi onde eu entendi o meu trabalho, ali. Foi depois dessa viagem que eu vim trabalhar nessas casas de meninos que cumprem medidas socioeducativas. Antes eu não tinha essa visão, antes a minha visão era muito de vender, de estar em galeria, era muito uma visão mais comercial do que uma relação social, tampouco conceitual. Então essa minha viagem à África, com Madonna, me fez entender um outro aspecto da minha arte e consequentemente eu me sinto uma pessoa útil com o que eu faço, né? Algumas pessoas dizem que é dom, outras pessoas dizem que a técnica, mas, se eu tenho isso, daquela viagem em diante eu decidi pintar e fazer isso pelo outro.

“Eu fui com essa vaidade, né? Porque estava indo pintar [um hospital no Malawi, país no sudeste africano] a convite da Madonna, para as crianças do Malawi […]. Chegando lá, é muito complexo, porque a relação de vulnerabilidade em que as pessoas estão é muito delicada, né? E é um espaço que é muito cruel com as mulheres, com as meninas. Então eu baixei um pouco para a realidade”.

Matheus: Wanderson, todos nós estamos passando ainda pelo período de pandemia que paralisou diversos setores da economia por conta do novo coronavírus. Como a pandemia afetou seu trabalho?

Wanderson: Ela afeta meu trabalho porque eu trabalho com pessoas, né? Então, antes do processo se agravar mesmo, nós estávamos a ouvir nos noticiários “um infectado, dois infectados”, normalmente em estados distantes do nosso estado, e ainda estávamos em atividades. E, rapidamente, isso se alastrou de uma forma alarmante. Então pessoas da minha cidade, pessoas muito queridas perderam suas vidas e isso inicialmente me deixou em pânico. Eu desenvolvi algumas relações de ansiedade por conta disso, mas rapidamente eu consegui entender, eu consegui tentar dissolver o nível de ansiedade em que eu tava, mas interrompeu todo meu fluxo porque eu me entendo como um artista que gosta de gente, gosto de pegar em gente, gosto de sentir o cheiro das pessoas, sentir o contato das pessoas, construir com elas. Eu estava em um equipamento público, na minha cidade, Crato, chamado CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] e nós estávamos revitalizando esse equipamento que tem cerca de 150 metros quadrados, quando tudo começou [refere-se à pandemia]. Dentro disso, tivemos que interromper, né? Então, nós mantivemos esse contato on-line. Então, eu passei dois meses terríveis porque eu tive uma crise de ansiedade absurda. Eu tenho asma, rinite e sinusite. Então, isso também me afetou de alguma forma. Estava obedecendo todos os critérios, né? Mas eu pensei: “O que é que eu vou fazer?”, “como eu vou me manter vivo?”. Porque, de verdade, a arte para mim é isso. Se eu não produzir, eu não me sinto totalmente vivo ou útil, na verdade, porque eu preciso estar produzindo, criando, rabiscando. Porque isso é parte do meu existir. E passei a pintar a casa inteira. Lá em casa, tá praticamente a Capela Sistina [templo católico no Vaticano]. Mas, com alguns cuidados, eu também fui mudando um pouco o visual da rua, fazendo esse trabalho, não mais coletivamente, mas sozinho, mas com cuidado e algumas coisas foram acontecendo. Então, costumo dizer que a distância das pessoas, no campo de vida real, palpável, infelizmente não pode acontecer, dadas as circunstâncias. Mas, no campo de vida virtual, o Wanderson Petrova e suas redes sociais, eles se aproximaram bastante. Então isso me ajudou a lidar com a ansiedade e me ajudou a produzir outro tipo de conteúdo. Eu comecei a fazer performances on-line. Sobre essa angústia, sobre o aspecto de mundo também, sobre alguma coisa que alguém conversava comigo no direct [conversa privada no Instagram] e eu transformava isso em arte. Inclusive, parte desse trabalho já está sendo feito aqui, no Centro José Bezerra de Menezes, no qual eu tenho ligado para algumas famílias aqui, do Cariri, e elas têm conversado comigo sobre as suas angústias dentro dessa relação da Covid-19 e da pandemia. E a gente tem trabalhado em arte sobre isso. Então, o que que vai acontecer também? Ouvindo essas histórias por telefone, eu discava um número e alguém atendia e me confidencializava algumas coisas: que perdeu alguém da família, que está passando algum tipo de necessidade, que gostaria de comer alguma coisa em específico. Para essas situações, eu consegui mandar comida para essas pessoas. Para outras situações, no caso da perda de algumas pessoas, eu e os meninos, meus alunos, nós passamos a desenvolver séries, pintamos os familiares mortos. Não que isso vá suprir a ausência da pessoa, mas é uma forma de dizermos também que nós nos importamos e que aquela dor ali é nossa. Então, eu estou lidando com esse momento da pandemia dessa forma.

Pétala: Quais são suas expectativas para quando acabar a pandemia, esse período pós, né? Do seu trabalho, de tudo quando voltar ao normal.

Wanderson: Eu recebi alguns convites via Instagram que eu não posso falar agora, por questões contratuais. Gente, de verdade, eu esperei a minha vida toda para dizer isso e agora tô dizendo. Achei chique, que eu via esse povo na TV dizendo: “Não posso falar por questões contratuais”. Que besteira! Mas é porque as ameaças e o negócio é sério, e eu não tenho esse tanto de dinheiro, não, para pagar a quebra de contrato, porque tem isso, né? Mas eu recebi algumas propostas, incluindo de alguns… Para a realização de alguns murais, esses ligados a um plano de marketing. Então, quando todo esse momento passar, eu vou me deslocar, não é aqui, no Brasil, é em outro país e é isso que eu posso falar.

Pétala: Vem coisa boa por aí! Muito obrigada, viu?

Wanderson: Espero. Obrigado!

--

--