Relicário (não a música, mas quase isso)

Yuri Silva
Entretantos incertos
2 min readFeb 8, 2021
Foto de samer daboul no Pexels

Guardei minhas lembranças nesse relicário chamado de peito. Coitado, quase parece um túmulo com indistintos epitáfios. Abro-o vez por outra, em momentos de tormenta, seguindo um preciso ritual.
Primeiro, as músicas de outrora, o mpb melancólico, os clássicos que permeiam minha existência e que me trazem um agridoce de sentimentos.
Segundo, as esperanças fatigadas: As mensagens que não chegam, a ansiedade que se instala e permitem que o modelo chave-fechadura esteja completo. E lá se vão lágrimas e sorrisos, e músicas.
Guardo minhas lembranças nesse relicário que mais parece um toca discos, obsoleto pelo tempo, mas não de fato esquecido. Um negócio meio indie, uma alternativa. E lá se vão as traumas, misturados às letras que nada falam, mas tanto me representam.
E assim, dores viram dós, rés, e toda a escala cromática — Lady Gaga mandou lembranças. E assim, quem sabe ainda sou uma garotinha, perdida num mundo ao contrário e imperceptível por quase todos ao redor. E assim, sou transportado a mundos onde Plutão já foi planeta, visitados por pequenas Evas nascidas a dez mil anos atrás.
E assim, na playlist cansada desse relicário imenso de mim mesmo e vazio de amores, sou apenas a criança cansada, abusada e atormentada que já fui, mas ainda sou apenas uma garotinha, sozinha, esperando o ônibus da escola.
E assim, nesse relicário, posso descansar longe da vida adulta, perdida nessa terra de gigantes, onde todo mundo é uma ilha — erodidas e em processo de se perderem entre as ondas revoltas de um mar.

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