Preciso escrever (?)

Yuri Silva
Entretantos incertos
2 min readJun 1, 2023
Foto de Sevde Şen (Pexels).

Sinto que as lembranças me somem da cabeça, preciso escrevê-las. Sinto que já não sei mais quem fui completamente, apenas uma visão macro e alguns fragmentos de momentos.

Sinto que em algum almoxarifado metafórico dentro das minhas sinapses confusas, existe um estagiário, no fim do expediente, jogando fora a papelada de inutilidades que já não lembrarei amanhã, e que se tornarão parte de um todo macroscópico que resumirá os meus dias apocalípticos.

Assim, sinto a necessidade de escrever. Um diário? Uma crônica? Anotações aleatórias em guardanapos que serão levados pelo vento ou esquecidos na terceira gaveta da minha cômoda, e então jogado fora na próxima faxina geral? Preciso escrever, minha cabeça já não dá conta de tantos eventos singulares.

Sento na cadeira de plástico, ponho meu notebook na mesa de plástico, escrevo palavras confusas que serão postadas neste mesmo texto, uma explicação metalinguística para o que faço agora, enquanto digito esta sentença. Minha cabeça mais uma vez embranquece. Preciso escrever, mas sobre o quê, exatamente? Sobre a necessidade de escrever e não saber um tema? É isto que faço enquanto adiciono mais palavras neste escrito, outrora inspirado e agora confuso, tal qual as lembranças que preciso escrever, mas não lembro.

Será que preciso mesmo escrever? Confiar nas minhas lembranças será necessário, de modo que me lembrarei apenas do que o filtro da minha cabeça permitir? Quantos textos serão necessários para abarcar as confusões, as futilidades e os desinteresses que enchem os meus dias? Quantas palavras precisarei gastar para me sentir satisfeito nesta missão de registrar o que me ocorre diariamente?

Que ônibus peguei hoje? Como era o moço que sentou ao meu lado e em que ponto ele desceu? Quanto tempo esperei pelo transporte, ouvindo as músicas da minha playlist? Quais músicas escutei? Por que estou perdendo meu tempo tentando lembrar de coisas que serão esquecidas no dia seguinte?

Preciso escrever sobre não precisar escrever. Aprender a valorizar o macro e as propriedades que emergem a cada escala de lembranças. Preciso reconhecer que um mar é mais que um número inestimável de gotas e que assim como nossa própria existência, nossas lembranças serão esquecidas, uma por uma.

E quem sabe no fim, após cada divisão celular, cada mutação silenciosa, cada nanocatástrofe bioquímica, algum carbono esquecido carregue esse mar de lembranças para um outro respirar, e que minhas memórias inexistentes se tornem algo inconsciente num novo reorganizar de moléculas. Que a playlist de espera do ônibus se transforme numa sensação, imperceptível, mas existente.

Preciso escrever uma pseudo-máxima, então: Um mar pode não ser um conjunto de gotas, mas cada gota é um pedaço de mar (mesmo que esta última frase não tenha sentido com o começo do texto, afinal, já esqueci do que queria dizer).

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