Playboy entrevista Celso Furtado (1999)

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Entrevistas com políticos em revistas antigas
42 min readFeb 15, 2019

Uma conversa franca com o maior economista da esquerda sobre pais, presidentes, nordestinos, artistas vaidosos e até um pouquinho de economia
O economista Celso Furtado não é apenas um dos mais influentes pensadores da esquerda brasileira, talvez o mais influente. Não é apenas o criador da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), nos anos 50, ou um dos sustentáculos da filosofia desenvolvimentista elaborada na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), organismo das Nações Unidas, nem apenas o autor de mais de trinta livros, o último dos quais O Capitalismo Global (Paz e Terra, 1998) e o mais importante o clássico Formação Econômica do Brasil (1959). Celso Furtado é também uma ponte entre vários Brasis e várias épocas. Uma ponte entre o Brasil dos cangaceiros, do padre Cícero e da violência política entre clãs inimigos, que conheceu na infância, na Paraíba, e do qual fala demoradamente nesta entrevista, e o Brasil da inserção global, que encara com temor e lhe inspira críticas ao atual governo. Entre o Brasil do regime democrático da Constituição de 1946, ao qual serviu em sucessivos governos (Juscelino, Jânio, Jango), e o da redemocratização de 1985, ao qual serviu como ministro da Cultura, no governo Sarney, passando por cima do regime militar que o cassou, censurou e exilou.

Celso Furtado viu tudo, analisou tudo, conheceu todo mundo. Suas relações pessoais com presidentes da República vão de Epitácio Pessoa (1919-1922), que visitou uma vez no Rio, ele rapaz, Epitácio já velho e aposentado, a Fernando Henrique Cardoso, companheiro antigo, com quem manteve estreitas relações, até que a vida e as idéias os separassem. Explorar não o Celso Furtado das idéias e das análises, tão freqüente na imprensa, ou, pelo menos, não apenas esse Celso Furtado que recentemente proclamou ser “inevitável” a moratória da dívida externa brasileira, mas, principalmente, o Celso Furtado da memória dos homens que conheceu e das coisas que viveu — essa a incumbência que PLAYBOY conferiu ao autor desta entrevista, o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, editor especial da revista VEJA.

Nascido em Pombal, sertão da Paraíba, em 1920, numa época em que por lá não havia automóvel, e, desde agosto de 1997, membro da Academia Brasileira de Letras, Furtado é pai de dois filhos, Mário, físico, e André, economista, ambos residentes em Campinas (SP), e avô de quatro netos. Os acidentes cardíacos e circulatórios de que foi vítima no início da década foram superados. Mas a artrose e os incômodos da coluna obrigam-no a movimentar-se devagar. Separado da mãe de seus filhos, a argentina Lucia Tosi, está casado há dezenove anos com a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar. O casal alterna a vida entre os apartamentos do Rio de Janeiro e de Paris, cidade que acolheu Celso Furtado em diferentes versões — do estudante dos anos 40 ao exilado dos 60, do professor de Desenvolvimento Econômico da Sorbonne, de 1965 a 1985, ao escritor que encontra hoje, na capital francesa, o melhor ambiente para escrever seus livros. Foi no apartamento carioca, em Copacabana, que Furtado recebeu o enviado de PLAYBOY.

PLAYBOY — O Brasil tem jeito?
CELSO FURTADO — O Brasil assumiu riscos muito grandes. Eu, que há cinqüenta anos acompanho todo esse processo de perto e sempre acreditei muito no Brasil, estou seriamente preocupado. Estamos diante de escolhas tão graves que todas parecem apontar contra nós. Se o Brasil se afasta da globalização, perde. Se se aproxima com as mãos atadas, como está fazendo, por meio do Fundo Monetário Internacional, também perde.

O que é a globalização, para ter tais poderes?
A globalização é um imperativo tecnológico, não é nela em si que está o problema. A globalização é uma força acima de tudo, como foram a invenção da roda ou a Revolução Industrial do século XVIII. O problema é a maneira de se integrar a ela. O Brasil enriqueceu, se desenvolveu, está entre os dez países mais industrializados do mundo, mas mantém sua subordinação aos grandes centros, às decisões negociadas fora do país. Por outro lado, quebrar isso significa ir contra a História, porque a História moderna é a da integração. Só tem acesso à tecnologia quem participa do mercado mundial.

Este Brasil atual, de qualquer forma, não é melhor do que o que o senhor conheceu na infância e na adolescência?
Eu me formei mentalmente a partir dos anos 30 e acompanhei o processo de abertura da sociedade brasileira, a democratização do Brasil. Até os anos 20, o Brasil era um país, do ponto de vista político, rudimentar — as eleições eram feitas a “bico-de-pena”, como se dizia.

Qual foi o primeiro presidente da República de que o senhor teve consciência?
Washington Luís [1926-1930].

Que recordações pessoais o senhor tem dele?
Eu me recordo das canções gaiatas sobre ele.

Como eram as letras?
“Quem tem cavanhaque é bode”, e coisas por aí. Com a Revolução de 1930, o Brasil se transformou, porque pela primeira vez a política passou a ter uma participação muito mais ampla. Acabou a eleição de bico-de-pena.

Acabaram todas as eleições, na verdade.
Primeiro acabaram as eleições, mas depois, em 1932, houve reação contra isso e voltaram. A Revolução de 1930 provocou uma mobilização popular muito grande. Acompanhei isso, de longe. A Paraíba, onde nasci, era um Estado muito mobilizado, porque foi o único Estado do norte do Brasil que ficou do lado do Rio Grande do Sul na Revolução.

“Estou seriamente preocupado. Estamos diante de escolhas tão graves que todas parecem apontar contra nós”

Como era a mobilização, na Paraíba?
Havia as passeatas de João Pessoa [governador, ou presidente, como se dizia então, da Paraíba, entre 1928 e 1930]. Era um movimento enorme, quase religioso. Na minha imaginação, João Pessoa e padre Cícero são figuras próximas. Os dois têm ao mesmo tempo um caráter religioso e um forte apelo popular. Eu me recordo de ir a uma procissão em que seguíamos o retrato de João Pessoa, quando ele morreu. O choque da morte dele [assassinado em 1930] foi tão profundo que a população se mobilizou como num drama religioso. E o padre Cícero era responsável pelos grandes deslocamentos de pessoas que havia permanentemente no sertão. Eu era do sertão e no sertão mandavam os próceres do padre Cícero.

O que havia, na figura de João Pessoa, que cativava tanto? Era como se fosse um santo. As empregadas da minha casa contavam histórias em que ele se disfarçava de uma “pessoa comum” para praticar o bem, nos bairros pobres. É interessante como o inconsciente coletivo trabalha, cria os seus mitos e se alimenta deles. Eu me recordo de ver Os presos trabalhando na rua, nas obras públicas, vestidos de preso. Ninguém fugia. João Pessoa tinha confiança neles.

Deixava os presos sair à rua?
Deixava, para trabalhar. Eles podiam fugir, mas não fugiam porque tinham jurado lealdade a João Pessoa.

Como caracterizar João Pessoa? Seria um populista?
Era um populista, mas um populista corajoso e que foi ao fundo das coisas.

Mas ele era um homem sincero ou um farsante, como tantos populistas?
Era uns homem modesto. João Pessoa era sobrinho de Epitácio Pessoa, que foi presidente da República, um nome grande demais para a Paraíba. A sombra de Epitácio esmagou a família. João Pessoa sabia que não era nada. Era apenas o sobrinho de Epitácio, que o tinha indicado para governador do Estado. Mas aí veio a campanha presidencial de 1930 e João Pessoa, em vez de apoiar o candidato oficial, Júlio Prestes, indicado por Washington Luís, apoiou o candidato da oposição, Getúlio Vargas. Acabou sendo o candidato a vice na chapa de Getúlio.

O senhor diz que ele era um populista que ia ao fundo das coisas. Por quê?
Ele enfrentou problemas sérios, depois da crise de 1929, e demonstrou coragem. Essa crise abaixou o preço do açúcar e do algodão, produtos exportados pela Paraíba, e o Estado ficou na miséria. Ele então deu prioridade à criação de empregos e iniciou muitas obras públicas. Não eram obras majestosas, era tudo muito simples, mas ele pôs aquele povão todo trabalhando e ganhando seu salariozinho.

Na sua família, todos apoiavam João Pessoa ou havia dissidentes?
Havia dissidentes. Meu pai, que nessa época era estudante de
Direito, jornalista e um intelectual competente, com muita influência na família, via que naquilo havia algo de falso. Mas acabou apoiando João Pessoa. De início meu pai foi uma vítima de sua política, pois João Pessoa, para criar emprego, criou primeiro o desemprego. Então, fechou muitas instituições que o governo financiava ou ajudava. Meu pai nessa época tinha um bico no jornal do Estado. Aí eles botaram para fora metade dos empregados.

Seu pai inclusive?
Meu pai inclusive. Então ele decidiu migrar. Já tinha se formado, era bacharel em Direito, e mudou-se para o Rio de Janeiro. Veio sozinho. A família ficou na Paraíba. Chegou ao Rio e encontrou unia situação muito difícil também. Um dia, um parente de minha mãe, que era de uma família de latifundiários, muito poderosa, procurou o tio dela, o “tio Ioiô”, Inácio Evaristo, presidente da Assembléia Legislativa do Estado, para contar que minha mãe queria ir embora da Paraíba. Já que papai havia saído, ela iria também. Inácio Evaristo então falou para João Pessoa: “Olha, João, se a gente jovem e de valor vai embora, não sei o que vai ser deste Estado”. João Pessoa entrou em brios, examinou o caso e acabou nomeando meu pai juiz de Direito na capital. Então meu pai, que tinha sido um crítico, reconciliou-se com João Pessoa.

Quanto tempo durou a temporada carioca de seu pai?
Seis meses. Ele me mandava selos. Naquela época, havia a mania de colecionar selos. Meu pai era também músico. Tocava muita coisa e tinha uma bela voz. Ele participou de um programa de rádio, no Rio, e nos avisou, mas era impossível captar lá na Paraíba.

E o padre Cícero? Como era a influência do padre Cícero no seu ambiente?
E preciso ter em conta que nessa época estamos ainda próximos da Guerra de Canudos [que terminou em 1897]. Havia muito movimento religioso no Nordeste. O padre Cícero foi importante porque polarizou esse movimento e desviou-o do pior, que seria o fanatismo do tipo de Canudos. Canudos foi uma guerra de religião primitiva. Quando eu era menino, comentavam muito sobre Canudos. Um tio-avô tinha estado lá.

Do lado do governo?
Do lado do governo, claro. Não era beato. Tudo isso era o folclore da família. Era um mundo de folclore, mas muito envolvido na violência. Isso me marcou muito. O cangaceirismo era muito violento.

O senhor conheceu algum cangaceiro?
Conheci. Tinha muito medo deles. Quando invadiam a cidade…

Eles invadiam Pombal, a cidade onde o senhor nasceu?
Invadiam. E ela lá, dentro da cidade. Meu pai me levou para um lugar escondido, onde ficamos, eu e ele. Todo mundo saía correndo. “Os cangaceiros!!!”, avisavam, e aí — rrrrrra! — chegava aquela cavalgada Uns queriam bancar os mocinhos bem-comportados. Então sentavam-se às mesas, pediam café, respeitavam as senhoras. Outros eram brutamontes. Duas coisas marcaram minha infância. Uma foi essa violência dos cangaceiros. Tantas vezes vi pessoas mortas na rua…

Mortas por cangaceiros?
Por cangaceiros ou outros criminosos. E outra coisa que me marcou foi a violência da natureza. Eu me recordo da cheia de 1924. Tinha 4 anos, era pequeno. A cheia de 1924 invadiu a cidade de Pombal e destruiu a parte da frente da nossa casa. A casa não veio abaixo, em cima da gente, por milagre. A idéia que eu tinha era de que os perigos estavam por toda parte. Isso me marcou muito. Fiquei uma pessoa muito cautelosa. Essa enchente destruiu tanto a casa que tiveram de colocar o fogão na sala. Uma hora, me deixaram lá sozinho. Peguei uma bola, joguei e o caldeirão que estava no fogão caiu sobre minhas costas. Ah, sofri muito… Ainda tenho nas costas a marca da queimadura. E fiquei com essa idéia de que, seja do lado dos homens, seja do da natureza, os perigos eram iminentes e fortes.

O senhor acha que isso influiu no seu jeito de ser?
A verdade é que fui sempre uma pessoa extremamente cautelosa. Cálculo, cálculo. Essa minha mania de calcular tudo, de prever, de me cobrir em todas as circunstâncias, vem provavelmente da infância.

Mas na política o senhor teve posições audaciosas.
Às vezes assumi a ofensiva para não ficar na defensiva. Isso é uma questão de estratégia. Fiquei muito marcado por isso, talvez porque a sociedade era muito autoritária naquela época. Quem tinha poder o exercia de forma indiscriminada. A relação do pai com o filho era muito violenta.

A relação com seu pai tinha essa característica?
Tinha. Era natural. Eu saía com ele na rua, rapazinho, e não conversava. Ia sério. Depois, muito depois, ele disse: “O Celso era tão cara-fechada!” Ele atribuía a mim [risos] a falta de comunicação entre nós! Meu pai era muito sério, tipicamente um juiz. Tinha uma grande biblioteca e me criei cercado de livros.

Ele tinha interesse em quê? Literatura?
Romances, literatura. Tinha também muitos livros de História. Havia em casa uma coleção grande, de uns vinte volumes — a História Universal, de Cesare Cantú [historiador italiano do século XIX, autor de obra muito traduzida e popular]. Era tua homem de leitura.

Ele ficou na Paraíba até o fim da vida?
Não. Mudou-se para o Rio, quando se aposentou, e advogou aqui. Desde aquela vez, sempre teve o sonho de voltar para o Rio. Morreu no Rio, em 1965.

E sua mãe, como era?
Minha mãe tinha um caráter muito forte. Ela tomava uma atitude, meu pai gritava, esperneava, mas depois cedia. Era como se soubesse que, efetivamente, ela tinha razão. A mulher tem sempre razão em certos assuntos. O pai dela foi coronel no sertão, um homem autoritário. Minha mãe lia francês e espanhol. Uma vez, meu pai comprou uma série de livros em francês, e também a Enciclopedia Universal, em espanhol. Quando fui para a capital do Estado, me acostumei a ler…

Quando o senhor se mudou para lá?
Quando tinha 7 anos. No liceu, no segundo ano, havia inglês entre as matérias, e comecei a tirar nota baixa. Ninguém sabia nada de inglês, mas a estudantada enganava o professor, “filando”, como se dizia — colando. Eu não me submetia àquela humilhação. Meu pai ficaria horrorizado se eu fizesse uma coisa dessas. Então fui reprovado, na primeira época, em inglês. Meu pai contratou um professor, Mr. Vance. Era um químico industrial que trabalhava em usinas de açúcar e dava asilas como bico. Mr. Vance me “desasnou”, como se dizia na Paraíba, e comecei a falar inglês desde pequeno, o que me deu muita vantagem. Tinha orgulho de conversar em inglês com Mr. Vance.

O senhor disse que não conseguiria “filar” por causa de seu pai. Ele lhe inspirava terror?
Era próximo disso. Ele nunca levantou a mão para bater, mas tinha uma autoridade tão completa que eu ficava assustado. Fundava a autoridade dele um pouco nessa relação de terror, porque não admitia explicações. Quando havia uma briga em casa, quando dois irmãos brigavam, ele não queria saber quem tinha razão. Punia os dois. Era um tipo de autoridade cega. A gente aceitara porque era regra geral Os pais terem essa relação com os filhos, inclusive baterem.

“Quando dois irmãos brigavam, [meu pai] não queria saber quem tinha razão. Punia os dois. Era uma autoridade cega”

Quantos irmãos o senhor tinha?
Éramos oito irmãos. Eu era o homem mais velho. Havia uma moça mais velha do que eu.

E a família toda mudou-se para a capital?
A família toda. Quando deixei Pombal, eu me recordo de que já havia automóveis.

Antes não havia automóveis em Pombal?
Não. Quando chegava algum carro, todo mundo corria para olhar. Era sempre um fordeco. Não havia nenhum na cidade. Em 1926, quando tinha 6 anos, fiz uma viagem para a capital. Para voltar, meu pai alugou um carro com chofer e voltamos de automóvel. Antes, para ir à capital, íamos a cavalo até Campina Grande e lá pegávamos o trem.

Quando o senhor foi pela última vez a Pombal?
Uns dez anos atrás.

Dá para reconhecer a cidade?
Alguma coisa. A cidade se desenvolveu muito. Existe ainda a casa onde nasci, embora meio modificada, a igreja. A igreja eu conhecia muito. Minha mãe sempre me levava lá.

E a morte de João Pessoa? O senhor se lembra desse dia?
Claro. Foi no dia do meu aniversário. Estava fazendo 10 anos.

Como foi?
Chegou alguém correndo em casa: “Mataram João Pessoa”. O correio era sempre um empregado que chegava correndo. Nós morávamos na Rua Caturité, não muito longe do palácio do governo. De noite, a empregada me levou para aquela procissão de que falei, em que seguíamos um quadro com a fotografia de João Pessoa. Nessa noite o movimento foi enorme na cidade. A gente teve até que fugir de casa, porque houve um incêndio muna pequena usina de açúcar, não muito longe. Tocaram fogo nela… Os inimigos de João Pessoa foram perseguidos de maneira brutal. Iam de casa em casa e tocavam fogo nas casas. Saímos de manhã cedo, no dia seguinte, e a primeira coisa que encontramos foi um cadáver.

Era um inimigo de João Pessoa?
Não sei, coitado. Naquela violência toda, havia tiro para todo lado. O Exército passou a defender a usina, aquela que ficava perto de casa, a usina dos inimigos de João Pessoa. A tensão era muito grande. Mudamos, então, nesse dia, para a casa de minha avó, num lugar mais seguro. Era um ambiente de muita insegurança, muita violência, tantos incêndios.

Por que tanta violência na sociedade nordestina? Isso tem origem na estrutura agrária?
Tem. A estrutura agrária gera uma tal concentração de poder e renda que tudo passa a depender de certas pessoas. Quando você depende muito de alguém, termina odiando. Por isso, havia um grande potencial de revolta. Nesse momento da ‘norte de João Pessoa, vimos quão profundo era esse potencial. A população se levantou para defender o morto, para se vingar dos responsáveis pela morte dele. E os responsáveis passaram a ser todos aqueles que eram do outro partido. Passou-se muito tempo em convulsão. O Estado ficou dividido entre os adeptos de João Pessoa e os outros. João Dantas, o homem que assassinou João Pessoa, era muito inteligente. Meu pai o conheceu.

O crime foi de vingança…
Foi. João Pessoa tinha muito poder e o jornal do Estado, A União, era muito lido. João Dantas, que era do outro lado político, um dia teve sua casa invadida e todo inundo disse que foi gente ligada ao governo do Estado. Os invasores retiraram os papéis privados dele e publicaram em A União as cartas que escreveu para uma amante. João Dantas jurou vingança. Num caso como esse, não cabia outra coisa senão o desforço pessoal — encontrar João Pessoa e matá-lo. João Damas não pagou ninguém para assassinar, o que seria fácil. Foi pessoalmente, se apresentou e atirou em João Pessoa, naquela confeitaria no Recife [Confeitaria Glória]. Era o que lhe cabia fazer, segundo os códigos da época.

João Dantas, por sua vez, logo seria assassinado.
Quando veio a Revolução [de 1930], em outubro, a cadeia em que estava preso foi invadida e o trucidaram. Uma coisa absurda. O coitado não teve possibilidade de se defender. Quem matou João Damas foram bandidos pagos. E você pode imaginar como a notícia circulou na Paraíba: “João Dantas foi assassinado”, e as pessoas diziam: “Já vai tarde!”

Na sua família apoiaram a Revolução de 1930?
Aquele meu tio-avô, Inácio Evaristo, que era presidente da Assembléia Legislativa, tinha muita independência. Olhava por cima, não pertencia nem a um lado nem a outro. Mas foi quem acabou contribuindo para a maior homenagem a João Pessoa. Estive presente à reunião de despedida da Assembléia Legislativa, no Teatro Santa Rosa, em que alguém se levantou e defendeu que a homenagem a João Pessoa tinha que ficar à altura dos acontecimentos históricos. Então propôs que se mudasse o nome da capital para João Pessoa. Era a maior homenagem possível. Meu tio-avô, que presidia a sessão, pôs a proposta em votação, honestamente, e ela foi aprovada. Daí vem esse nome um pouco absurdo, mas a verdade é que a cidade não tinha nome.

Era Paraíba.
Era Paraíba, capital Paraíba. O clima era tal que todo mundo que era contra João Pessoa foi punido ou escorraçado. Muitos fugiram. Era como se cada um de seus adversários fosse o assassino de João Pessoa. Um fanatismo desenfreado. Não se admitia pôr em dúvida a sacralidade, a importância histórica e a significação positiva de João Pessoa. Vinte anos depois ainda acontecia isso. Nunca vi coisa igual. É claro que era um Estado pequeno, naquele Nordeste de paixões enormes. A política era briga de família, de grupos familiares.

“No dia do trote, um grupo invadiu a sala. Eu disse: ‘Estou armado. Quem se aproximar, saiba o risco que corre’ [risos]”

Como as coisas acabaram adquirindo tal dimensão?
Isso foi influenciado pela figura de Epitácio Pessoa. Epitácio era um rapaz brilhante, e cresceu enormemente. Foi deputado na primeira legislatura da República [1891-1893], ministro da Justiça [1898-1901], juiz do Supremo Tribunal [1902-1912] e presidente da República [1919-1922]. Era fantástico. Nunca um nordestino tinha chegado a tanto. Era uma grande figura de um mundo pequeno. Aí se criou um desequilíbrio termodinâmico, o Estado era pequeno para a grandeza de Epitácio Pessoa. Foi à sombra de Epitácio que João Pessoa, seu sobrinho, se destacou. O valor de Epitácio era também algo fora de dúvida. Nunca vi um trabalho crítico sobre a obra dele. O homem era tão grande que ninguém se atrevia.

O senhor o conheceu?
Quando cheguei ao Rio, como estudante, fui visitá-lo. Ele morava em Botafogo, mas não me deu muita atenção. Eu era um menino como qualquer outro da Paraíba.

Quando o senhor veio para o Rio?
Em 1939.

Com 19 anos, portanto. Veio fazer a Faculdade de Direito?
A Faculdade de Direito. Fiz o ginásio um pouco na Paraíba e um pouco no Recife, no Ginásio Pernambucano. No Recife já pude ver a diferença de padrão. O Ginásio Pernambucano tinha muito bons professores. Aníbal Freire, que depois foi da Academia Brasileira de Letras, ensinava literatura. Naquela época, o ensino superior era muito pequeno no Brasil e gente de muito valor ficava no secundário, em escolas como o Ginásio Pernambucano ou o Pedro II, aqui no Rio. A Paraíba tinha professores improvisados, não eram profissionais. Quando fui fazer o curso superior, o normal seria ir para a faculdade onde meu pai tinha estudado, a Faculdade de Direito do Recife, mas ele mesmo me disse: “Olha, Celso, se fosse você eu fazia um esforço e ia para o Rio de Janeiro, porque do Recife não sai mais ninguém que vá ter importância no Brasil” [risos]. Ele tinha essa lucidez: se quiser conhecer quem manda no Brasil, vá para o sul.

O senhor veio sozinho?
Sozinho. Peguei um “ita no Norte”, como se dizia — um navio — , e enfrentei uma viagem longa, complicada, de sete ou oito dias. Um exemplo curioso do meu temperamento, da minha forma de ser, ocorreu nesse navio, quando inventaram de me dar trote. Havia esse costume. Quem vinha pela primeira vez ao Rio sofria um batismo. Mas não permiti. Levantei e disse: “Comigo, não”.

Em que consistia esse batismo?
Sei lá. Jogavam sal na cabeça do indivíduo, faziam gaiatices com ele. Quando entrei na faculdade, que era uma faculdade muito importante na época…

A Nacional de Direito [hoje paz da Universidade Federal do Rio de Janeiro]?
Sim. Era tem exame muito difícil. Havia dez alunos para uma vaga e consegui uma boa classificação. Um professor ficou admirado: “De onde o senhor vem com essa boa formação?” Eu disse: “Do Nordeste”. Ou melhor, não disse do Nordeste, naquela época não havia esse conceito, disse que vinha da Paraíba. Mas o que estava dizendo era que na faculdade houve também um trote dos calouros.

Raspavam a cabeça, já?
Não me recordo se rasparam a cabeça. Mas submetiam a vexames. No dia do trote, um grupo de rapazes invadiu a sala. Havia aquela tensão… Eu disse: “Não aceito isso, não me submeto”. Aí disseram: “Tem que aceitar”. Eu disse: “Estou armado. Quem quiser se aproximar, saiba o risco que vai correr” [risos]. Entre os que estavam dando o trote havia um rapaz alto, que até ficou meu amigo depois, o Euclides Aranha, filho de Osvaldo Aranha [um dos líderes da Revolução de 1930, várias vezes ministro e embaixador de Vargas]. Ele disse o seguinte: “Esse rapaz eu conheço. É paraibano. Não participa desse tipo de teste. Deixemos ele de lado” [risos]. Assim escapei à violência.

Ele já o conhecia, para saber que era paraibano?
Tinha se informado. Ele era gaúcho, e os gaúchos tinham carinho pelos paraibanos, por causa da Revolução de 1930, quando a Paraíba tinha se aliado ao Rio Grande [do Sul].

O senhor disse que não existia esse conceito de Nordeste. O conceito teria surgido com os romancistas dos anos 30?
De verdade surgiu com a Sudene. A Sudene delimitou o Nordeste. Incluiu, por exemplo, o Maranhão no Nordeste. A Bahia também se recusava a ser Nordeste.

Fora esse aspecto mais técnico, o conceito de que existia uma região com problemas comuns, e que essa região era a mais problemática do Brasil, não é fruto da obra de romancistas como Graciliano Ramos ou José Lins do Rego?
Até certo ponto. Não houve um romancista que tenha colocado o problema por esse lado. Eles eram localistas. O Jorge Amado, por exemplo, é tão baiano, tão do sul da Bahia, tão do cacau…

Mas, para o resto do Brasil, os problemas da seca não foram dramatizados por intermédio deles?
Pegue um romancista como Lins do Rego, que foi muito lido no Brasil. Ele aborda a zona do açúcar, é o seu mundo. O mundo da Zona da Mata, não o do sertão. Há muitos Nordestes. Agora, uma idéia de Nordeste já existia, na verdade, porque não havia transporte entre o sul e o norte do Brasil. Se você ia para o sul, tinha que ir pelo mar, como eu, ou pelo Rio São Francisco. Existia uma consciência de similitude, porque era uma região separada, como a Amazônia ou o Rio Grande do Sul, e identificada por um certo quadro cultural. Isso se oficializou, depois, por uma lei que criou uma região política…

A lei da Sudene.
Sim. Foi quando se criou essa história de que o Nordeste tem reivindicações comuns, problemas comuns e é uma região árida. Essa foi a razão de ser da Sudene — criar um fato político, uma consciência de solidariedade na região, que juntasse governadores tão diferentes e tão vaidosos, cada um puxando a brasa para o seu lado. Foi o que conseguiu a Sudene. Agora está voltando a ser como antes.

Por que está voltando?
Primeiro porque a política de incentivos do governo federal está em declínio. Segundo consta, a idéia de Fernando Henrique é, daqui a dois anos, eliminar os incentivos fiscais. Acho um absurdo. O mundo inteiro adota a prática dos incentivos fiscais…

Os governadores também estariam voltando a puxar a brasa para o seu lado?
A legislação permite isso, porque deixa os Estados disputarem projetos industriais utilizando-se de incentivos. Dessa forma, as decisões acabam sendo antieconômicas. As indústrias são implantadas artificialmente e por isso muitas desaparecem. A ação do governo federal nas regiões mais pobres, com a criação da Sudene, passou a se submeter a uma disciplina. A indústria siderúrgica da Bahia, por exemplo, foi criada dentro desse espírito. Foi a Sudene que discutiu o projeto, fez os estudos técnicos. O projeto de irrigação do São Francisco também. Isso tudo era feito no interesse da região como um todo. Se começam a brigar pelos projetos, a idéia de solidariedade regional desaparece. O governador da Paraíba [José Maranhão] esteve aqui outro dia e me falou da briga dos Estados. Cada um quer, sozinho, atrair os projetos.

Como foi, em sua vida, o impacto da mudança para o Rio?
Eu tinha me deixado seduzir pela literatura e pela música. Nunca pretendi ser economista. Gostava principalmente de música. Fui discípulo de um músico muito bom na Paraíba, o pianista Gazzi de Sá. Ele era apaixonado por música, mas era extremamente discriminados. Para ele, só valia música muito séria, e me meteu isso na cabeça. Eu sabia que havia música de primeira, de segunda, de terceira, e pretendia ser exigente como Gazzi de Sá, se bem que conhecia muito menos do assunto. Ainda assim fiz crítica de música na Revista da Semana e na Cena Muda [publicações hoje extintas].

Isso já no Rio?
No Rio. Nos últimos dois ou três anos na Paraíba, tinha adquirido a paixão pela música. Quando vim para o Rio, esse meu professor, que veio também, para passear, me introduziu no ambiente musical. Ele tinha muito boas relações. Então conheci muita gente, inclusive [o maestro e compositor erudito Heitor] Villa-Lobos.

Isso logo na chegada?
Logo no começo. Passei a dedicar muito do meu tempo à música, mas depois compreendi que a música para mim era um enfeite, uns luxo. Não tinha vocação, como meu pai. Meu pai era mais da música lírica e, por causa de Gazzi, comecei a discriminar a música lírica.

Sua música era sinfônica?
Sinfônica. Ópera tinha que ser Wagner.

Os italianos não.
Ihhh!

Segunda categoria?
Ouvir isso era abusar do ouvido. Eu estava tateando, descobrindo meu caminho. Minhas paixões eram a literatura e a música, mas tinha que ganhar a vida. Então trabalhei em jornal, no [extinto] Correio da Manhã, como revisor, e na Revista da Semana como redator. Fui até secretário da revista, fiz muitos de seus artigos de capa. Tinha 23 anos. Fiz até um artigo pretensioso, de que até hoje acho muita graça. Foi quando [durante a Segunda Guerra Mundial] os alemães destruíram a estátua de Chopin em Varsóvia [risos].

O senhor se insurgiu?
Eu protestei. Disse que era sim insulto à cultura humana. Publiquei um artigo de primeira página na Revista da Semana, assinado, com a fotografia da estátua destruída [risos].

E na literatura quais eram suas preferências?
Muitas. Tinha lido muito a literatura de língua portuguesa, conhecia toda a obra de Eça de Queirós e de Machado de Assis. Era um rapaz muito cheio de mim. Imaginava que já tinha uma grande cultura.

Como era Villa-Lobos?
Tinha uma vaidade, uma pretensão… uma coisa que aprendi na vida é que o amadurecimento não se faz por inteiro na personalidade humana. É curioso. Pessoas de grande valor mostram uma vaidade infantil. O camarada era cego para o que não fosse a música dele. Uma vez lhe perguntei: “Que influências o senhor reconhece, maestro?” Ele disse: “Influências? Bach… e depois ninguém” [risos]. Como um ego pode ser tão grande?

“Levei tropas até bem perto do fogo. Os alemães ficavam em cima da montanha, controlando o horizonte”

Na próxima etapa de sua vida, vamos encontrá-lo com a Força Expedicionária Brasileira, a FEB, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Como o senhor ingressou na FEB?
Fui convocado. Foi uma época de sacrifício, porque trabalhava, estudava e fazia o CPOR. Era duro. Assim que terminei, em 1944, me convocaram. Minha sorte é que sabia inglês… Eles perguntavam sempre o que você sabia fazer. Se fosse mecânico, seria usado como mecânico. Eu sabia inglês, então disseram: “Que maravilha. Até hoje não apareceu ninguém para se entender com os americanos”. Havia americanos em missão aqui. Então, já na Vila Militar, passei a ser oficial de ligação com eles. Depois, na Itália, me puseram numa escola americana, para aprender a dirigir comboio.

O que era dirigir comboio?
Era conduzir a tropa, função de grande responsabilidade. Os americanos não confiavam em quem não soubesse dirigir comboio. Fiquei pouco tempo nessa escola, mas foi uma beleza, porque pude conhecer Florença de noite. Eu fugia, com os americanos, “levantava uma tocha”, como dizíamos — era a gíria para dar uma escapada.

Levantar unia tocha? De onde vem isso?
Vem de empunhar uma tocha para abrir caminho. Os americanos eram piores que nós em matéria de tocha. Sempre que possível, íamos para Florença. Lá havia clubes para os soldados, para os oficiais. Meu primeiro livro, De Nápoles a Paris, reflete esse ambiente. Mas o que achei mais interessante foi ver Florença de noite, porque imaginava que era a Florença da Idade Média. Uma vez, no King’s College da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, me perguntaram se conhecia Florença, e eu esnobei: “Conheci Florença em condições muito especiais. No blecaute, retornando à Idade Média. Não volto mais. Rever agora uma cidade vulgarizada, cheia de luzes, seria queimar na minha imaginação a imagens que tenho” [risos].

O senhor participou de algum combate?
Não. Mas levei tropas até bem perto do fogo. Os alemães ficavam em cima da montanha, controlando o horizonte. À noite os americanos jogavam os holofotes em cima deles, talvez para orientar os aviões. De onde estava, eu podia ver os holofotes e ouvir tiros, mas, como meu trabalho era comunicação, não me expunha. Aliás, pouca gente se expunha diretamente. Não existiu batalha aberta, a não ser na tentativa de subir o Monte Castelo. Aí os brasileiros fizeram uma manobra falsa e morreu muita gente. Nossos soldados ficaram um pouco desmoralizados, saíram fugidos, foi uma derrota feia. Eu estava bem perto.

Dava medo? O senhor achava que estava arriscando a vida?
Não. A idéia de morte na guerra é afugentada, não se quer saber disso.

Ao que parece, o senhor teve contato mais forte com a morte na Paraíba…
Muito mais forte. Via gente morrer na rua.

Os contatos com os americanos eram de igual para igual?
De igual para igual. Nesse exército em que servíamos havia muita gente que não era americana. Havia uma divisão polonesa, uma francesa… O Exército do Mediterrâneo era heterogêneo. Entre os americanos havia muitos negros e foi aí que vi o que era a discriminação. Nos clubes dos brancos, negro não entrava. Os americanos brancos diziam que os negros não levavam a guerra a sério, não eram confiáveis.

Foi nessa época que o senhor esteve pela primeira vez em Paris, cidade tão importante em sua vida. Como foi?
Depois que a guerra acabou fomos a Nápoles, esperar o navio que nos levaria de volta ao Brasil. Ali de Nápoles, então, levantamos uma tocha e fomos. Eu e mais três. Antes de terminar a guerra, ninguém podia ir muito longe, só até Florença. Agora dava para nos arriscar até mais longe, então fomos a Veneza, outras cidades italianas, e acabamos em Paris. Foi uma aventura, com papéis improvisados. Quando cheguei a Paris, pensei: “É aqui que tenho que completar meus estudos”. Depois que voltei ao Rio, não quis me envolver em nada muito importante. Como oficial da FEB, já formado, e com bom emprego, poderia ter começado uma carreira, e teria provavelmente sido urna pessoa diferente. Mas queria conhecer o mundo.

Que emprego era?
Nessa época, era técnico em administração do Estado do Rio de Janeiro. Passei em primeiro lugar no concurso e tinha um bom ordenado. Pedi licença, peguei um barco de terceira classe e fui desembarcar no [porto francês do] Havre. Cheguei lá com um inverno pesado, menos de 10 graus. A França, depois da guerra, era um poço, em matéria de depressão. Muita gente sem emprego, passando fome. Havia um racionamento estrito. Para o sujeito comer pão num restaurante tinha que mostrar um ticket. Mas ao mesmo tempo havia muita mobilização social, um fervor de reconstrução e um horizonte enorme para as esquerdas.

O senhor tinha uma bolsa para estudar na França?
Fui candidato a uma bolsa mas não me deram. Naquele tempo era preciso ter padrinhos, e eu não tinha. Também tinha me candidatado a uma bolsa nos Estados Unidos. Não deram e depois vieram me dizer: “Puxa, que pena”. Quando me tornei uma pessoa notória, devem ter pensado: “Por que não investimos nesse bolsista?” [risos].

Como o senhor custeou sua viagem?
No tempo em que estive no Exército não gastava nada e na FEB recebi em dobro. Depositei esse dinheiro no banco e, como o câmbio era favorável, com o franco desvalorizadíssimo, financiei minha viagem. Em Paris hospedei-me num hotel de estudantes, o Hotel Excelsior, no Quartier Latin, e meu pai me mandava algum dinheiro.

Em que ano o senhor foi para a França?
Em 1946, e fiquei até 1948. Tive a sorte de ser apresentado, na Faculdade de Direito e no Instituto de Ciências Políticas, por um professor francês que tinha estado no Brasil, Maurice Byé. Byé era apaixonado pelo Brasil. Ele me orientou e me ajudou a conseguir a matrícula. Queria fazer doutorado em Economia.

Por que economia, se o senhor era formado em Direito e seus interesses eram a literatura e a música?
Isso é difícil de explicar. Minha inclinação foi pelas ciências sociais. Talvez tivesse a ver com o Nordeste, com o sertão. Por que essa miséria? Que responsabilidade temos nós? Por que uma população tão explorada? Essas questões me levaram a sair do Direito, que é algo cristalizado, para a ciência social. Comecei a me interessar pelo fenômeno do poder. Quem me influenciou nesse ponto foi [Karl] Mannheim [sociólogo alemão], que também me orientou para o marxismo. Quando cheguei a Paris e conversei com Byé, logo lhe disse que o que me interessava era Economia. Ele disse que podia pedir a equivalência do meu curso de Direito na França e fazer doutorado em Economia. Fui o primeiro brasileiro a fazer doutorado em Economia na França.

Pegando outro lado da vida, como era, no seu tempo de rapaz, na Paraíba e no Recife, a relação homem-mulher?
Na Paraíba era muito romântico, muito século XIX. As moças eram sagradas, distantes. Tocar na mão era sinal de que já era noivo. Em tudo a sociedade era muito século XIX. Por outro lado, existia a prostituição. O rapagão era sempre orientado e levado a freqüentar prostitutas — o que dava na praga que eram as doenças venéreas.

Em Pombal tinha zona de prostituição?
Não, em Pombal não sabia de nada disso. Na capital tinha a Manchúria, assim chamada porque era zona conflagrada. Isso nunca me atraiu, talvez porque tivesse medo de doença venérea. E também pela possível reação do meu pai: se chegasse em casa com uma doença, como iria me explicar? De modo que minha história é atípica. Mas muitos colegas ficavam entre esses dois mundos. A moça tinha que ser sagrada, não podia ter namorado muito intimamente, porque o sonho era casar com uma moça virgem. Era um mundo primitivo e dominado pelo romantismo. Não houve um livro que me apaixonasse tanto, nessa época, quanto o Werther, de Goethe.

“Na Paraíba era muito romântico. As moças eram sagradas, distantes. Tocar na mão era sinal de que já era noivo”

O fascínio do sofrimento.
Do sofrimento e da perda. Como se fosse uma fatalidade a felicidade e o sofrimento virem juntos. Os livros que me interessavam eram muito românticos. Servidão Humana, de Somerset Maugham… Saí disso quando tive acesso a uma literatura mais complexa. Lembro-me do impacto que sofri com Contraponto, de Huxley. Esse, sim, colocava os problemas num nível intelectual. É um livro sofisticado.

O senhor disse que gostava de Machado de Assis. Ainda gosta da mesma forma?
Reli recentemente o Memorial de Aires e fiquei fascinado. É de uma sutileza, uma finura…

O que Machado de Assis está querendo dizer a respeito da sociedade carioca daquele tempo?
Qualquer hipótese é válida. O que vale mais que tudo é a sutileza com que ele embaralha as cartas e deixa que o leitor faça o julgamento. Não deixa as coisas claras, insinua. Acho que nem Stendhal chegou a essa sutileza. Outro caso interessante é o de Euclides da Cunha. Recentemente, na Academia, me coube dizer alguma coisa sobre ele. É um caso completamente diferente do de Machado. Você olha aquela farsa científica no começo do livro dele…

Aquelas teorias raciais, da fatalidade do meio, no começo de Os Sertões…
Aquilo não tem nenhum interesse. A parte literária, propriamente, também não, porque o gongorismo não é modelo para ninguém. E no entanto o livro seduz e tem uma presença tremenda no Brasil. O fato é que a questão central do livro, que é a forma como foi tratado o homem do povo neste país, continua completamente atual.

O livro seria uma descoberta do Brasil?
Uma descoberta da sociedade brasileira. Em Machado, impressiona a exposição das angústias e das ambigüidades das pessoas da época. No caso do Euclides, há uma indignação. Ele despertou, abriu os olhos: “Essa gente, pobre gente, catada como bicho”. O Brasil é um pouco isso: está sendo descoberto ainda.

Falando em descoberta do Brasil, como o senhor avalia Gilberto Freire?
Quando descobri Casa Grande e Senzala, ainda na Paraíba, fiquei maravilhado. É notável a importância positiva que Gilberto deu à miscigenação. e a maneira como o fez, tratando-a como um problema de cultura, não de antropologia apenas. A cultura brasileira é que é fruto da miscigenação. Os valores maiores do Brasil são engendrados por essa miscigenação. Descobrir isso teve para mim grande impacto. Depois fui vendo que ele era extremamente limitado em outras coisas. Tinha uma visão estática, não concebia o Brasil como um processo, mas como uma fotografia. Aí me afastei um pouco. Talvez também por causa da decepção de ver um homem que, por força da preocupação social, considerávamos do nosso lado, da esquerda, acabar se tornando um mentor do outro lado.

O senhor o conheceu pessoalmente. Como era Gilberto Freire?
Muito vaidoso.

Igual a Villa-Lobos?
De mais mau gosto. Costumava escrever sobre ele mesmo, na imprensa diária, de forma muito deselegante.

O senhor também conheceu Guimarães Rosa. Como foi essa convivência?
Uma convivência palaciana, no governo de Juscelino. Eu era da Sudene e ele, do Itamaraty. Nos encontramos nas reuniões no Palácio das Laranjeiras [hoje residência oficial do governador do Rio e então pertencente à Presidência da República]. Fiquei admirado por ele não se importar com a má qualidade das traduções de seus livros. Coloquei esse problema, uma vez, e ele me disse: “Quero é que traduzam”. Na verdade não era possível falar com Guimarães sobre literatura. Ele não falava.

O primeiro livro que o senhor escreveu, De Nápoles a Paris,baseado na experiência na FEB, é um livro de ficção, de contos. Nunca mais o senhor pretendeu escrever literatura?
Escrevi bastante. Dez anos depois desse livro ainda escrevia ficção. Mas nunca publiquei. Adquiri notoriedade escrevendo sobre economia e não queria que uma coisa se confundisse com a outra.

O senhor escrevia o quê? Contos?
Romances e contos. É curioso: quando o escritor não se dedica estritamente à literatura, ao escrever literatura acaba fazendo autobiografia, sem querer. O que escrevia era demasiado próximo, demasiado colado à idéia que tenho de mim mesmo e aos problemas que me angustiavam. Então, é melhor abordar isso numa autobiografia do que com personagens inventados.

Como foi recebido seu livro de contos?
Teve boa crítica. Depois aconteceu que o editor faliu e o livro saiu de circulação. Passei vários anos fora do Brasil e quando voltei esse editor me escreveu dizendo que o estoque ainda estava em seu poder. Eu disse: “Mande para o escritório de meu pai”. Ele mandou e achei que, como já me tornara notório em outra área, era melhor esquecer aquilo. Mandei destruir tudo. Esse livrinho é uma raridade.

Quando o senhor voltou ao Brasil, depois do doutorado na França, foi fazer o quê?
Queria trabalhar em economia. A revista Conjuntura Econômica [revista da Fundação Getúlio Vargas] estava começando, na época, e, por sorte, fui trabalhar lá. Um austríaco, Richard Lewinshon, dirigia a revista. Ele me disse: “É raríssimo chegar aqui alguém que sabe de teoria econômica, porque no Brasil ainda não existe esse bicho”. Fui contratado e então comecei a fazer trabalhos de campo — estudos de mercado, coleta de preços. Seis meses depois, surge a possibilidade de ir para as Nações Unidas.

O senhor quer dizer a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), criada pelas Nações Unidas em 1948, com sede em Santiago do Chile. Como surgiu esse convite?
Veio um pessoal das Nações Unidas aqui, dizendo que tinha sido criada essa comissão para a América Latina. Procuraram o [Octávio Gouvêa de] Bulhões [um dos principais economistas do país, posteriormente ministro da Fazenda, falecido em 1990], dizendo que precisavam de um economista brasileiro para integrar a comissão. Eu soube disso, em conversa com Bulhões, e disse que estava interessado. Para falar a verdade, quis sair do Brasil porque tinha me casado com uma argentina, que havia conhecido em Paris, e ela não gostava do Brasil, por causa do clima quente, etc. Era uma moça muito inteligente, uma física, de alto nível cultural.

O senhor se refere à sua primeira mulher, Lucia Tosi.
E a mãe de meus dois filho. Encontrei-me com ela em Buenos Aires, nos reconciliamos e ela decidiu ir para o Chile comigo. Nunca contei isso a ninguém. Fomos para o Chile, logo tivemos uns filho e ficamos vivendo lá. O grupo da Cepal nesse momento era todo de gente de 20 e poucos anos, cubanos, argentinos, mexicanos, tudo rapaziada que saíra das universidades. Trabalhamos duramente para fazer nosso primeiro informe, porque não tínhamos dados. Vim ao Brasil para colher subsídios sobre a parte brasileira do relatório. Falei com todo mundo que entendia de Brasil e comprei livros. Foi aí que comecei a descobrir o atraso do Brasil. No nosso primeiro estudo, o Brasil figurava com atraso em tudo. Tinha uma produção industrial per capita bem menor do que a da Argentina. Eu me sentia até humilhado. Mas fui aprendendo, e me maravilhando com isso. Aí fui trabalhar no problema, ver onde estava o erro. Percebi que o Brasil não era assim por acaso. Ocorre que a classe dirigente brasileira não tinha consciência da potencialidade da indústria no mundo moderno.

Era até contra a industrialização.
Completamente, porque se baseava na teoria do comércio internacional e nas vantagens relativas do Brasil. A vocação do Brasil seria agrícola. Essa teoria era defendida pelo professor [Eugênio] Gudin [papa do liberalismo brasileiro, falecido em 1986], que mandava no Brasil em matéria de teoria econômica. Um indivíduo inteligente, brilhante, mas com uma idéia alienada de Brasil. Aí fui navegando nessas águas, me informando. Se quisesse resumir o que fiz na Cepal, diria o seguinte: me convenci, primeiro, de que o Brasil era um país que tinha uma vocação industrial frustrada e, segundo, de que não se desenvolvia porque não tinha unia política para isso. Era o que faltava. Quando teve uma política industrial, no último governo Vargas [1951-1954], deu um salto. No governo Juscelino [1956-1961], deu um salto ainda maior. Dez anos depois que comecei meus estudos na Cepal, o Brasil já era o país mais industrializado da América Latina. Foi só ter uma política. Os paulistas tiveram muito peso nisso, mas não tinham muita importância política no Brasil. Depois da Revolução de 1932, ficaram deslocados e a grande política no Brasil foi feita pelos gaúchos e pelos mineiros.

A Cepal, apesar de contrariar o pensamento convencional na época, parece ter tido uma influência imediata no Brasil.
Imediata. Por intermédio de São Paulo. Os paulistas já tinham tomado consciência, na época da Cepal, de que a saída estava na industrialização. Roberto Simonsen [industrial e líder empresarial paulista, falecido em 1948] teve um papel importante nisso. Foi o primeiro que levantou a questão da industrialização e da defesa do mercado interno.

Gudin atacava Roberto Simonsen.
Gudin era anacrônico. Um ignorante em economia. Mas Simonsen teve um peso tremendo. [Raúl] Prebischi [economista argentino, dirigente máximo e principal formulador do pensamento da Cepal, falecido em 1986] se ligou ao pessoal de Simonsen. Quando viemos ao Brasil, eu e o Prebisch, ele quis ir a São Paulo visitá-los. Eles levaram Prebisch às fábricas e o homenagearam.

A Cepal contribuiu com a ajuda teórica aos industriais?
A Cepal apresentava um pensamento organizado, mostrando que o desenvolvimento de um país atrasado era diferente do de um desenvolvido. Houve reação da velha guarda. Gudin trouxe grandes especialistas para fazer conferências no Brasil e explicar que a indústria não era a saída para nós. A indústria surgida durante a guerra seria artificial. Era a linha de pensamento convencional. baseada no comércio internacional.

Que idéias o senhor tinha de Getúlio Vargas?
No começo muito negativas, porque eu era de esquerda, muito preocupado com a miséria do Brasil, com os problemas do Nordeste, e o Getúlio me parecia um ditador. Era o homem da censura, inimigo da democracia. Mas isso foi mudando. No último governo dele, quando se torna o paladino da industrialização brasileira, fiquei entusiasmado. Quando morreu, para mim, foi um choque. Estava no Chile.

Desde quando o senhor teve consciência de ser de esquerda?
Desde cedo. Meu pai era maçom, e ser maçom no Nordeste era ter coragem de enfrentar a Igreja. O primeiro choque de poder ideológico que conheci foi do clericalismo contra o liberalismo. Eu era de esquerda desse ponto de vista de livre pensador e anticlerical. Mais tarde, já no liceu, descobri as idéias socialistas, a Revolução Russa…

O senhor ainda se define como homem de esquerda?
Ah, sim. Fui de esquerda a vida inteira.

O que é ser de esquerda, hoje?
É ter certos valores, um certo tipo de idealismo, uma postura positiva, otimista. É acreditar no gênio do homem para transformar o inundo e fazê-lo melhor.

Suas posições ainda têm algo a ver com oposição à Igreja Católica?
Não. Depois a Igreja mudou. Dom Hélder Câmara me ajudou muito na Sudene.

“[JK] era alegre, só queria falar de coisas agradáveis. Se você fosse contar uma coisa desagradável, fechava a cara”

O senhor nunca foi religioso?
Não.

O senhor acredita em Deus?
Sou agnóstico, desde os 12 ou 13 anos. Isso é um pouco herança de família. Meu pai era agnóstico. Ele ia à missa uma vez por ano, mas era o costume da época, era a mentalidade do século XIX.

Por que ruiu a União Soviética?
É um problema complicado. A experiência da União Soviética foi de uma transição que se perpetua. Uma economia em transição é como uma economia de guerra — mobiliza tudo, exige sacrifício de todos e todos se submetem. A União Soviética adotou uma economia de transição e não soube sair dela. Houve um avanço bastante importante na primeira fase. Depois, o sistema não teve capacidade evolutiva. Não soube sair do planejamento centralizado. Então passou a se alimentar da confrontação internacional. Era sua única fonte de legitimidade. Por isso, a tecnologia militar avançou, mas o resto foi sendo abandonado, numa época em que cada vez mais o progresso tecnológico é o que determina a base do poder.

Depois do colapso da União Soviética, qual é o futuro do socialismo?
O socialismo não perdeu nada. Ao contrário, em princípio, ganhou. Fundamental, no socialismo, é a idéia de que o Estado passa a ter um papel secundário. O socialismo tem como finalidade enriquecer a sociedade em detrimento do Estado. Mas a União Soviética fez a experiência contrária. O Estado estava em tudo, o poder era concentrado. Socialismo verdadeiro existiu e existe nos países da Europa do Norte, como os da Escandinávia. São países socialmente muito homogêneos, onde o sistema econômico é comandado privadamente, mas a sociedade tem muita força e a alocação de recursos se faz em função de objetivos sociais.

No governo Juscelino Kubitschek o senhor se engaja na criação da Sudene e se torna seu primeiro superintendente. Como foi sua relação com Juscelino?
Muito positiva. Antes, eu tinha de Juscelino uma idéia simplificada, a do pé-de-valsa, um sujeito superficial. Encontrei-o pela primeira vez nos Estados Unidos, na Universidade de Yale. Ele foi me visitar e conversamos sobre política. Não sei se isso teve alguma influência, depois, no convite que me fez. Era um homem muito alegre, muito comunicativo, que só queria falar de coisas agradáveis. Se você fosse contar uma coisa desagradável, fechava a cara.

A avaliação que o senhor faz hoje do governo dele é positiva?
Positiva. Ele foi o herdeiro de Vargas.

Mesmo Brasília?
Eu o julgo independentemente de Brasília. Brasília criou um desequilíbrio estrutural muito sério. O governo se comprometeu com obras sem retorno previsível, gastou dinheiro a fundo perdido, e isso levou o país a um desequilíbrio. A situação requeria uma grande reforma fiscal, que nunca foi feita. Volta sempre, no Brasil, o problema do desequilíbrio fiscal, criado na época de Juscelino.

Ninguém o alertava para o problema?
Não se podia nem falar sobre isso. Ele dizia: “Brasília é prioridade, Celso”. O Fundo Monetário, como hoje, interferia, e queria que ele parasse Brasília. Ele deu um salto, disse um palavrão pesado: “Filho daquela”. Dizia que Brasília era a transformação do Brasil. Em coisas fundamentais, mostrava uma força e um caráter que nem pareciam saídos daquele homem alegre. Ficava parecendo mais o Vargas. Dos homens que vi, o que no fundo mais se parecia com Vargas era ele.

Mas os temperamentos eram diferentes. Vargas era retraído. Juscelino, extrovertido.
Exato. Eram opostos. Eu tinha um amigo francês que conheceu Juscelino e dizia que o temperamento dele não era de brasileiro.

Por que o senhor acha que brasileiro é triste?
É triste. No passado, o Brasil era conhecido como um país marcado pela escravidão, por uma herança étnica muito negativa. Não transmitia a alegria que se imagina num país jovem e tão cheio de possibilidades. Minha geração teve o privilégio de ver o Brasil se transformar. Nós participamos de uma cruzada de transformação do Brasil. A não ser os asiáticos, nenhum outro país se transformou tanto nesses quarenta anos.

O senhor continuou a trabalhar com o presidente seguinte, Jânio Quadros [1961], apesar de Jânio ter sido eleito pela oposição. Como foi isso?
Eu não o conhecia, não o apoiava, não votei nele, mas ele tinha estado no Nordeste e se convencido da importância da Sudene. Então chamou o José Aparecido [de Oliveira, assessor próximo de Jânio, futuramente ministro da Cultura e governador do Distrito Federal]: “Quem é esse Furtado de que se fala tanto no Nordeste? Por onde ele anda?” José IAparecido, que me contou isso depois, respondeu: “Ah, presidente, esse homem recebeu muitos convites internacionais. Quando muda o governo, no Brasil, muda toda a equipe. Portanto, foi embora. Está na India agora”. Eu estava mesmo na índia naquele momento. Assim que cheguei, recebi uma mensagem para procurá-lo. Ele marcou uma audiência, que se realizou em circunstâncias interessantes. Ele fazia um teatro, para impor sua presença, tão evidente, que até perdia a força. Primeiro, marcou a audiência para as 7 da manhã, horário absurdo na vida brasileira. Depois, me recebeu com muita seriedade, pediu: “Por favor, sente-se”, e pôs-se a despachar pelo telefone, dizendo coisas que não se diz na frente dos outros. Inclusive passou um carão nos militares, por causa da briga entre a Marinha e a Aeronáutica em torno do porta-aviões.

A briga era em torno do porta-aviões Minas Gerais, que o Brasil comprara recentemente da Grã-Bretanha e cuja posse era disputada entre a Marinha e a Aeronáutica.
Quando começamos a conversar, eu disse: “Presidente, quero entregar o cargo. Já está tudo preparado, quero facilitar ao máximo a transição”. Ele disse: “Mas o senhor não vai sair. Vai ficar, e vai ter mais autoridade do que antes. Não vou interferir. Dou ao senhor total autonomia.” Saí dali com uma força tremenda. Aquilo me animou e trabalhei muito bem com ele.

Que espécie de pessoa era Jânio? Um farsante, um desequilibrado?
Não. Era despreparado para o cargo. Era muito inteligente, mas para governar o Brasil é preciso ter um conhecimento maior do país do que ele tinha. Seu problema era o Congresso. Ele não tinha capacidade de articulação política, de fazer compromissos. Transformava o governo num espetáculo e precisava estar permanentemente no centro de tudo. Isso enfraquece um presidente. Acabou ficando isolado.

Prosseguindo nos perfis dos presidentes com quem o senhor trabalhou, de João Goulart [1961-1964] o senhor parece ter uma opinião negativa, não é?
Não. Realista. O que singulariza Jango é que ele teve uma formação política muito especial. Era ligado ao Getúlio da primeira fase, o Getúlio do autoritarismo. Criou-se então num ambiente em que tudo se decidia de cima para baixo e aprendeu a fazer política na estrutura do populismo. Só sabia se comunicar por esse lado.

Como é que se explica a inclinação dele para a esquerda?
Por conveniência. Ele não era de esquerda. Uma vez, em Brasília, eu estava junto dele, porque havia uns estrangeiros, e ele tinha me pedido que servisse de intérprete, quando se aproximou um sujeito e o elogiou muito, por causa do decreto que mandava nacionalizar as terras contíguas às estradas. Era um sujeito ligado ao PC [Partido Comunista Brasileiro, então formalmente ilegal, mas operante], que queria agradar Jango, e Jango gostou. Ele gostava de ser bajulado. Mas eu sabia que aquele decreto era uma bobagem, e que aquele sujeito não estava sendo sincero. O elogio era uma farsa. Então fiz um comentário depreciativo, e Jango fechou a cara. Ele não era capaz de ter uma visão crítica de si mesmo. Era um primitivo, um pobre de caráter. Por outro lado, tenho simpatia humana por ele. Tive pena de vê-lo acuado no fim.

“[João Goulart] era um primitivo, um pobre de caráter. Mas tive pena de vê-lo acuado, no fim”

O senhor costuma defender a tese de que Jango caminhou para uma espécie de suicídio político. Ele como que teria provocado o golpe…
Ele deixou que as forças que operavam nessa direção avançassem. Atribuo isso ao fato de que queria tudo, menos que o [Carlos] Lacerda [então governador da Guanabara, um dos líderes do golpe de 1964, falecido em 1977] viesse a sucedê-lo. No fim do governo dele, no meio daquela situação confusa, caí na besteira de dizer: “Presidente, o senhor precisa dar a entender que não está contra Lacerda. Precisa chegar a uma forma de entendimento para mostrar que o problema não é pessoal”. Ele então respondeu: “Celso, com esse aí não tem conversa. Ele é o assassino do doutor Getúlio”.

No dia 31 de março de 1964, onde o senhor estava?
No Recife, sede da Sudene. Tinha acabado de voltar de uma viagem aos Estados Unidos. Tinha muita papelada acumulada e estava trabalhando muito. Aí chega alguém e diz: “Uma estação de rádio americana está dando que houve um levante militar, em Minas Gerais”. Chamei o pessoal e disse: “Vamos limpar as mesas. Não sei o que está acontecendo. Se é um golpe militar, vão acontecer coisas importantes nesta casa. Então quero que limpem as mesas. Vou ficar trabalhando até a meia-noite”. E assim foi. Quando saí, estava confirmada a notícia. Entrei no carro e ia me dirigindo para casa quando digo: “E se acontece algo quando estiver dormindo? Preciso estar informado. Quem tem mais informações é o palácio do governador”. Então mandei o chofer voltar.

O governador em questão era Miguel Arraes.
Arraes. Ele era o governador do Estado e eu a pessoa mais importante da administração federal no Nordeste. Achei que tinha de ficar ao lado dele. No caminho [para o Palácio Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco], já vi os tanques passando. Quando cheguei, encontrei o Arraes cansado, de roupão, querendo fazer contato com Jango e com pessoas do sul. Fiquei com ele até 3 horas da madrugada. Fui para casa, dormi um pouco e às 8 da manhã estava de volta. O golpe já estava então avançado, o Exército ocupava as ruas. Decidi ir ao comando do IV Exército. Queria saber do comandante, o general Junino [Alves Bastos], maior autoridade militar do Nordeste, o que o Exército estava pretendendo. O general justino me disse: “Olha, Celso, gosto muito do que você está fazendo. Não tenho nada contra você nem contra a Sudene. O problema é que este país está entregue aos máscaras. Por que esse Jango não repete Getúlio e vai para Itu?”

Ele se referia à Fazenda Itu, no Rio Grande, para onde Getúlio se retirou ao ser deposto, em 1945.
Ele dava a entender que não se tratava de um golpe de Estado completo. Que só queriam forçar o governo numa determinada direção. Quando vieram prender Arraes, às 10 da manhã, eu estava no palácio. Eles disseram que a ordem era prender todo mundo e mandar para o IV Exército. Eu disse: “Sou fulano de tal, ex-militar, e vou para o IV Exército por conta própria”. Fui novamente falar com o general Justino e disse a ele que, se quisessem me prender, eu tinha endereço certo. Fiquei ainda na Sudene até eles nomearem um sucessor para mim, um general que trabalhava comigo. Aí fui para Brasília, e estava lá quando saiu minha cassação. Na primeira lista. Fizeram essa homenagem a mim.

O senhor foi cassado no dia 4 de abril, dia em que foi publicado o Ato Institucional n° 1. E então decidiu partir para o exterior…
A saída foi interessante. Consegui me comunicar com algumas pessoas — com João Agripino, político paraibano, por exemplo. João Agripino me perguntou: “O que é que você quer, Celso?” Eu disse: “Quero sair do Brasil e que ninguém me pegue pela gola. Não quero ser preso no aeroporto, dando espetáculo”. Ele foi falar com [Ernesto] Geisel, chefe da Casa Militar [e futuro presidente do ciclo militar, entre 1974 e 1979], que garantiu: “Ele pode sair”.

O senhor partiu de onde para onde?
Do Rio para Buenos Aires. De lá ia para o Chile. Houve um ponto curioso. O avião parou em São Paulo e subiu o [economista, ex-ministro e hoje deputado pelo PPB paulista Antônio] Delfim Netto, que era amigo meu, da época em que ele trabalhara na Federação das Indústrias [do Estado de São Paulo, a Fiesp]. Ele me fez uma festa medonha. Eu me fiz de desentendido, como se não estivesse acontecendo nada comigo. Ele estava indo para uma conferência no Uruguai, tranqüilo, satisfeito da vida. Conversamos o tempo todo, sem tocar no que acontecia comigo. Foi uma farsa mútua. Enquanto isso, pelo Brasil afora, o pessoal estava sendo agarrado, preso, uma coisa horrível. Assim se encerrou para mim esse capítulo.

O senhor acha que ainda pode haver golpes no Brasil ou na América Latina? Ou essa é uma prática superada?
Não é superada.

Que o faz pensar assim?
Minha experiência de observar e estudar a História. O povo que pratica certas coisas volta a praticá-las. Veja a situação do governo atual. Ele vai ficar tão cabalmente dependendo da ajuda e da boa vontade externas…

“Eu estava [em Brasília, em 1964] quando saiu minha cassação. Na primeira lista. Fizeram essa homenagem a mim”

O senhor acha que há perigo de golpe?
O golpe acontece no Brasil um pouco sem ninguém querer nem esperar. O de 1964 foi assim. O próprio comandante do IV Exército me disse: “Não queremos nada mais do que eleições normais. O único trambolho é esse Jango”. Foi com esse espírito que o Brasil se submeteu ao golpe. Mas, uma vez aberto o processo, é muito difícil escapar à perda de controle. Quem vai controlar uma transição difícil como essa por que vai passar o Brasil? Será que Fernando Henrique ainda tem recursos políticos para chegar a um compromisso com a classe dirigente brasileira?

Terminado o regime militar, o senhor voltou à cena, e teve um papel no governo Sarney [1985-1990]. Qual sua apreciação desse período?
Foi um momento de muita esperança. Mas, dois ou três anos depois, ficou claro para mim que havia incapacidade da máquina administrativa para responder a qualquer iniciativa. Eu conhecia bem o governo, de outra época, e fiquei impressionado com a deterioração da máquina administrativa. Em parte atribuo isso à mudança para Brasília, feita às carreiras. Muita gente boa acabou ficando de fora. Também percebi que a classe política tinha se adaptado à ditadura. Os militares tiveram a habilidade de não dissolver formalmente o Parlamento, mas faziam a seleção negativa: quando aparecia alguém de valor, cortavam-lhe a cabeça. As conseqüências foram enormes. Governar passou a ser muito difícil.

Passando para outro presidente que o senhor conheceu bem, de quando data sua amizade com Fernando Henrique Cardoso?
Dos tempos da Sudene. Ele foi ao Nordeste, conversar sobre uma tese que estava escrevendo. Fizemos uma amizade muito estreita. Éramos dois intelectuais de padrão internacional, tínhamos idéias muito próximas e ficamos muito ligados, mas a vida acabou carregando um para cada lado. Havia dez anos de diferença, e isso pesa. Se eu tivesse dez anos menos, que estaria fazendo?

Depois que ele foi para a Presidência, que tipo de relação os senhores mantêm?
Ele teve vários gestos de amizade. Até deram meu nome a um prêmio internacional de economia. Ele me telefona… Quando foi para a Inglaterra me telefonou, perguntando se não queria acompanhá-lo. São belos gestos, mas os problemas substantivos não se colocam. Temos visões globais diferentes uma da outra. Há então uma incompreensão mútua que resulta em impossibilidade de comunicação.

Uma vez o senhor escreveu [no “AutoRetrato Intelectual”, publicado no International Social Science journal, da Unesco, órgão das Nações Unidas para a Educação e a Cultura]: “Muitas vezes me pergunto se o desejo insaciável de penetrar na realidade de meu país não encobre um outro desejo mais fundamental: o de conhecer-se a si mesmo”. O senhor diria a mesma coisa hoje?
Bem, talvez haja nisso uma dose de vaidade — estou me equiparando a Sócrates. Mas, descontando isso, a verdade é que, na minha vida, nunca separei a visão do mundo de meus problemas interiores. A coerência que mantenho vem disso. Nunca tive uma atitude construída senão em função das convicções mais fundamentais. Nisso vai o desejo de se aliar consigo mesmo. E se aliar consigo mesmo é uma forma de se conhecer.

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