Almino Afonso para a Status (1978)

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Entrevistas com políticos em revistas antigas
31 min readFeb 26, 2019

ALMINO AFONSO RELEMBRA AS AVENTURAS, OS HERÓIS E OS ANTI-HERÓIS DO DIA EM QUE JANGO CAIU.
ENTREVISTA A FERNANDO MORAIS

Aos 49 anos de idade, o amazonense Almino Alvares Affonso não consegue disfarçar a ponta de orgulho por ter vivido uma das mais fulgurantes — e fulminantes — carreiras políticas do Brasil nas últimas décadas. Eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, pelo Estado de São Paulo, aos 29 anos, ele chegaria pouco depois à liderança do PTB na Câmara Federal. Seu segundo mandato federal seria interrompido por seis meses, em 1963, por um convite que lhe fizera o presidente João Goulart para assumir o Ministério do Trabalho. A segunda interrupção seria definitiva: na tarde de 9 de abril de 1964 o deputado Rubem Paiva o informava da assinatura do Ato Institucional n° 1, acompanhado de uma centena de cassações de mandatos e de direitos políticos. Na área parlamentar seu nome vinha em primeiro lugar. “Talvez fosse a ordem alfabética”, brinca Almino Affonso ao lembrar-se da época, “pois até na Câmara meu nome vinha sempre em primeiro lugar”. O brilhante tribuno formado nas arcadas centenárias da Escola de Direito do largo São Francisco, em São Paulo, sairia da cena nacional por exatos doze anos e três meses. Nesse longo período de exílio, Almino Affonso passaria pela Iugoslávia, Uruguai, Chile, Peru e Argentina, num périplo que ele próprio denomina, hoje, de “uma espécie de curso intensivo de golpes de Estado”. No exterior ele deu aulas em universidades e dirigiu escritórios de organizações internacionais, como a OIT e a FLACSO, na Argentina. O retorno discreto ao Brasil ocorreria em agosto de 1976, “sem pedir autorização a ninguém”. Para toda uma geração que mal o conheceu, Almino Affonso ressurgiu, nos últimos meses, através de uma coluna semanal, voltada para a reflexão política atual, publicada na seção Tendências e Debates, do jornal Folha de S. Paulo. Ou, para alguns poucos privilegiados, através dos escassos e brilhantes pronunciamentos públicos que vem fazendo — como o discurso de homenagem à atriz Lélia Abramo, no dia de sua posse no Sindicato. dos Artistas de São Paulo. O trabalho na banca de advocacia em São Paulo e a febril atividade política voltada para a criação de um novo partido político têm-lhe deixado pouco tempo livre. É nessas horas que Almino Affonso datilografa os originais de um dos três livros que pretende publicar em breve, sobre a sua experiência como político e exilado. O primeiro deles tratará do período pré 1964. Nesta entrevista a Status, Almino Affonso fala dessa época, de seus doze anos no estrangeiro e de seus planos políticos para o futuro.

Status — Alguns políticos e historiadores têm-se dedicado, nos últimos meses, a uma revisão histórica do governo João Goulart. Sabe-se que o senhor, que até agora não se havia pronunciado a esse respeito, está preparando um livro sobre o fim do governo Goulart e sobre seu exílio. Como é que, hoje, o senhor vê aquele período da vida brasileira?
Almino Affonso — Tenho procurado evitar falar de 64. O clima emocional ainda é grande, muitos dos personagens se entrecruzam no dia-a-dia da vida brasileira, e não é fácil, portanto, ter isenção de análise. Como eu acho que o importante é abrir o espaço político que assegure a retomada do processo democrático, sempre me pareceu adiável conversar sobre essa fase que eu reputo como um divisor de águas na nossa história contemporânea.

Quando o presidente João Goulart assumiu, onde o senhor se encontrava?
Eu era o líder do PTB na Câmara Federal. Todos sabem que o Jango chega à presidência no bojo de uma crise que se seguiu à renúncia do presidente Jânio Quadros. Jango estava na China, em missão do governo brasileiro, quando foi surpreendido pela renúncia até hoje inexplicável do presidente Jânio Quadros. A partir daí veio o pronunciamento dos três ministros militares, que se opunham a que ele assumisse a presidência. Em seguida vêm as manifestações políticas, a favor e contra a posse, até que finalmente a resistência, a partir do Rio Grande do Sul, liderada pelo governador Leonel Brizola, e logo apoiada pelo III Exército, comandado então pelo general Machado Lopes. Isto abriu a possibilidade de que Jango pudesse assumir a presidência, já como uma transação que foi a instauração do regime parlamentarista. Eu era líder do PTB na Câmara e participei diretamente da resistência ao que eu chamava de “golpe branco”.

Por que “golpe branco”?
O que na oportunidade fizeram no Congresso Nacional foi uma espécie de antecipação do que ocorreria em 1964. Temiam que, com a presença do presidente João Goulart na chefia do governo, as forças populares tivessem um maior âmbito de expressão.

Na sua opinião, de que decorria esse temor? Da trajetória política de Goulart, de suas ligações com o sindicalismo?
Pode haver vários tipos de interpretação. Um deles, sim, remonta a isso que você fala. É sabido que o Jango, quando ministro do Trabalho do último governo de Vargas, logrou a concessão de uma revisão do salário mínimo da ordem de cem por cento, criando um impacto muito grande no meio do empresariado. Ademais, na época, se acusava o jovem ministro do Trabalho de vinculações com Perón, com pretensões de instaurar aqui uma república sindicalista. Então o nome de Jango já vinha com vetos por parte de certos setores mais conservadores da vida política brasileira, de longa data. Mas esta seria uma análise parcial. Porque eu estou convencido de que um outro veto, maior, incidia sobre ele, cujas raízes explicativas estariam na própria resistência a Vargas. Enfim, era o velho udenismo que se mantinha com uma dupla cara: a defesa das liberdades democráticas e a sua extraordinária capacidade conspirativa. Se quisermos alcançar uma síntese através de nomes, teremos Adauto Lúcio Cardoso e Pedro Aleixo, de uma lado, e do outro, Carlos Lacerda. Esse entrelaçamento de posições da UDN frente ao getulismo é conhecido. E o Jango herda esse tipo de resistência. Veja que 64 se dá, com tudo o que ele significa, precisamente dez anos depois que os setores mais conservadores do país buscaram, sob a liderança do Lacerda, instaurar um regime de exceção sob o pretexto de impedir a manutenção do trabalhismo-pessedismo (diga-se de passagem que à época já era candidato à presidência o governador de Minas, dr. Juscelino Kubitschek). E se queria também, em termos de política econômica, dar uma volta de 180 graus na política estabelecida no último governo Vargas, sobretudo, caracterizada pela intervenção do Estado nos setores fundamentais da economia, buscando um tipo de desenvolvimento econômico autônomo. Exemplos: desde Volta Redonda, ainda no Estado Novo, até a Petrobrás, já no último período Vargas. e até mesmo a Eletrobrás, que só lograria ser aprovada no governo João Goulart.

Romanticamente, nós achávamos, em 64, que a maioria do país apoiava o regime…

Mas, apesar dos obstáculos, Jango chega finalmente à presidência, em 61. Qual foi, a partir daí, a sua participação no governo e nas negociações políticas feitas por ele?
A resistência que nós travamos no Parlamento. contrária à instauração do sistema parlamentarista, resultava da clara consciência de que se buscava. através desse “golpe branco”, impedir que as forças sociais pudessem outra vez emergir, criando condições para avanços políticos que os setores conservadores temiam. Parece evidente que a acusação que havia contra o vice-presidente João Goulart, de que ele era comunista, não resistia a uma análise séria. Sabidamente ele era um dos grandes fazendeiros deste pais…

O senhor consegue identificar o momento em que percebeu que o regime teria o fim que tece?
Essa é uma coisa curiosa. Se alguém se detiver a fazer levantamentos de discursos no Congresso Nacional, ou de declarações à imprensa, naquela época, a constante era a denúncia contra um golpe em marcha. Está certo que em determinado momento também os setores conservadores acusavam o Jango de estar organizando um golpe. Talvez nunca se tenha falado mais em golpe neste país do que naquela quadra. Era perceptível que marchávamos para um impasse. Eu próprio, em meus discursos, analisei essa perspectiva e tantos outros fizeram igual. Mas algo que nos escapava, ou para o que não nos detínhamos o suficiente, era a própria análise da correlação de forças reais da sociedade. E por forças reais da sociedade eu quero referir-me àquelas organizadas, com capacidade de intervir eficazmente. De certa maneira, romanticamente, nós acreditávamos que as grandes maiorias do pais apoiavam um regime que, não obstante erros, desacertos, problemas econômicos refletindo-se no dia-a-dia de cada um, era um governo que levantava bandeiras de reformas sociais, abria espaços políticos para as grandes massas e, publicamente, se vinculava a esses interesses sociais. Imaginar que havia um corte entre o povo e o governo, a mim me parece falso. É certo, entretanto, que camadas médias, sensibilizadas pela acusação constante de que a desordem estava instaurada no país, e pelo temor de que estivéssemos à borda de uma tomada do poder pelos comunistas, foram-se bandeando para a proposta política dos setores conservadores. Mas, ou muito me engano, ou diria que, se houvesse sido convocado um plebiscito para dizer da opinião majoritária da nação, a favor ou contra a manutenção do governo João Goulart, eu continuo achando que a resultante seria favorável.

E por que isso não aconteceu?
Ocorre que essas massas não estavam organizadas. Não havia um partido político com uma efetiva militância popular, capaz de ser, em momento de crise, o canalizador dessas forças sociais. O que se tinha era um estado de espírito difuso, milhões de cidadãos que não se interligavam através de uma proposta orgânica. Por outro lado, havia uma impressão generalizada, nos setores ligados ao governo, de que as Forças Armadas, no conjunto, defenderiam a ordem constitucional. Lembro-me de muitas conversas com o presidente João Goulart e recordo que ele sempre teve, a esse respeito, unia confiança muito grande. Inclusive pelo relacionamento pessoal que ele mantinha, estreito, com alguns dos principais chefes militares de então.

Nomes?
Basta lembrar o próprio general Amaury Kruel, naquela oportunidade comandante do II Exército, que era compadre do presidente João Goulart, era padrinho de João Vicente, filho mais velho de Jango. Por todos esses elementos, até de caráter afetivo, o que me fica de lembrança era que o presidente tinha tranqüilidade de que, em termos preponderantes, as Forças Armadas tenderiam a manter a ordem democrática.

Mas, se a conspiração já era quase pública, estava nas ruas, não haveria aí um excesso de confiança do presidente, algo beirando a ingenuidade?
Estou tentando exatamente fazer a síntese entre uma percepção racional de que o golpe estava em marcha e uma atitude psicológica que não levava às conseqüências esse tipo de percepção. Talvez se possa improvisar uma conclusão. Nós, no Brasil, nos relacionamos predominantemente em termos ‘pessoais. As divisões nitidamente ideológicas não são uma característica geral da sociedade brasileira. Àquela época menos ainda. Suponho que o presidente João Goulart, em grande medida, repousava na idéia de que, ao fim e ao cabo, as relações pessoais prevaleceriam sobre as diferenças já então marcadamente ideológicas que se colocaram na conjuntura política de 1964.

Além do general Amaury Kruel, o senhor se lembra de outros chefes militares com quem o presidente Goulart tivesse boas relações pessoais?
Eu me recordo, por exemplo, do general Justino Alves Bastos, que na época era comandante do IV Exército, no Recife, e que sempre manteve com o presidente Goulart relações mais cio que cordiais. E, se a memória não me falha, até o último minuto, em diálogo telefônico com Jango, Justino reiterava sua lealdade a ele.

E sua participação pessoal na agonia do regime? Repito: quando foi que o Jango confiava muito nas suas ligações afetivas. Inclusive com lideres militares senhor percebeu que o regime seria deposto?
Para ser franco, foi no último instante, quando os fatos já estavam na rua. Eu havia ido passar a Semana Santa com meus velhos pais no extremo Norte do Brasil. Vim, portanto, de lá, já em seguida à crise dos marinheiros, quando era perceptível que o problema da quebra da hierarquia militar havia aprofundado mais ainda a crise. Naqueles dias que se sucederam à insubordinação dos marinheiros, eu diria que se sentia no ar o que estava por vir. Mas, de nenhuma forma estava claro que a resultante seria a que foi. Algo, por exemplo, que eu em nenhum momento revelei publicamente: eu me recordo de que, no dia 31 de março, fui pela manhã à agência do Banco do Brasil que havia na Câmara Federal e me surpreendi com as dezenas e dezenas de parlamentares que fervilhavam pelos corredores. Era tão fora de propósito aquele número tão grande de parlamentares àquela hora que, obviamente, me detive a indagar, de um e de outro, sobre o que ocorria. E todos me falavam do levante de Minas.

A que horas isso ocorreu?
Mais ou menos às 11 da manhã. Voltei para casa, telefonei para o senador Artur Virgílio Filho, que era líder do PTB no Senado, contei-lhe do levante e ele, por igual, se surpreendeu. Não sabia nada. Convidou-me então a ir ao seu apartamento, que era em frente ao meu, e de lá, na minha presença, telefonou para o presidente João Goulart, que estava no Rio. Já então para pedir-lhe instruções sobre como ele, seu líder no Senado, deveria comportar-se na sessão da tarde, a respeito de um tema que ultrapassara os limites da rotina. O presidente acalmou-o, dizendo que tudo não passava de “boatarias”. O senador insistiu em que eu tinha ouvido na Câmara o que estou dizendo agora, e o presidente chamou então o general Assis Brasil, chefe de sua Casa Militar, e que estava na sua sala. Interrompeu a conversa com o senador Artur Virgílio, contou os fatos ao general e indagou-lhe sobre a procedência do que ouvira. Assis Brasil respondeu que era uma movimentação rotineira de tropas em Juiz de Fora. Falou em voz suficientemente alta para que o senador, do outro lado da linha, ouvisse a explicação. E lhe disse o presidente: “Estás ouvindo, Artur? Não há nada. Podes ficar tranqüilo, e qualquer tipo de observação que surja a esse respeito, deves dizer o que estás ouvindo de mim”. Fui para minha casa tranqüilo. Cheguei à Câmara às 3 da tarde, e ela fervia. Ouvi de novo o que para mim eram rumores e dei o depoimento que estou dando aqui. Lembro-me de que o deputado Carlos Murilo, de Minas, sobrinho do então senador Juscelino Kubitschek, puxou-me pelo braço para uma salinha reservada e me indagou sobre se de fato eu dizia aquilo como uma política do governo de evitar um alarma enquanto ele buscava controlar a situação, ou se por acaso o governo pensava mesmo aquilo que eu dizia. Respondi que, até onde eu podia saber, era aquela a informação que o governo tinha.

O primeiro capítulo do seu livro, intitulado Da Tribuna ao Exílio, descreverá exatamente o momento em que, no Congresso, o senhor soube que São Paulo aderira ao levante militar. Como foi isto?
Os fatos que acabo de narrar ocorreram na primeira hora da tarde. A Câmara continuou reunida, as notícias eram desencontradas: falava-se que tropas do Rio haviam marchado para deter o avanço das tropas que vinham de Juiz de Fora comandadas pelo general Mourão Filho. À noite tivemos uma sessão extraordinária num clima tremendamente tenso. Havia uma verdadeira guerra de informações de lado a lado — muitas delas, saberíamos depois, eram falsas. Mas eu tenho bem preciso como o momento de corte entre as perspectivas de manutenção da ordem constitucional e o triunfo do movimento militar, exatamente os primeiros minutos do dia 19 de abril.

O senhor fazia um discurso duríssimo, não?
Eu fazia um discurso de crítica contundente ao levante de Minas e uma instigação aos compromissos democráticos dos partidos tradicionais como a UDN e o PSD. Mas nesse instante percebi que vinha do fundo do plenário um conjunto de parlamentares, tendo à frente o deputado Costa Cavalcanti, coronel do Exército, e cujo papel na trama conspiratória foi extremamente importante. Ele vinha à frente, mãos para o alto, dando vivas a São Paulo, gesto imitado pelos que o seguiam. Vários outros parlamentares da UDN e do PSD se levantaram e se confraternizaram. A manifestação cresceu. Percebi nitidamente que era o começo do fim, porque até então o comportamento do general Amaury Kruel se mantinha, até onde sabíamos, comprometido com a manutenção do regime constitucional. Eu me recordo de que recebi um bilhete do deputado Bocaiuva Cunha assinalando que efetivamente o II Exército aderira ao movimento militar. Pareceu-me evidente que já então não nos sobravam forças para impedir o triunfo dos que se levantaram em armas.

E o presidente, onde se encontrava?
Na manhã de 1° de abril, em torno de 11 horas, o presidente chegava a Brasília. Vinha de um Rio de Janeiro que era uma cidade ocupada. Segundo soubemos depois, ele conseguiu sair do Palácio das Laranjeiras poucos minutos antes que chegassem lá alguns tanques, o que provavelmente teria significado a sua prisão. Chegou e foi para sua residência, para a Granja do Torto. E mandou chamar os então líderes do PTB na Câmara e no Senado, deputado Doutel de Andrade e senador Artur Virgílio Filho, a mim, ao deputado Tancredo Neves e ao deputado Temperani Pereira. E conosco se pôs a discutir o que fazer e o que não fazer.

E qual era o estado de espírito de Goulart?
Eu diria, tanto quanto é possível ser fiel, que era de derrota. O presidente chegava tresnoitado, com a fisionomia extremamente cansada, a barba crescida, o terno amarfanhado, a voz rouca, enfim, uma fisionomia deprimida e sem condições de transmitir entusiasmo, confiança. Atravessamos a tarde toda em discussões intermináveis e sem muita clareza sobre o que fazer.

Havia alguma perspectiva de apoio de militares fiéis ao regime?
Tinha-se apenas a notícia de que o general Fico, que comandava a área militar de Brasília, assegurara lealdade a Jango. O presidente estava decidido, entretanto, a ir para o Rio Grande. Ele confiava, sobretudo depois de ter enviado para lá o general Ladário Telles, que poderia repetir a Crise da Legalidade, de 1961. De um de nós partiu a observação de que Jango não podia sair sucessivamente do Rio e menos ainda da capital do país, sem dizer uma palavra a nação. Então ele nos autorizou a redigir um texto, que terminou sendo composto a quatro mãos, pelo deputado Tancredo Neves e por mim, que o datilografei lá mesmo, na Granja do Torto, com algumas contribuições isoladas dos demais presentes. O texto, sem querer, ou talvez pela influência do próprio deputado Tancredo Neves — e este é um dado para análise psicológica — repetia incrivelmente o clima da Carta-Testamento de Getúlio Vargas. A tal ponto que interrompi a tarefa datilográfica, a certo instante, e disse : “Afinal descobri o autor da Carta-Testamento”. O deputado Tancredo Neves deu uma gargalhada solta e prosseguimos. Terminada essa operação, o presidente gravou esse texto. Mas sua voz estava tão sumida, tão sem alma, que o texto, que era uma conclamação à resistência democrática, ficou assim como uma espécie de “adeus às armas”. Após gravar o texto ele recebeu um chamado do Rio Grande. Era o general Ladário Telles, que insistia para que ele fosse para lá. Porque à medida que chegavam as notícias das várias regiões do país a respeito de adesões ao movimento militar, caía, obviamente, a capacidade de manutenção do III Exército.

A conclamação à resistência, lida tão sem alma por Jango, soou como um adeus às armas

E como foi a partida de Goulart para o Sul?
O presidente se comprometeu a ir imediatamente, mas na verdade nós só chegamos ao aeroporto às 8 e 30 da noite. Havia um avião preparado para que o presidente partisse, o avião mais veloz que se tinha à época, o mais moderno da Varig, um Coronado. Estávamos lá vários parlamentares, e me recordo bem do que Jango nos disse, ao se despedir. Ele supunha que se daria, em seguida, uma batalha parlamentar pelo impeachment. Ele disse-nos: “Resistam 48 horas à batalha parlamentar, que nós estaremos de volta”. O presidente e praticamente todos os seus ministros, que o acompanhavam, entraram no avião. Em poucos instantes o aeroporto estava vazio. Ficaram lá, esperando o aparelho decolar, apenas três cidadãos: os deputados Tancredo Neves, Bocaiuva Cunha e eu. Valdir Pires, que era consultor-geral da República, e Darcy Ribeiro, que era chefe da Casa Civil, saíram apressados para o Palácio do Planalto porque tinham tarefas a cumprir, e os demais voltaram às suas respectivas casas. Aí chega, atrasado, o general Fico, de fisionomia cerrada e distante, e apenas nos cumprimentou. Não havia ânimo para confraternizações. A pista estava ocupada militarmente, as horas passavam e o avião não decolava. Começou a chover uma chuva miúda e nós a olhar os relógios, tensos. Os oficiais nos diziam que era uma pequena pane, e que o avião decolaria logo. Às 11 e 30 da noite, duas horas e meia após o presidente haver entrado no avião, eu sentia uma dor nervosa no estômago, não resisti e disse aos companheiros : “o presidente vai ser preso aqui, agora. Este avião não pode estar em pane pura e simplesmente”. Saímos os três para tentar chegar ao avião e fomos barrados pelos militares. Lembro-me da altivez com que o deputado Tancredo Neves enfrentou as baionetas que brilhavam contra nós, fazendo um protesto violento. O oficial que comandava aquela tropa assegurou-nos a aproximação do avião. Estávamos à beira da escada, para subir e levar ao presidente a nossa inquietação, quando, coincidentemente, naquele instante Jango descia do avião. Não quero cair em psicologismo, mas algumas vezes me tem ocorrido a lembrança deste episódio, e eu sempre me pergunto que virtude de paciência e esta, que, numa hora como aquela, fez com que o presidente ficasse duas horas e meia detido dentro de um avião, quando sabia que a sorte do regime para não falar na sua própria estava sendo jogada na sua chegada ao Rio Grande.

Foi aí que fizeram a tal troca de avião, impedindo que ele viajasse num avião excessivamente veloz?
Exatamente. Àquela hora da noite ele se transfere para um Avro, um avião sabidamente lento, que deveria levar aproximadamente o triplo do tempo para chegar a Porto Alegre. Foi isso o que vi de perto. O mais eu soube pela leitura dos jornais.

Aí termina sua participação ao lado do presidente João Goulart. Mas o senhor, o que fez em seguida? Saiu de Brasília?
Do aeroporto fomos para a casa do deputado Bocaiuva Cunha. Logo chegaram outros parlamentares. Éramos talvez uns dez ou quinze deputados, cansados, buscando entrever o rumo das coisas. Não sabíamos ao certo qual seria o próximo passo das forças insurgentes, mas não levamos muito tempo na incerteza, porque à 1 da manhã o telefone tocou: eram secretárias do Congresso Nacional, convocando-os a todos para uma sessão extraordinária àquela hora. Vale dizer que os setores civis envolvidos na conspiração continuavam com o poder de iniciativa. Com o chamado, imaginamos que era o começo da tal “batalha parlamentar” a que se referia o presidente. O Congresso lotou rapidamente e assumiu a presidência o senador Auro de Moura Andrade. Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, teve o bom senso de remeter um ofício ao presidente do Congresso, em que comunicava que o presidente João Goulart estava em viagem entre a capital federal e Porto Alegre portanto em território nacional para prevenir eventuais análises de leguleios. Foi lida a carta e, não obstante isso, sem nenhum outro tipo de exórdio, o presidente do Congresso Nacional declarou que, se encontrando vago o cargo do presidente da República, ele convocava, nos termos
da Constituição, o presidente da Câmara Federal, deputado Ranieri Mazzilli, para assumir provisoriamente, até que se processassem eleições, à presidência da República.

Como os parlamentares fiéis a Goulart reagiram?
Foi um raio sobre o Congresso. Isso nenhum de nós esperava. Por mais que tivéssemos imaginado como se desenvolveriam os fatos, essa hipótese não havia ocorrido a ninguém. Uma vez mais me lembro do deputado Tancredo Neves, que teve nesse instante ímpetos de revolta e de protestos tão violentos como ninguem. Na verdade, o Congresso todo se transformou num imenso turbilhão naquela hora. Nenhum de nós pôde falar, porque não nos foi dada a palavra. A sessão foi encerrada de imediato e o presidente do Senado começou a descer a pequena escadinha que separa a mesa do plenário. Auro de Moura Andrade descia cercado pelos guardas de segurança do Congresso. Lembro-me bem de que o deputado Rogê Ferreira, num ímpeto incontido, conseguiu romper aquela barreira humana e deu uma cusparada no senador Moura Andrade. A sessão é encerrada, nós voltamos às intermináveis reuniões. Naquela mesma madrugada o deputado Ranieri Mazzilli assumiu a presidência e a partir daí foram dias de uma lenta agonia, em que os protestos na Câmara eram abafados pela sucessão repressiva que se instalava no país em todos os níveis tanto de lideranças sindicais, estudantis e populares em geral, quanto dos quadros políticos de primeira grandeza, como o governador Miguel Arraes, de Pernambuco, o governador Seixas Dória, de Sergipe, o ministro Abelardo Jurema e várias outras figuras.

O deputado Rogê Ferreira rompeu a barreira humana e deu uma cusparada no rosto do Auro de Moura Andrade

Mas como ficou o cotidiano de pessoas como o senhor, estreitamente ligadas ao regime deposto?
Nos dias seguintes, nós continuávamos indo ao Congresso. Os fatos não pareciam definidos. Não era claro o rumo. Parecia estar sendo testada uma fórmula à maneira do golpe branco de 1961, que resultara no parlamentarismo; enfim, algo indefinido, como se as forças dentro do próprio grupo triunfante estivessem medindo os graus da nova ordem que iriam implantar. No dia 4, creio, eu vinha de uma reunião à noite quando assisti à chegada das tropas de Minas ocupando Brasília. Tanques, fuzis, metralhadoras, aquilo tudo rodando no silêncio da madrugada. Nessa oportunidade chegou-me um recado do presidente Mazzilli, de que os militares em Brasília pretendiam prender-me, embora eu continuasse na plenitude do meu mandato parlamentar. O propósito era de prender a mim e ao deputado Francisco Julião, que também permanecia em Brasília.

Foi então que o senhor saiu do Brasil?
Ainda não. Eu logrei que o vice-presidente da Câmara, deputado Afonso Celso, fosse ao presidente Mazzilli para saber até que ponto a informação era real, e o presidente mandou dizer-me que lamentavelmente era verdade, que queriam prender-me. E que ele não tinha a mínima condição de intervir. Então eu e mais dois amigos deputados nos retiramos de Brasília num aviãozinho e fomos para o sertão.

Nomes dos seus acompanhantes?
Lembro-me bem do deputado Rubem Paiva, que era como um irmão meu, e que morreu, como todos sabem, nestes anos de arbítrio. O outro era o deputado Bocaiuva Cunha. Fomos para o sertão e, lá de longe, eu ouvia o rádio e constatava que, apesar de tudo, o Congresso continuava funcionando, ainda que isto fosse mais uma sessão espírita do que um Congresso pleno de trabalho. Decidi, então, que era necessário voltar para Brasília. Não havia como explicar-me perante a coletividade política, já que o Congresso continuava aberto e não era pública a ameaça à minha pessoa. Tanto na saída de Brasília dias antes, como agora, no retorno, encontramos um aeroporto militarmente ocupado. Fizemos tudo graças a um plano realmente admirável do Rubem Paiva. Fui uma vez mais para a casa do deputado Bocaiuva Cunha.

Quem o convenceu de que era mais prudente sair do Brasil?
Às 5 da tarde recebi a visita do deputado San Thiago Dantas, homem de uma clareza impressionante, uma das inteligências mais admiráveis que conheci na vida. Ele fez uma análise da situação e previu as duas alternativas que poderiam dar-se nos próximos dias. Uma era a de que o próprio Congresso votasse a perda do mandato de alguns parlamentares. Nesse caso certamente nada me aconteceria. Mas a outra alternativa seria a ação dos próprios militares. E aí, dizia ele, se fossem até seis os parlamentares atingidos, eu poderia não estar incluído. Mas me disse com absoluta franqueza que se houvesse um a mais, com toda segurança eu estaria incluído. Foi a última conversa que tive com San Thiago Dantas, que morreu logo depois. Guardo desse encontro uma lembrança amiga e afetiva.

Mas o senhor não corria o risco de prisão?
Lembro-me de que ele me aconselhou: “Não se deixe prender. Um homem público não deve deixar-se prender. Opte pelo exílio. Você é um homem moço e, com absoluta segurança, o exílio para você há de significar um extraordinário avanço de caráter intelectual, político e reflexivo, que o amadurecerá, e do qual amanhã você há de se agradecer. Não imagine que o tempo será demasiado, nem tão curto. Calcule cinco anos”. Naquela época me pareceu um absurdo total passar cinco anos no exílio. Hoje sei que vivi exilado por doze anos e três meses.

E o senhor decidiu exilar-se?
Terminávamos essa análise quando entra casa adentro o deputado Rubem Paiva para nos dar notícia da assinatura do Ato Institucional n° 1 e das cassações já então realizadas. Eu estava incluído. San Thiago saiu apressadamente, foi-se e nunca mais o vi. Uma pequena reunião de amigos decidiu que eu deveria asilar-me de imediato. Tomei um carro e fui para a embaixada da Iugoslávia. Além da Iugoslávia, só dois países tinham embaixada instalada em Brasília: a dos Estados Unidos, que, além de não ter tradição de asilo diplomático, não era, na oportunidade, o lugar mais desejável. E a embaixada da França, mas já nos haviam informado de que “se chegássemos à França, o asilo sem dúvida nos seria dado”. Ocorre que estávamos a alguns milhares de quilômetros da costa francesa...

Como o senhor entrou na embaixada iugoslava?
A sede estava iluminada, como se fosse uma festa, mas já era uma preparação para o que viesse a ocorrer. Tinha vindo do Rio de Janeiro um ministro conselheiro especialmente para eventuais demandas. Abro um parêntesis para dizer que a Constituição iugoslava obriga ao governo conceder asilo político, é uma norma imperativa. Saltei um muro, já que os portões estavam fechados e ninguém atendia à campainha que eu batia. A partir daí foi uma sucessão de chegadas de brasileiros e de abraços. Cada abraço era uma espécie de triunfo de quem tinha logrado preservar-se. Ficamos lá cerca de dois meses. Só na manhã do dia 25 de junho é que, após receber o salvo-conduto do governo brasileiro, um navio cargueiro iugoslavo, chamado Bohjine, zarpou do Rio levando-nos para o exílio.

Quem viajava com o senhor?
Fernando Santana, Lício Bauer, Salvador Lossacco, Maria da Graça Dutra e Deodato Rivera, estes dois jornalistas, Alice Rivera, dona Beatriz Riff, esposa de Raul Riff e Lamartine Távora. E haviam ido de avião, antes de nós, os deputados Bocaiuva Cunha e Rubem Paiva e o secretário de Imprensa de Jango, Raul Riff. Levamos um mês de viagem do Rio de Janeiro até a cidade de Rijeka, a antiga Fiume, de Dannunzio, em pleno Adriático.

Qual a última lembrança que o senhor guarda do Brasil?
É do porto de Salvador, onde ancoramos nas vésperas de São Pedro. A noite vinha aquele vento que soprava da cidade para o mar. Salvador era uma festa de balões, que vinham voando e morriam no mar. Essa viagem, romântica, se quiserem, me marcava muito naquele instante, porque me dava a clara sensação de que era o fim de uma época, que eu entrevia naquele balão alegre que subia e em seguida morria nas ondas. O pitoresco da história é que enquanto o navio ficou lá fundeado por dois dias, uma pequena barcaça, cheia de soldados armados de metralhadoras, circundava em torno do barco noite e dia. Como para impedir que nós pudéssemos sair a nado e ocupar Salvador.

Então eu saltei o muro da embaixada da Iugoslávia, comecei a tocar a campainha e ninguém vinha atender…

O senhor viajou com a família?
Não, sozinho. Minha mulher ficou em Brasília com o quarto filho, que nascera enquanto eu estava na embaixada, no dia 12 de junho. Eu diria que já na viagem começou o fenômeno da desencarnação, quer dizer: da aceitação da nova condição de exilado. Lembro-me do quanto foi duro para mim deixar o Brasil sem recursos, com uma família de quatro filhos, aos 35 anos, rumo ao desconhecido. Ao chegarmos ao cais de Rijeka percebemos que estávamos
sendo esperados por dezenas de jornalistas, cineastas, repórteres de televisão. Uma recepção em grande, eu diria. Reunimo-nos para traçar o que deveria ser o nosso comportamento frente à imprensa de um país que nos recebia. Decidiu-se que eu deveria falar à imprensa que nos esperava, em nome de todo o grupo de exilados. Com a maior dignidade, esperamos que os jornalistas nos abordassem. O navio atraca, a imprensa o invade e, para nosso espanto, os jornalistas passavam por nós e buscavam alguém que não sabíamos quem. Até que percebemos, com absoluta clareza, que não éramos o objeto da curiosidade e do interesse da imprensa iugoslava. Eu mentiria se dissesse que recebemos isso com fleuma. Pelo contrário: foi um banho de água fria. É que havia nascido em alto-mar uma criança filha de mãe iugoslava, que voltava do exílio depois de muitos anos desde a Segunda Grande Guerra, quando triunfou a Liga Comunista de Tito. Esse era o objeto da curiosidade dos jornalistas, e não nós.

O que foi a experiência do exílio para um brasileiro que há tanto tempo nem ouvia falar de coisa semelhante e, especialmente, num país de costumes tão distintos dos nossos, como é a Iugoslávia?
Para que se tenha uma idéia do que é a Iugoslávia, basta lembrar que quando o presidente da República fala, ele é traduzido simultaneamente para dezenove idiomas falados em cinco Repúblicas. Lembro-me de um detalhe : em determinada oportunidade, visitamos a República da Eslovenia. Ao entrar numa livraria, vi uns livro de Jorge Amado, com enorme entusiasmo, com alegria patriótica por encontrar um livro de um cidadão brasileiro traduzido em esloveno. Comprei o livro e o dediquei ao nosso guia, que se chamava Sava. Para minha surpresa, ele disse : “Almino, eu conseguirei ler este livro tanto quanto você. Eu não entendo uma palavra do que está escrito aí”. Essa e a Iugoslávia.

E vocês sabiam o que estava acontecendo no Brasil, tinham notícias daqui?
Durante o trajeto pelo mar, nós acompanhávamos o Brasil dia a dia pelo rádio. À medida que o Brasil foi se afastando, e que nos aproximávamos da costa africana, a interferência das estações de rádio de países da África, já com batuques e atabaques, nos fazia lembrar do nosso sangue negro. E dia a dia também, víamos o Cruzeiro do Sul cair no horizonte, até afogar-se no mar. Aí percebemos que estávamos em outro mundo. Ao chegar a Rijeka, através do Riff, que tinha relações com a imprensa, podíamos receber, com enorme atraso, jornais brasileiros, que líamos integralmente. Para que você tenha uma idéia da hospitalidade, nós ficamos, em Belgrado, no mesmo hotel em que, um ano antes, nos hospedáramos, eu e minha mulher, como representantes oficiais do Congresso brasileiro. Devo dizer que minha passagem pela Iugoslávia não foi propriamente um exílio, mas um turismo sui generis, dividido meio a meio, entre a fantasia e a realidade. Não sabia exatamente se eu era um exilado ou se era um hóspede oficial, quem sabe, ainda com as graças do poder.

Quanto tempo o senhor ficou na Iugoslávia, e por que retornou à América Latina?
Fiquei na Iugoslávia mais ou menos uns três meses, e retornei porque os companheiros que estavam no Uruguai insistiam para que eu fosse para lá. Em Montevidéu estavam muitos deles, incluindo algumas das principais figuras cio regime deposto, entre elas o presidente João Goulart. Chegar ao Uruguai foi uma espécie de reencontro com a terra. Lá estavam, na época, aproximadamente mil cidadãos brasileiros exilados, a esmagadora maioria proveniente do Rio Grande do Sul. Havia um número grande de sindicalistas, de soldados, de cabos, sargentos, de homens do povo. Era um exílio diferente cio tradicional exílio brasileiro, das classes dominantes. Passei no Uruguai sete meses. O governo brasileiro protestou contra a minha entrada lá, alegando que ela havia sido ilegal, baseado na ausência de documentação. Foi sob pressão do governo que o então embaixador do nosso país lá, Pio Correa, de péssima memória para todos nós, levou o governo uruguaio a negar, pela primeira vez na sua história, a mim e deputado Max da Costa Santos, e lamentavelmente morto, o asilo era algo corrente e tradicional na vida uruguaia. Não logrei o asilo, me foi negada a residência e não me deram a prorrogação de turismo. Tive que bater em outra porta...

Como o senhor conseguiu entrar no Chile?
Eu contei com a diligência do meu velho amigo e caboclo do Amazonas como eu, o poeta Thiago ir Melo, que nessa oportunidade era adido cultural da embaixada brasileira em Santiago, e com a colaboração de dois asilados que chegaram lá antes de mim, os deputados Paulo de Tarso e Plínio de Arruda Sampaio. Do exílio todo, o período mais longo e provavelmente o mais rico de ensinamentos foi a passagem pelo Chile. Lá vivi oito anos. Cheguei quando estava no poder a Democracia Cristã, com o presidente Eduardo Frei. Ali me coube também viver em seguida a experiência do governo da Unidade Popular, presidido por Salvador Allende, por quem tenho a maior admiração e o mais profundo respeito. E ali assisti à tragédia do impasse, quando grupos minoritários, sem a necessária análise da correlação de forças, empurravam o processo político a uma radicalização para muito além do que era possível naquele instante no Chile. Não digo, de nenhum modo, que esses grupos sejam os responsáveis pela derrocada do governo de Salvador Allende. Hoje é plenamente conhecido que a CIA jogou um papel da maior importância na trama conspirativa contra o governo.

O senhor vivia no Chile na época do golpe?
No dia 11 de setembro de 1973, de minha casa, em La Reina, bairro de Santiago, eu pude ver os aviões picando sobre o Palácio de La Moneda e começando o bombardeio que terminou com a morte de Salvador Allende.

De minha casa, em Santiago, eu via os aviões picando sobre o palácio, bombardeando Salvador Allende

Por ser exilado brasileiro o senhor ou sua família sofreram algum tipo de perseguição?
Sofri o terror da tragédia chilena. Porque na verdade o clima era de pavor coletivo. Durante todas as noites, helicópteros sobrevoavam a cidade continuamente, com os focos de luz lambendo as casas e os jardins, à procura de eventuais resistentes. A metralha cantava pela rua e se multiplicavam os mortos às centenas. Eu mesmo, na Escola Latino-Americana de Ciência Política, da qual fui diretor, tive dois mortos, dois alunos. Um deles, representante dos alunos junto ao Conselho Acadêmico, foi encontrado crivado de balas, pelo único crime de ser militante, na Bolívia, de um partido denominado MIR, que coincidentemente era a mesma sigla do Movimento de Izquierda Revolucionária do Chile, sem que tivesse nada em comum com este. Mas nada pessoal sofri. Nem eu nem minha família. Ficou visto, entretanto, que era inviável permanecer em Santiago.

Terminava aí, então, mais uma etapa de seu exílio?
Nessa oportunidade recebi novo convite da Organização Internacional do Trabalho para realizar um estudo sobre reformas agrárias na América Latina, sendo designada como sede de trabalho a agência da OIT em Lima, no Peru, para onde parti um mês após o golpe no Chile. Minha família retornou ao Brasil, para onde eu esperava viajar tão logo vencesse o prazo de dez anos da minha cassação. E tudo parecia indicar que uma certa abertura política comportaria a volta dos exilados.

E como foi sua experiência peruana?
Lá eu vi um povo marginalizado, espectador, e um governo criador de transformações. Esse divórcio entre um grupo que realizava a revolução e a cidadania que recebia os resultados, doados, criou, a meu modo de ver, um impasse profundo. Porque, pelo menos nas cidades por onde pude andar, não vi nunca uma real vinculação, um apoio efetivo do povo àquele governo que realizava, sem dúvida alguma, do ponto de vista histórico, profundas transformações no Peru. Se no Chile eu tinha aprendido que não se deve avançar além do que se pode sem que isso seja uma sugestão à inércia no Peru eu aprendi algo igualmente importante: revolução se faz com o apoio das massas, ou não se logra fazer a revolução. Oito meses depois de chegar a Lima, terminei meu trabalho e fui para Buenos Aires, onde se reinstalara a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Mas eu não tinha, de novo, documentos para sair do Peru nem para entrar na Argentina.

Dessa vez como o problema foi resolvido?
É óbvio que eu saí de Lima e cheguei a Buenos Aires. Uma vez mais a imaginação criadora teve que funcionar. Depois de ter vivido lá o último governo de Perón,também da Argentina eu guardo uma lição: houve inequivocamente, por parte dos setores mais à esquerda, uma incapacidade de perceber o momento histórico argentino. Em lugar de se entregarem à árdua tarefa de organização das grandes massas, refluíram-se para um trabalho clandestino de guerrilhas armadas, num país onde há uma poderosíssima classe operária, capaz de protagonizar grandes feitos e grandes lutas, como já demonstrou no passado. E eu, que já assistira ao começo do fim da democracia no Uruguai, que tinha assistido, aqui, a nossa incipiente democracia que, manquejando, bem ou mal, havia sobrevivido dezoito anos, que vira a queda de uma das democracias mais sólidas da América Latina, a do Chile, e que chegara a um Peru já produto de um golpe de Estado militar, via ali, em Buenos Aires, o retorno dos militares ao poder na Argentina. É algo assim como um curso intensivo de golpes de Estado.

Foi aí que o senhor decidiu retornar ao Brasil?
Exatamente. Foi aí que alimentei outra vez essa esperança. Primeiro porque, de Buenos Aires, eu havia podido acompanhar mais de perto a realidade do nosso país. Todos os dias nos chegavam os principais jornais de São Paulo e do Rio. As bancas da Florida e da Corrientes vendiam o Jornal do Brasil, o Diário de S. Paulo, O Globo. Curiosamente não nos chegava O Estado de S. Paulo. Era evidente uma mudança significativa em termos de uma abertura política no Brasil, o que se refletia de maneira particular na imprensa, e também era clara uma recuperação do sentido de dignidade do Parlamento nacional. Os episódios dramáticos da morte de Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho haviam selado com seu sangue uma resistência nacional às violências da tortura.

Foi esse quadro que o animou a voltar?
Pareceu-me que havia condições políticas gerais para poder regressar, dispensando prévia concordância do governo brasileiro. Porque nas outras ocasiões em que pretendi regressar, era forçoso pedir um documento de viagem para regressar ao Brasil, já que eu não tinha passaporte.

O senhor tentou voltar quando vivia em que país?
No Chile. O documento nunca me foi outorgado, e sem documento eu tampouco podia comprar passagem de regresso, porque para isso era necessário o passaporte. Já em Buenos Aires, entretanto, graças a convênios existentes entre os dois países, consegui comprar a passagem mediante a apresentação da carteira de identidade.

Nosso novo partido não será um mero PTB. Ele deverá lutar para a construção de uma sociedade socialista

E o senhor ainda tinha a sua?
Eu não tinha precisamente uma carteira de identidade, mas tinha minha carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, que também tem validez como tal. E óbvio que houve dificuldades para que a companhia aérea reconhecesse esse documento como válido, mas o fato é que obtive a passagem e decidi regressar em agosto de 1975. No dia 31 retornei à terra, sem pedir autorização a ninguém, apenas avisando aos amigos que viria e que fizessem o possível para que a aterrissagem não fosse áspera. Devo confessar que não sei qual das duas emoções foi maior: se aquela que vivi na hora de ver que minha passagem estava sendo extraída ou se na hora em que o avião aterrissou em Congonhas. Porque em ambos os casos o coração disparou com uma violência tal que tive a impressão de que algo de sério podia acontecer.

Junto com o professor Darcy Ribeiro, o senhor foi o primeiro cassado do primeiro escalão a retornar ao Brasil. E, num espaço de tempo curto, voltou a circular pelo ambiente político com incrível desenvoltura. O senhor já previra isto?
Eu me considero um homem de vocação política. Não planejei nada e não posso concordar com você quando diz que eu tenha me transformado em uma liderança significativa. Recomecei a exercer minha atividade profissional de advogado e, pouco a pouco, em reencontros com quadros políticos de ontem e de hoje, fui me familiarizando com a situação nacional. Imagino que a minha presença, de algum modo, começou a existir no instante em que percebi com a clareza necessária que era urgente começarmos a discutir a problemática de novos partidos. Ao levantar esse tipo de debate, creio haver expressado algo que, difusamente, estava na consciência ou na percepção de muitos. Talvez tenha cumprido o papel detonador de um debate. Mas pude retomar uma função política a partir do instante em que aceitei escrever semanalmente na Folha de S. Paulo.

É verdade que o senhor, junto com outros políticos, está trabalhando na estruturação de um partido socialista?
A posição básica que sustento é a que me parece inerente a qualquer democrata. É necessário que tenhamos um sistema partidário que comporte a representação ideológica de todos os setores da sociedade, sejam eles quais forem. A partir dessa tese, que é básica, eu digo que é necessário nós pensarmos sobre um tipo de partido político que possa traduzir os anseios das grandes maiorias da população brasileira, quer dizer, dos assalariados em geral. Não me refiro a um partido meramente de popularidade. Isso nós tivemos no passado. O partido em que militei, por exemplo, o PTB, tinha irrecusável popularidade, o que não quer dizer que fosse um partido popular no sentido de ter militância popular.

Como o senhor pretende que seu partido resolva esses problemas?
É fundamental que ele seja um partido de estrutura interna democrática, sobretudo para evitar dois tipos de deformações que prejudicam enormemente o desenvolvimento de um partido popular que são o caudilhismo e o intelectualismo. E para ser coerente com seu propósito de representar os interesses populares, esse partido deve propor, historicamente, a construção de uma sociedade socialista. Eu não tenho defendido que o partido deva chamar-se PS. Acho que esse problema deve ser decidido por quantos, em seu momento oportuno, componham o congresso constituinte desse partido. O que eu sustento é que ele não pode deixar de ter uma visão histórica, sob pena de perder-se no dia-a-dia das lutas e cair nas velhas práticas populistas.

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