Delfim Netto para a Status (1977)

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Entrevistas com políticos em revistas antigas
18 min readApr 5, 2019

Paris — Ligo para a embaixada do Brasil: — O embaixador está? — Sim, o senhor ministro está. Quem deseja falar com ele? É assim. Não é o embaixador, é o ministro. Não é o homem daqui, ao exterior, é o homem daí, unha e carne com o dia-a-dia nacional. O homem integrado numa jogada política, hora a hora, minuto a minuto. O homem do poder, pelo poder, para o poder. E o poder, já ensinou a História, é a crônica do permanente instante. Como sabia Napoleão, insuperável guru destas plagas. Não sei por que, talvez exatamente por isso, é em Napoleão que penso, às 8 da manhã fria desta disfarçada primavera parisiense, quando entro no número 5 da rua Amiral D’Estaing, residência do embaixador do Brasil na França. No gabinete amplo, de livros até o teto, está ele como um universitário inglês, daqueles dos filmes de antigamente, uma ilha de sabedoria cercada de papéis por todos os lados. De sabedoria, não sei. Mas certamente de informação. Encontro-o de livro na mão: The Concept of Equality in the Writings of Rousseau, Benthram, and Kant, by Alfred T. Williams, 1976. Quem é mesmo este homem discretamente gordo, bem mais magro do que o apelido amigo dos amigos — O Gordo -, que está lendo O Conceito da Igualdade, numa fria manhã de Paris, 8 horas de sábado? Nasceu em São Paulo no dia 1.° de maio de 1928. (- Condenação ao trabalho? — Aparentemente. Mas também a liberação pelo trabalho.) Pais: Antonio e Maria, imigrantes italianos. Maria, do lar. Antonio, funcionário da Light. Modesto. Quase salário-mínimo. Nunca bateu o olho no dr. Galotti. Cresceu no bairro do Cambuci, o Brás dois, como qualquer menino pobre. Espiando as gulosas vitrinas do Natal dos meninos ricos. Com dezesseis anos, ainda no ginásio, primeiro emprego para ajudar o orçamento de casa: contínuo da Gessy, que ainda não era Lever. Entra na Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo. Aí, disparou. Foi logo trabalhar como escriturário do Departamento de Estradas de Rodagem, encarregado do controle de gastos de gasolina. (Se perder a embaixada e não ganhar o governo de São Paulo, Ueki tem emprego para ele. De muita valia.) Passou depois para a Bolsa de Mercadorias e Associação Comercial de São Paulo. Formação toda européia. Os americanos ainda não haviam multinacionalizado a universidade brasileira. Os professores mais marcantes eram Mr. Stevenson, inglês, que introduziu no Brasil os métodos quantitativos na economia, a aplicação da matemática na economia; e Luís de Freitas Bueno, em torno do qual se formou o principal grupo da escola. “A vida pública foi uma convocação do presidente Castelo para assumir a Secretaria da Fazenda de São Paulo, quando o Laudo, vice-governador, substituiu o Ademar. O Ministério da Fazenda foi conseqüência de uma exposição ao presidente Costa e Silva sobre os problemas agrícolas do país. Era a primeira vez que eu o via. Nisso houve uma influência muito grande do Andreazza. Eu tinha continuado secretário da Fazenda no governo do Sodré. Saí de lá para o Ministério. Desde 52 sempre cooperei com o governo, participando da formulação de alguns planejamentos. No governo Carvalho Pinto, participei do Plano de Ação. Fiquei lá de 59 a 63. Antes disso já tinha trabalhado no planejamento da bacia Paraná-Uruguai. Em 64, 65, tinha-se criado o Consplan, com o Roberto Campos. Fui convidado para participar. Junto com o Graciano Sá e com um grupo que estava tentando verificar o que podia acontecer com o país em dez anos, trabalhamos muito na formulação de um plano.” E vai falando, sem parar, como quem sabe a coisas bem de cor (que, em latim, é coração), como quem não pensa em mais nada. É o profissional da volta, porque sabe que ninguém se perde na volta. Como disse José Américo de Almeida. E como provou Napoleão.

“Não, não tenho medo de governar São Paulo agora. Se o partido achar que eu posso dar uma colaboração.

As lições de otimismo do Sr. Antonio Delfim Neto, o homem do poder, pelo poder, para o poder
Entrevista a Sebastião Nery

Status — Está preparado para voltar, para governar São Paulo?
Delfim — Bem, acho que alguma experiência eu tenho.

E vontade?
Bastante. Experiência pouca e vontade muita.

E condições?
Não vou ser candidato de mim mesmo. Na medida em que o partido entenda que eu posso dar uma colaboração para São Paulo, disposto estou para trabalhar.

Quando será sua volta ao Brasil?
Estou aqui cumprindo uma tarefa que o presidente da República me deu e enquanto tiver a confiança do presidente continuarei prestando meus serviços. Quando as coisas se definirem, se se definirem, estudarei o mecanismo de volta.

Não tem medo de pegar São Paulo agora para governar?
Não. É evidente que qualquer administração dá preocupação, dá uma certa angústia. Mas acredito que, realmente, tanto São Paulo como o Brasil têm condições extraordinárias. A administração de qualquer setor, em São Paulo ou no Brasil, dá muito mais satisfação do que preocupação. É a satisfação de servir, de se realizar trabalhando e fa-zendo alguma coisa.

A imprensa de São Paulo sempre está se referindo a dificuldades que teria, para ser governador, no setor agropecuário, por causa da política que adotou quando ministro da Fazenda. Está consciente dessas dificuldades?
Do ponto de vista do setor agropecuário não acredito que haja nenhuma objeção. Do ponto de vista de alguns banqueiros ou de al-guns industriais e agricultores, há certas objeções. Mas isto não tem nada a ver com a pecuária nem também com a agricultura. Durante os sete anos em que trabalhei no Ministério, a agricultura foi sempre uma preocupação muito grande, que não era minha, realmente era primeiro dos presidentes. Acho que se pode verificar. objetivamente, que a agricultura teve um desenvolvimento extraordinário nesse tempo. Óbvio que não se deve a mim, nem aos presidentes, nem ao governo, mas às pessoas que trabalharam, aos agricultores. Na minha opinião, há algumas coisas que são fundamentais. Uma das coisas mais importantes para a agricultura foi o estabelecimento de um sistema de câmbio flexível.

A agricultura cresceu enormemente, durante oito ou nove anos, quando foi liberada das amarrações que tinha da taxa cambial. A verdade é que a agricultura fornecia to-dos os recursos para o desenvolvimento industrial, para o governo, através de um processo de tributação escondido, porque era feito pela taxa cambial. Além do mais, a prova do pudim é quando a gente come.

A prova é que, nesses oito anos, e não dependeu de mim porque era uma política do governo, a agricultura cresceu mais rapidamente do que em qualquer outro período da História do Brasil. Uma coisa extremamente importante, em torno da qual tivemos grandes lutas no governo Médici, era o preço dos produtos agrícolas e pecuários. O que é que discutimos naqueles dias? Discutimos se a carne devia estar ou não a 140 cruzeiros por arroba. Para dar uma idéia de como esse preço naquele momento causava dificuldades, basta dizer que hoje. três anos depois, a carne está a 160 cruzeiros. Isso mostra como não era possível deixar o preço pular de 80 para 140. Não era razoável. porque o preço estava sendo puxado pelo preço externo e pela própria ligação que tínhamos ‘e entre o preço interno e o preço ex terno, através da taxa cambial.

Ora, era natural que a sociedade que tinha dado essa liberação procurasse minimizar os efeitos internos, no momento em que o preço externo não estava refletindo uma oferta e procura normais. Foi preciso dar ênfase ao consumo interno da carne, mostrando que exportávamos realmente o excedente e não podíamos transformar toda a pecuária brasileira numa pecuária exportadora. Não podíamos prejudicar o consumidor brasileiro para continuar numa política de ligação entre preço externo e preço interno. Por isso, objetivamente, não creio que haja nenhuma divergência minha com a agricultura ou a pecuária. Há, certamente, com alguns agricultores amadores, banqueiros doublé de agricultores e industriais.

A chamada Revolução de foi feita em cima de um tripé: a unidade das Forças Armadas, o apoio do empresariado e a solidariedade do sistema ocidental, particularmente dos Estados Unidos, através da ligação com os interesses do sistema ocidental. A unidade das Forças Armadas é a espinha dorsal do regime até hoje e sua garantia. Mas o apoio do empresariado trincou. Hoje há dificuldades públicas no relacionamento do governo com o empresariado por causa dos problemas da economia nacional. Este modelo, que foi pensado em 64 e 65, inicialmente sob o comando do ministro Roberto Campos e logo depois executado sob o seu comando, é um modelo exausto, falido?
Chamar de modelo é uma espécie de eufemismo. Há aí uma questão semântica a ser desenvolvida. Dá a idéia de que é uma coisa muito rígida, quando não é isso. O desenvolvimento brasileiro, nos últimos anos, esteve apoiado numa idéia: um sistema razoavelmente liberal, do ponto de vista econômico, um sistema que tivesse um apoio importante no setor privado, não porque o setor privado é a única forma de realizar esse projeto, mas porque é um fato óbvio, incontestável, que você só pode ter uma certa política, uma sociedade pluralista, uma sociedade múltipla, na medida em que você tenha uma descentralização do poder econômico. Hoje a história não pode mais ninguém. Ninguém pode mais ter dúvida sobre o fato de que o capitalismo de Estado conduz inexoravelmente a um processo político sem saída, ao Estado totalitário. Todas as formas que se encontraram foram incapazes de fazer outra coisa.

Hoje temos uma experiência de trinta a quarenta países que procuraram caminhos mais diversos. E quando entraram no capitalismo de Estado inexoravelmente ficaram presos ao totalitarismo.

“Ninguém mais pode ter dúvidas de que o capitalismo de Estado conduz a um processo político sem saída, ao Estado totalitário.”

Isto é um recado para o Brasil?
O desenvolvimento através de um setor privado importante é um instrumento para realizar uma nação. Se você quer fazer um entreposto comercial, uma indústria, não há nada mais fácil do que estabelecer um sistema de capitalismo de Estado: distribui só o que produz como bens de consumo, paga salários exclusivamente no valor dos bens de consumo, não tem inflação, não tem coisa nenhuma, e tem um país produzindo. Mas produzindo para quê? Como se fosse um entreposto e não uma nação? É por isso que o setor privado é importante. Porque representa não a garantia de que você vai ter um sistema político aberto, mas a possibilidade de que você tenha um sistema político aberto. O sistema político não se abre simplesmente como milagre. Ele se abre porque a sociedade tem o desejo de realizar um sistema político aberto. A história mostrou isso. Que não existe a menor possibilidade de fazer um sistema político pluralista com o capitalismo de Estado.

E o socialismo?
É claro que existem várias formas de socialismo. O socialismo é sempre muito mais do que a gente pensa. Toda vez que você faz uma observação sobre o socialismo, sempre existe alguma fórmula nova de socialismo que supera aquela objeção, porque o socialismo é o sonho. O socialismo realmente é o homem na sua plenitude. É uma realização do homem, de tal ordem, é desejada com tanta intensidade, que não há objeção possível a ser feita. Cada vez que você levanta uma objeção, o homem sabe que tem de existir alguma saída para o seu problema. E o seu problema não é um problema puramente econômico. É o problema político, é o problema do poder, de como ele se organiza em relação aos outros, de como ele pode realizar-se. Isto está hoje de uma maneira muito clara.

Você só pode fazer democracia se tiver uma descentralização econômica razoável. E é interessante verificar que alguns países que avançaram numa direção bastante rápida para um tipo de social-democracia, que no fundo é um socialismo democrático, quando começam a encontrar dificuldades do ponto de vista da execução de seu projeto, se voltam para fórmulas menos estatizantes.

Por exemplo?
A Suécia. É um caso típico, em que você teve a mudança da estrutura do poder exclusivamente porque a sociedade compreendeu que o caminho tinha de ser mudado, para voltar a ter, dentro da economia, um certo nível de eficiência, e simultaneamente não estar exclusivamente na mão do governo. O que há de mau no capitalismo de Estado não é que os funcionários públicos sejam menos eficientes do que os empregados, porque realmente são as mesmas pessoas. O que há de mau no capitalismo de Estado é que o Estado é o empregador universal. O que há de mau no capitalismo de Estado é que se você não concordar com o governo você não tem emprego. O que há de mau no capitalismo de Estado é que você recebe uma carteirinha e, se o gerente da fábrica carimbar sua carteirinha, você arranja outro emprego; se ele não carimbar, você é escravo dele pelo resto da vida. O que há de mau no capitalismo de Estado é que ele é insaciável. Ele primeiro controla seu emprego, depois controla onde você mora, controla para onde você vai, controla a estrada. Como a administração pública é difícil, sempre tem muitas dificuldades, o planejador ingênuo acredita que é preciso cada vez mais poder para realizar o que ele deseja. Ele sempre atribui ao parceiro os erros. Ele nunca acha que o erro está no planejamento. O erro está sempre no sujeito que não cumpriu o planejamento. A forma de corrigir isso é se enfiar cada vez mais na liberdade do parceiro.

Este é o retrato do tecnocrata?
Não é o retrato do tecnocrata. É uma visão clara, correta, de como o burocrata, ou o tecnocrata, se você quiser, aquele que tem uma parcela do poder cada vez, dialeticamente, exige mais poder, precisa de mais poder, para evitar que os outros cometam erros.

Esta conclusão é fruto de sua experiência no Ministério da Fazenda?
Não tanto. Na minha vida comecei como socialista fabiano. Eu talvez fosse um grande sonhador. Fiz minha vida universitária toda em torno disso. Acredito que você possa fazer desenvolvimento com liberdade. É possível um mecanismo de realização que compatibilize um mínimo de eficiência com uma certa organização social razoável. Mas verifiquei que realmente o que acontece é que o poder é perverso. Cada vez exige mais. O poder, se não houver um certo controle, tende a ser um poder absoluto. Por quê? Por causa dessa busca de eficiência, que é até uma busca honesta. O sujeito atribui sempre os erros a quem está do lado de lá. Quando cometo um equívoco, é muito difícil eu reconhecer meu erro. É muito mais fácil dizer que o outro não teve a capacidade de verificar que devia agir diferente.

O capitalismo de Estado no Brasil está em ascensão?
Visivelmente você teve um aumento de participação do Estado na economia, conseqüência de muitas coisas, da crise mundial, das dificuldades do próprio capitalismo nacional, do problema de que o Brasil realmente é um país pobre. O Brasil quer fazer capitalismo sem capital. E há uma espécie de dificuldade muito grande: quando alguém tenta fazer capital, logo é submetido a um processo de esmerilhamento muito intenso. É um processo contraditório, onde não queremos reconhecer que é fundamental para nós a existência de um setor privado importante. E, ao mesmo tempo, por causa disso mesmo, não podemos deixar de dar apoio ao setor privado. Mas esse apoio ao setor privado assume certas características do ponto de vista da distribuição de rendas, do ponto de vista da estrutura do poder, que não são totalmente desejáveis. No fim, você fica num impasse. que tem que ser resolvido.

Como?
Não existe nenhuma fórmula mágica para resolver. Ele só é resolvido na prática. Ele é resolvido concretamente pela atuação diária, desde que você tenha uma filosofia ajustada. O que houve no Brasil é conseqüência, de um lado, das dificuldades externas e, de outro lado, das dificuldades internas.

“A abertura política não é um fato inexorável. Ela vai aparecer ou não, dependendo do comportamento dos homens.”

Dificuldades econômicas e políticas?
Dificuldades mais econômicas, do ponto de vista de que a realização de um processo como esse é extremamente lenta. As pessoas não têm aquela paciência, não têm coragem para esperar o tempo necessário para que a coisa mature. Então atropelamos os fatos. E atropelar o fato significa ter muito mais conseqüência danosa do que era preciso.

Como está vendo daqui a crise brasileira?
A crise é permanente. A crise é viver. Só não tem crise quem não vive. A crise faz parte da vida. É um mecanismo pelo qual, cada vez que você encontra uma dificuldade, você não diz que há dificuldade, diz que há uma crise. O Brasil hoje tem as dificuldades que têm todos os países do mundo. Não há exceção. Não há nenhum país do mundo que não tenha hoje problemas econômicos graves. E não há regime no mundo que tenha conseguido resolver esses problemas. O que é mais estranho é que o regime mais feroz, do ponto de vista político, e o regime mais aberto, todos eles tenham problemas econômicos complicados. A prova é que todos os regimes chamados socialistas foram incapazes de resolver qualquer um desses problemas.

Mas não há desemprego nos países socialistas.
De fato, não há desemprego porque para o país socialista resolver o problema do desemprego basta baixar a produtividade. Então não há desemprego.

E não há inflação.
Não há inflação porque basta você fazer um controle de salários feroz, como existe, e não há inflação.

Então a economia é um beco sem saída.
Quando você vai estudar, vê que ninguém conseguiu resolver esses problemas.

Quer dizer que eles não são resolúveis?
Acho que não. Não há solução definitiva, porque eles não são um problema, eles são uma sucessão de problemas. Cada vez que você resolve um problema, criam-se muitos outros problemas. Eu acredito que esta capacidade de gerar problemas é fundamental para realizar uma nação. Não há possibilidade de você estabelecer uma política salarial definitiva. Quando você estabelece uma política salarial que deu 4,5% de aumento do poder de compra real durante cinco, seis anos, é natural, é normal que as pessoas queiram mais. E isto não é um mal, é um bem. Agora, é preciso compreender que, na medida em que você tenha aspirações de consumo e investimento que são completamente incompatíveis com a sua capacidade de produção, você está diante de uma crise, de um processo que vai terminar ou em inflação ou em déficit no balanço de pagamentos. Isto é insuperável, qualquer que seja o regime, socialista, comunista. Se você tentar fazer com que seu consumo, seu investimento, seja maior do que sua produção, vai aparecer uri déficit no balanço de pagamentos. Se você fechar o déficit no balanço de pagamentos, vai aparecer a inflação.

“Direitos humanos? Acho que as críticas ao Brasil, desse ponto de vista, são freqüentemente exageradas.”

Esta crise, esta realidade brasileira, leva a uma abertura política?
Acho que pode levar a uma abertura política. Na medida em que conservarmos o setor privado suficientemente forte, na medida em que conservarmos o poder econômico razoavelmente descentralizado, você tem as condições para realizar a abertura. A abertura política não é um fato inexorável. Ela vai aparecer ou não, dependendo do comportamento dos homens, dependendo de os homens quererem ou não. E de quererem de uma forma coerente. Não há nenhum país que tenha o regime fechado por vontade de seu governo. Todo homem que está no poder gostaria de ter um regime político aberto, a aprovação de todos os seus parceiros. Todo governo quer realizar o melhor trabalho possível. O governo só se realiza dessa forma. É inconcebível imaginar o governo desejando o poder pelo poder. O governo quer o poder para realizar alguma coisa.

O Brasil é hoje um país viável?
Na medida em que fizermos isso, pudermos continuar trabalhando, teremos todas as condições de progredir. Condições bastante razoáveis. O Brasil é um dos poucos países do mundo que têm realmente as condições de realizar um desenvolvimento econômico muito rápido, razoavelmente eficiente, dentro de um sistema político que vai se abrindo; e vai conseguir ser uma nação razoável.

O que é uma nação razoável?
É uma nação onde você tenha uma estrutura política pluralista, capaz de chegar ao encontro coletivo de decisões livremente expressas, capaz de permitir um processo de acomodação, que é necessário, porque sem ele não há desenvolvimento nem democracia.

O que está acontecendo agora na Espanha é um sinal dos tempos?
É uma lição extraordinária. É um processo que está sendo conduzido com uma competência extraordinária. Mas é preciso compreender que a Espanha teve nos últimos 25 anos um dos desenvolvimentos econômicos mais espetaculares, da ordem de 6, 7% anuais, permanentemente. Um balanço de pagamentos tranqüilo durante anos. Agora, colhe os frutos. Hoje a Espanha é um país desenvolvido, esta é que é a realidade.

E o terceiro pé do tripé? Como vê as dificuldades que surgiram no relacionamento do Brasil com os Estados Unidos por causa do acordo nuclear Brasil — Alemanha e dos direitos humanos?
Como o Brasil cresce, e cresce muito depressa, e, a despeito de todas as nossas dificuldades, continuamos com uma taxa de 7,8%, até um pouco mais, no ano passado foi 8,8%, e não tenho dúvida de que este ano vai continuar crescendo, o Brasil assumiu uma dimensão importante. Somos 110 milhões, com um produto bruto da ordem de 110, 115 bilhões de dólares, no fundo o 8.° ou 9.° país do mundo. É óbvio que você não pode crescer sem empurrar alguém. É natural que esse crescimento seja como um elefante numa sala: quando ele está crescendo, um sai pela porta, outro pela janela, não há o que fazer. E não só o Brasil está crescendo, como está crescendo em um mundo que não está crescendo, em um mundo que, nos últimos três eu quatro anos, tem permanecido estagnado. Aí o crescimento fica muito mais dramático Quando o mundo está crescendo 4,5% e o Brasil cresce 8%, não acontece nada, porque o Brasil cresce um pedaço do que o mundo cresceu. Mas quando o mundo não cresce nada…

Que mundo não cresceu nada?
O mundo todo. Se você pegar o mundo como um todo, praticamente não cresceu. Nem a Euro-pa Oriental nem a Europa Ocidental. Tem tido taxas de crescimento, alguns anos, negativas, como em 75. Em 76. teve um crescimento de 2,5% ou 3%. Em 77 vai dar 4%, talvez. Significa que ele está crescendo dentro da área dos outros. É natural que haja preocupação deles. Desse ponto de vista, o Brasil foi muito feliz. A nossa política externa tem sido muito feliz. A posição brasileira é uma posição muito clara. Não sei se você viu o Livro Branco sobre o acordo atômico.

Li, claro.
É uma peça da melhor qualidade, não tem adjetivos, coloca a posição brasileira de uma forma tão simples, tão tranqüila, que é impossível ser contra. O Brasil não quer nenhuma arma, o Brasil deseja é ter uma fonte de energia que para ele é imprescindível, absolutamente imprescindível. E o Brasil demonstrou que fez um esforço enorme, porque, antes de se meter nisso, praticamente esgotou sua capacidade hidroelétrica no Sul. O Brasil está qualificado para ter acesso à energia atômica.

Acredita na execução do acordo?
Sim.

Não há hipóteses internacionais de a Alemanha recuar?
A posição brasileira é tão lógica e tão clara que dificilmente se poderia encontrar uma objeção válida.

E o problema dos direitos humanos? Incomoda a um embaixador brasileiro no exterior?
O problema dos direitos humanos, obviamente, incomoda a todos nós. Na França, hoje, é um problema de pequena importância, representando a importância que tem no Brasil mesmo, hoje. É claro que é fundamental o respeito aos direitos humanos e o Brasil tem procurado fazer isso. Acho que as críticas ao Brasil, desse ponto de vista, são freqüentemente exageradas.

É evidente que aqui sobra um pouco mais de tempo. Que tipo de coisas anda lendo ou estudando?
Basicamente tenho lido história e economia. Um pouco de sociologia, um pouco de política.

Recomende alguma coisa que tenha saído ultimamente aqui na França e que deva ser lido pelos líderes políticos, empresariais, pelos intelectuais e universitários brasileiros.
É difícil. Mas recomendaria a leitura de um livro muito interessante, de um professor de política, o Maurice Duverger, que se chama Carta Aberta aos Socialistas, onde ele coloca o problema do que fazer do país e como utilizar o poder, como compatibilizar o desejo de ter um sistema político muito mais aberto com uma razoável eficiência econômica. Duverger é um grande professor de política da Universidade de Paris, muito conceituado, e é um socialista. Na minha opinião, o livro é altamente esclarecedor. Ele mostra por que os mecanismos da administração, através de um capitalismo de Estado, são incapazes de realizar os ideais do socialismo.

“O Brasil é um dos poucos países viáveis deste mundo.”

A Europa está mais velha ou mais nova?
Do ponto de vista populacional, demográfico, está consideravelmente mais velha. Um dos aspectos que causam maior impacto é verificar uma sociedade em que a vida média cresceu dez ou doze anos, num espaço curtíssimo e, sendo uma sociedade que envelheceu, com desejos de consumo extraordinários, com uma certa eficiência produtiva, debruçando-se em cima dos que podem trabalhar. Você sente um aumento muito rápido da relação entre as pessoas que trabalham e as que não trabalham. Isto se reflete num aumento enorme de tributação, na necessidade de o governo capturar uma parcela importante do excedente para manter as pessoas realizando o que elas desejam. E você sente como a geração que está trabalhando começa a ter dúvidas sobre a sua capacidade de manter essas gerações mais velhas nesse ócio com dignidade. As gerações mais jovens às vezes não compreendem a natureza do problema que está aí. Aqui realmente é o lugar mais fácil para ver que não há milagre.

Nem mesmo o milagre brasileiro.
É um país estabilizado, um país arrumado, como a Europa toda, mas onde visivelmente as intenções de consumo, praticamente de lazer, estão começando a ficar incompatíveis com a sua estrutura produtiva.

Vem daí o avanço da esquerda?
Não. A esquerda avança e recua porque a esquerda, como a direita, é incapaz de resolver este problema. A esquerda não é capaz de produzir recursos. A esquerda no poder mostrou sempre que é de uma incompetência monumental. A eficiência da esquerda no poder é lamentável. A esquerda tem alguma eficiência na oposição. No poder, é incapaz. Um processo como esse, quando leva a esquerda para o poder, rapidamente tira a esquerda do poder. Há realmente um problema: é que essas aspirações do homem não estão ligadas à esquerda nem à direita. Elas são gerais, encontram-se na Europa inteira, independente da ideologia do cidadão. São um desejo de consumo e de lazer muito superiores ao que mesmo uma sociedade rica pode dar. Isso cria um tipo de contradição que é insolúvel.

Sua posição é uma posição de confiança e de esperança no processo brasileiro?
Claro. Acho que poucos países têm as condições que o Brasil tem para ser uma nação. Poucos países têm uma população, em quantidade e qualidade, e os recursos naturais, de que o Brasil dispõe para ser uma nação. O Brasil não tem nenhuma razão para ter dúvidas sobre isso. E não tem realmente nenhum problema importante, quando se compara o Brasil como o resto do mundo. O Brasil é um dos poucos países visivelmente viáveis.

Isto é uma chuva de otimismo sobre o país corroído hoje pelo negativismo. É só ler a imprensa brasileira para sentir o terrível desânimo nacional.
Honestamente, do ponto de vista objetivo, não há a menor razão para se pensar que o Brasil tenha algum problema insuperável. É de uma evidência tão grande, que não precisa demonstrar: o Brasil é um dos poucos países do mundo que têm condição de maturar como uma nação, conservando seus valores fundamentais. Continuando a ser Brasil.

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