Playboy entrevista Ciro Gomes (1995)

chicones
Entrevistas com políticos em revistas antigas
45 min readJan 19, 2019

Uma conversa franca e sem contradições sobre desgovernos do governo, injustiças da Justiça e virtudes do conflito com o tucano que gosta de abrir o bico

crgomes.aol.com.br. É mais fácil encontrar o ex-ministro da Fazenda Ciro Gomes neste endereço (da internet) do que na pequena sala de trabalho cedida pela Universidade Harvard, em Boston, Massachusetts, nos Estados Unidos. Não é que Ciro tenha abandonado os estudos que decidiu fazer durante o atual período de férias da política, depois de catorze anos emendando mandatos de deputado estadual (dois), prefeito de Fortaleza e governador do Ceará, com popularidade de fazer inveja à concorrência. Na verdade, ele apenas descobriu que a Internet é quase tão útil quanto debulhar livros quando se trata de consultar astros internacionais da economia, colegas acadêmicos ou brasileiros em geral, capazes de mantê-lo informado sobre o que se passa na terrinha. Então Ciro fica bom tempo enfiado no escritório da confortável casa de subúrbio que alugou em Belmont, a 20 quilômetros de Boston, às voltas com mouse, teclado, kit multimídia e também chats (conversas por computador), já que é mesmo divertido acompanhar tantos sérios colóquios sobre os destinos do mundo como os diálogos malucos das “bissexuais loiras à procura de orientais canhotas” ou dos “criadores de gansos da Califórnia”.

Ciro sabe, porém, que esse período de total disponibilidade, que lhe permitiu até dedicar sete horas e meia em três dias para gravar esta entrevista, e de recursos fartos, é “totalmente artificial”, como ele mesmo diz. De um lado, lamenta a volta ao Brasil, prevista para dezembro, porque já não vai ter tanto para conviver com os filhos, Lívia (11), Ciro (10) e Yuri (6), e a mulher, Patrícia (32) — a ex-militante do PC do B do Ceará que ele brinca ter ido conquistar lá nas fileiras do inimigo. De outro, não vê a hora de retornar para distribuir, de corpo presente, algumas das alfinetadas que foi espetando ao longo dessa conversa. “Estou muito preocupado com o futuro desse governo do PSDB”, diz o último ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, com a autoridade de quem ficou segurando a vara do rojão eleitoral numa campanha em que o candidato Fernando Henrique Cardoso se preocupava tanto com os percentuais do câmbio e da inflação quanto com os índices apurados nas pesquisas. “Cumpri a minha missão, mas parece que o governo não está cumprindo a dele, porque não dá sinais claros sobre aonde quer chegar.”

Com isso, raciocina Ciro — ainda tão politicamente contaminado que é capaz de comentar episódios de seu governo como se estivessem acontecendo agora — , o presidente vai perdendo tempo e apoio popular, enquanto barganha com o Congresso os próprios objetivos das reformas. Para quem esteve no PDS fazendo discurso pela redemocratização, participou do movimento estudantil sem se embrulhar em nenhuma tendência, jura ter declarado cada centavo arrecadado e gasta de suas campanhas eleitorais, ataca jornalistas e órgãos de imprensa, brigou com o funcionalismo público estadual do Ceará e conseguiu entender-se e até ser amigo do ex-presidente Itamar, o destempero na direção do governo, de ministros e aliados nada mais é do que um passo adiante contra a bovinidade cordial que ele assumidamente detesta. “Precisamos de conflitos”, repetiu Ciro Gomes cinco vezes, entre os mais de trinta cigarros e a meia dúzia de copos de água que consumiu diante do gravador.

Afilhado político do tucano-açu Tasso Jereissati, atualmente governador do Ceará pela segunda vez, filho mais velho entre os cinco do casal Maria José e José Euclides Ferreira Gomes (ex-prefeito de Sobral), Ciro Gomes, 37 anos, saltou da classe média baixa para a elite política por uma combinação muito rara de dedicação , trabalho e sorte. Um de seus amigos de infância, Cléber Soares, vítima de uma combinação oposta, terminou preso e morto na cadeia, numa contraposição que ele costuma descrever para localizar seu endereço original na sociedade brasileira. Ciro nasceu em Pindamonhagaba, a 150 quilômetros de São Paulo, quando o pai, como milhões de nordestinos, corria o Sul do país à procura de oportunidade social, educação e trabalho. Desde os 4 anos no Ceará, o ex-ministro até se esquece da origem paulista. Quando reclama da comparação com o ex-presidente Fernando Collor, que também teve carreira rápida na política, “mas vinha de outra extração social, foi prefeito biônico e é politicamente vazio”, arremata a queixa hilarantemente: “E nem nordestino ele é!” [Collor foi prefeito de Maceió e governador de Alagoas, terra de sua família, mas nasceu no Rio de Janeiro e criou-se em Brasília].

Para ouvir Ciro Gomes, PLAYBOY enviou o repórter sênior Marcos Emílio Gomes, que o encontrou uma vez no Hotel Park Plaza, a uma quadra do magnífico Boston Common, o parque anexo ao mais antigo Jardim Botânico dos EUA, e duas na casa onde o ex-ministro está vivendo, branca, de madeira, típica exceto pelos móveis alugados, poucos e não muito confortáveis, e pela grama visivelmente mais descuidada do que a das residências vizinhas. Com a família no Ceará, em férias, Ciro falou à vontade e ininterruptamente, às vezes descalço, sobre tudo e todos, das ex-namoradas ao dia em que se viu com uma espingarda encostada na cabeça. Para os interessados em detalhes que animam campanhas eleitorais, jurou que nunca fumou maconha e acha que faz mal à saúde, embora estivesse disposto a ignorar as baforadas de algum amigo mesmo quando era governador, falou muitas vezes em Deus e explicou que não viu necessidade de perseguir bicheiros no Ceará durante sua gestão. Defende o direito das mulheres ao aborto e viu casais amigos do período estudantil passarem por esse problema.

Lançado à Presidência da República pelo prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, que se apresentou sem convite no bota-fora da mudança para Boston, no aeroporto de Guarulhos (SP), em janeiro, Ciro agradece, diz que essa ambição é questão de sorte e trabalho e não retribui a gentileza. “Só votaria no Maluf se não houvesse um candidato melhor que ele, mas não há hipótese do PSDB estar extinto na próxima eleição.” Definitivamente, como se vai ver a seguir, o ex-ministro não está preocupado com cortesias.

Playboy: Como está o seu inglês?
Ciro Gomes: Bad! Not, not, not [gaguejando] too good. Not so good. Consigo entender a TV porque a imagem ajuda. Nas conversas, aqui e ali peço para repetirem alguma cisa. Escrevo melhor do que falo, mas estou falando, se me dão algum tempo, embora sempre tenha alguma palavra que não sei como dizer.

E nos estudos, em Harvard, o senhor tem tirado boas notas?
É bom esclarecer que não estou estudando em Harvard. Faço um programa de pesquisador visitante. Dão isso para vinte pessoas por ano. Apresentei um projeto de estudo sobre o contexto político da inflação. A universidade me dá todas as facilidades, incluindo uma sala com telefone e secretária eletrônica. Quanto ao trabalho, já rabisquei as idéias centrais em português. Ainda tenho tempo. Mas não haverá nem sequer uma avaliação. Tenho mais contato com o professor [brasileiro Roberto] Mangabeira [Unger, ligado ao PDT], mas já estive com Jeffrey Sachs [consultor econômico de sucesso em países em desenvolvimento], e esta semana almocei com o maior especialista americano em tributação [pausa]… Não lembro o nome dele.

O senhor também virou consultor da ONU?
Fiz só um trabalho, dois ou três meses depois que cheguei, para o United Nations Development Program, que é um braço executivo da ONU. Fui visitar alguns países sul-americanos, com outros avaliadores independentes, para analisar alguns projetos. Foi a primeira vez que estive no Brasil depois da mudança para cá. No Itamaraty, onde tivemos a pior reunião da viagem.

Por quê?
Porque em todo canto éramos recebidos por ministros e percebíamos a relevância que eles dão à relação com a ONU. No Brasil, prepararam uma reunião altamente formal, até ridícula. De um lado da mesa, o pessoal da ONU, do outro, os brasileiros e, no meio, um embaixador muito pedante falando bobagem. Ainda bem que depois chegou outro embaixador que acabou salvando o cara. Eu já estava envergonhado.

Como o senhor está ganhando a vida aqui nos Estados Unidos?
Estou escrevendo para o Jornal do Brasil [5000 dólares por mês], faço comentários para uma rádio de Fortaleza [1000 reais], tenho uma bolsa da Fundação Ford [2000 dólares], que é bom esclarecer que não é da indústria automobilística. A Fundação Ford é uma entidade independente e muito respeitada criada com dinheiro do pioneiro da indústria automobilística Henry Ford, porque já saiu até carta no jornal O Estado de S. Paulo de uma pessoa decepcionada por acreditar que virei assalariado de uma fábrica de automóveis [risos], e ganho mais um dinheiro que não imaginava que iria aparecer fazendo palestras, uns 8000 dólares mensais.

É um bom dinheiro. Como vai manter esse padrão no Brasil?
Nunca ganhei tanto dinheiro, nem preciso. Tenho que ganhar uns 4000 ou 5000 reais, que é o que me custa educar os meninos e ter algum conforto. Posso ganhar isso na advocacia. É a minha âncora, mas, se Deus me proteger, não quero voltar para isso.

Por quê? Depois de catorze anos fazendo política o senhor perdeu a vocação jurídica?
Não. Aliás, uma das razões desta minha parada é não perder a noção de que a política é transitória. Não diria que estou atualizado sobre o Direito, mas permaneço lendo. Só não gostaria de voltar porque a Justiça me decepcionou. Há quinze, dezesseis anos ainda havia Direito nos processos. Hoje tenho a sensação de que há tráfico de influência e suborno de oficial de justiça.

Como o senhor formou essa opinião?
Como governador vi isso muitas vezes. Contra o Estado, sempre. Por exemplo, o Estado condenado a indenizar um funcionário com um valor superior a 150 anos do seu salário, num processo que está sob recurso. A Justiça do Trabalho é um desastre. E puro tráfico de influência.

Mas que tráfico de influência pode exercer um assalariado?
Bastam o advogado influente e uma porcentagem do bolo da condenação para resolver isso. No Ceará, havia casos sem defesa porque os advogados eram colegas do beneficiado ou até beneficiários da ação. Houve uma juíza do Trabalho que penhorou os bens da Empresa de Pesquisa Agrícola e, sem que tivesse havido novidade no processo, mandou transferir a guarda para os funcionários. Aí foram tirar os equipamentos. Então cometi uma arbitrariedade. Telefonei para o oficial de justiça, avisando que mandaria prendê-lo. Ele disse que cumpria ordem da juíza. E eu: “Então vão você e ela” [risos]. Uma coisa que não tem o menor cabimento. Mas eu fiz. Acabaram indo embora e depois tive que me explicar com o presidente do Tribunal de Justiça. Num outro caso, um juiz mandou pagar milhares de reais para um cara que estava pedindo apenas reintegração ao serviço. Quando anulou a sentença e confessou seu erro, ele admitiu que estava julgando sem ler a matéria. Era pela capa do processo, que estava trocada [risos].

E o seu projeto político para a volta ao Brasil, qual é?
Não sei ainda. Em princípio, não quero ser candidato em 1996, mas tenho até junho para pensar e ainda não estou seguro de nada.

Fala-se muito na sua possível candidatura a prefeito do Rio de Janeiro.
Posso provar que nunca sonhei ser prefeito do Rio: sou eleitor de Fortaleza e a lei diz que o candidato tem que estar no domicilio eleitoral um ano antes da eleição.

A lei pode mudar e beneficiá-lo, como aconteceu quando o senhor foi candidato a prefeito de Fortaleza e tinha domicílio eleitoral em Sobral, fazendo campanha na incerteza até quarenta dias antes do pleito, data em que a nova Constituição foi assinada e alterou a norma anterior.
Sim, pode mudar. Mas, falando sério, essa conversa nunca existiu com interlocutores credenciados…

Então, como foi a conversa com interlocutores não credenciados?
Muita gente me pergunta e fala a respeito. Essa história existe porque eu era muito apoiado lá quando estava no Ministério e fui muito ao Rio. O [governador fluminense] Marcello [Alencar] acabou me convidando para trabalhar com ele. Essa ainda é uma possibilidade. Dois meses depois, o [prefeito do Rio] César Maia [PFL], evidentemente por pirotecnia, disse que eu deveria ser candidato à sucessão dele. Li no jornal. Em seguida, recebi um recado de que ele viria aos Estados Unidos e queria falar comigo. Reclamei que essa fofoca era ruim e que ele nem tinha falado comigo sobre isso, além de ser de outro partido. Não queria encontrá-lo para servir de moldura a outras pirotecnias. O encontro acabou não acontecendo.

Quanto ao professor Mangabeira, ele tem tentado convencê-lo a aderir ao PDT de Brizola?
De jeito nenhum [irritado]. Essa é uma enorme baboseira que alguns
bobocas dizem no Brasil. É até preconceito contra o professor Mangabeira, e eu não sou mais criança. Se, com a minha experiência, não tivesse alguns valores sedimentados, eu seria um imbecil. Estou confortável no PSDB. O professor acredita em algumas coisas, eu em outras. Continuamos cada um na sua. Tenho aprendido muito com ele e as idéias que ele professa nem mesmo são pedetistas.

Sobre essa situação que chama de confortável, antes de ser feita a aliança entre o PSDB e o PFL, o senhor disse considerá-la improvável. E agora, está gostando do governo que resultou dessa improbabilidade?
[Longa pausa, cruzando as mãos diante do joelho.] Não [outra pausa]. Não.

Por quê?
Não sei se é em razão da minha expectativa. O Fernando Henrique na Presidência é um sonho difícil de se repetir. Um homem sério, limpo, intelectualmente sofisticado, não aspira a riqueza, pode se relacionar com as elites, ser respeitado pelo empresariado de São Paulo por exemplo, sem ser aderente e sem ser dependente. Talvez seu maior defeito seja a vaidade, mas isso significa busca de reconhecimento, procurar fazer o que é certo. Enfim, tem um feixe de atributos que lhe dá a chance de ser o primeiro presidente de uma nova era. Sei que não é fácil, mas o tempo está passando. Como estão as coisas no Brasil, não dá certo. Qualquer um se desmoraliza. Estruturalmente, o que mudou no Brasil aqui embaixo [mostra com a mão o nível do chão], tirando fato de que temos um presidente de alta estatura, que esteve aqui nos Estados Unidos e brilhou, me deu orgulho de ser brasileiro? Não mudou nada aqui embaixo [bate o pé no chão, indicando esse movimento com a mão].

Na sua avaliação, então…
Mudou a inflação. Mas já tinha mudado antes e agora tem até um preço sendo pago por isso. Eu li o Plano Plurianual [a proposta de ação do governo] e é a primeira idéia que me faz defender o governo Fernando Henrique. Mas é só um plano.

Onde está o defeito?
Na perda de tempo. Na negociação até o limite de comprometer o objeto dela mesma. Na reforma tributária, por exemplo. Precisamos de uma reforma profunda, estrutural, precisamos mudar o modelo de financiamento do Estado. E esse objetivo vai indo embora na negociação.

“E o Banco Econômico lá é assunto para senador discutir com presidente? Tem que ter norma. E acabou”

A capacidade do presidente está relacionada a essa perda de tempo?
Operacionalmente, tem alguns problemas. Ele concentra algumas atribuições impossíveis de ser bem desenvolvidas por um homem só. Por exemplo, no caso do Banco Econômico, isso lá é assunto para um senador discutir com o presidente da República? Tem que ter uma norma, um critério do Banco Central [inflamado]. Essa norma tem de ser inabalável até para a mãe do presidente. Quer recorrer? Recorre ao ministro, que é o chefe do Banco Central, e encerra o assunto. O presidente não entende nem deve querer saber do assunto. Ele só chama o ministro, diz o que o senador está reclamando. E o ministro explica que é norma, não pode voltar atrás. E acabou. O senador sai feliz com o presidente, que lhe deu atenção, e puto com o ministro.

Mas a impressão que predominou é de que havia um senador bravo com o Banco Central e disposto a incendiar o mercado com várias denúncias…
Mas isso ele sempre pode [mais inflamado]. Então, em lugar de quebrar um ovo, vai quebrar doze pela mesma questão. Tem que dizer: “Senador, diga lá, que quem o senhor provar eu vou foder, e acabou.” Se tem sujeira na relação do Banco Central com o mercado financeiro, o país precisa saber. Mas Fernando Henrique tem é uma certa aversão a confusão.

E essa é uma característica pessoal que complica?
Na circunstância presente, sim. Porque nós não vamos sair do atoleiro em que estamos sem alguns conflitos. No Brasil, a aversão a conflitos é vista como uma virtude, pelo menos nos escalões da política conservadora. Elogia-se a capacidade mágica do [falecido presidente] Tancredo [Neves] e a facilidade que a sociedade brasileira tem de evitar os conflitos raciais ou religiosos. Isso é muito bom, mas no plano da política essa vocação para a contemporização era a grande virtude do velho PSD [Partido Social Democrático, uma das três mais importantes legendas pré-1964, junto com a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)], que se projetou para a História como o partido da oligarquia rural. Contemporizou com a ditadura de Getúlio [Vargas], com todas as aberrações, com a corrupção mais desbragada. Acho isso um vício de elite no Brasil.

Quais as alternativas?
Há poucas, mas a única eficaz, provada pela História, é pôr na jogada a população hipoteticamente beneficiada pelas reformas…

Uma estratégia João Goulart [que buscava nas ruas o apoio que faltava no Congresso]?
Não [levemente irritado]. João Goulart foi um boboca que descolou do mundo real. A questão é outra. Veja o caso do Collor, que fez um seqüestro, na verdade um empréstimo compulsório da poupança, com medida provisória. Uma coisa flagrantemente inconstitucional. Mas foi acatada pelo Congresso, onde ele jamais teve maioria, e pelo Judiciário, apesar da irregularidade. E foi aplaudido pelas vítimas. Por quê? Porque há uma força que sai das urnas. A eleição é passional. No dia seguinte, o eleito tem força, porque o povo, desesperado, entrega-lhe todas as fichas e espera que ele se vire para resolver tudo, como aliás lhe foi prometido. Mas se a vida do povo continua um inferno, aquela esperança de ontem vira uma superfrustração, decepção [pausa]… ódio. Nesse dia praticamente se desconstitui o mandato antes do tempo.

É isso o que vai acontecer com o presidente Fernando Henrique?
Ele está ameaçado disso. Só não creio que vá permitir que essa administração se renda como o governo José Sarney. Meu silogismo é: se, do jeito que está, é certo o fracasso, e, se fizer a proposta na direção certa, o fracasso é muito provável, mas há uma possibilidade de êxito, o que se faz? Claro que se deve buscar a possibilidade remota de êxito. Não estou defendendo jogar o povo contra o Congresso. Defendo uma sinalização clara da intenção do governo. Dizer que não tem dinheiro para fazer a reforma agrária, por exemplo, é honesto mas é pouco. Afinal, se o governo vai gastar 22,5 bilhões de reais em títulos para pagar juros da dívida [pública interna], por que não usa mais 2 bilhões, 1 que seja, e inicia uma reforma agrária inequívoca? Se sentir as intenções, o povo respalda e faz pressão favorável contra quem quer manter as coisas como estão.

Se o PSDB ganhou a eleição para a Presidência e o senhor colaborou para isso, por que acabou ficando desempregado?
Primeiro porque atividade pública não é um emprego convencional. Segundo porque estava mesmo determinado a me retirar por um ano para fazer essa experiência aqui em Boston. Por isso não renunciei ao governo do Ceará dentro do prazo de desincompatibilização [para ser candidato a algum cargo eletivo]. A própria convocação para o Ministério veio de surpresa. Tanto que eu, num primeiro momento, não aceitei o convite. A viagem foi providenciada entre agosto e setembro do ano passado.

Mas o senhor não foi convidado para nada no novo governo?
Essas coisas não se falam porque são indelicadas [tenso, não se acomoda no sofá]. Mas certamente se quisesse ficar no Brasil trabalhando no setor público teria ficado.

A impressão que ficou no Brasil foi que o senhor segurou um rojão e depois foi despachado sem nem ouvir um agradecimento…
Tive muitas compensações. O presidente Itamar me faz um reconhecimento muito confortável. Quero evitar dizer que fui convidado para isso ou aquilo.

Dizem que a melhor oferta que o senhor teve foi de assumir o Ministério da Saúde.
Isso nunca aconteceu. Houve muita fofoca. Além disso, num assunto desses ninguém é direto. Ninguém pergunta: “Quer ser ministro?” Fala-se indiretamente, elogiando o trabalho, dizendo que seria bom tê-lo disponível: “Seria bom você ficar, se poderia ver uma área que fosse boa para você.” E eu disse: “Ah, está bom. Obrigado, mas vou mesmo passar um ano fora.”

Quem foi o interlocutor dessa conversa?
Não digo. Era importante. Só isso.

Então vamos resolver a questão. O presidente Fernando Henrique convidou ou não o senhor para compor a equipe?
Se tivesse convidado, eu não diria. Como não estou no governo, isso iria significar que não aceitei. Então não posso falar nisso.

Já que falamos na Saúde, o ministro Adib Jatene é um bom candidato à Presidência?
Se for candidato do PSDB, pode ser. É honesto, trabalhador. Não tem propriamente opiniões explícitas sobre a organização do Estado ou a ideologia do PSDB, e percebo também um traço conservador sob esse ponto de vista. Mas teria capacidade de comandar, como candidato do PSDB.

E o ministro José Eduardo Andrade Vieira, da Agricultura, que não esconde a intenção de chegar lá?
[Indignado.] Aí, não. De jeito nenhum. Aí é o fim. Não posso falar da honestidade pessoal dele, mas não acho que ele seja competente. O que está acontecendo no Brasil, onde uma criança de 7 anos é assassinada pelas costas num incidente medieval de luta pela terra, é sinal muito eloqüente da inércia que há na área. Além de inércia, provocação: o ministro nomeou um fazendeiro para gerir um órgão encarregado de mediar conflitos [o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)].

Ele é o pior dos ministros?
Um dos piores.

Quem são os outros?
Rapaz, eu sou aliado do governo [risos]. Talvez seja melhor perguntar isso a alguém da oposição.

Mas não fica injusto citar só o ministro Andrade Vieira?
Ah, mas esse é um caso público.

Então vamos por partes. O ministro Sérgio Motta, das Comunicações, está se saindo bem?
O Sérgio Motta é um militante fascinante que devia ser imitado por todos os do PSDB. Claro que um militante pode cometer erros políticos, mas é franco e leal.

Ao PSDB ou ao presidente Fernando Henrique?
É das duas partes. Uma faz parte da outra, mas é um militante inequivocamente do Fernando Henrique. No governo, por exemplo, ninguém é tão leal e disposto a ir para a linha de frente como ele. E falta muito isso, ainda. Falta mais Sérgio Mona no governo. Ainda que não tenha acontecido na área dele [irritado, repete várias vezes a mesma frase]. Liga-se de São Paulo para o Ceará e a chamada cai num açougue na Mooca. Isso aconteceu comigo. Sem falar na fila de dois anos de gente esperando um telefone. É um acinte. Até agora ele é inocente, mas daqui a dois anos não pode dizer mais isso.

E o ministro do planejamento, José Serra, está planejando bem?
Para o meu gosto, também não. Com o Serra tenho uma diferença que é muito menor do que se imagina, mas ela existe. Até já disse que se o Serra for candidato do PSDB, voto nele. Não tenho restrição moral a ele. Tenho restrição de idéias e de comportamento.

De onde vem o desentendimento entre os senhores?
De muitos episódios [realça as palavras]. Na eleição dele para líder do PSDB [na Câmara dos Deputados, em 1991], na primeira vez que se candidatou, fiquei furioso com sua solidão egoísta, seu jeito de usar as pessoas. Ele me liga e diz assim: “Gostaria muito de ser líder mas não tenho os vo-tos”. [Como governador do Ceará], trabalhei, então, por esses votos. No dia da eleição, ele me liga: “Ciro, estive pensando, acho que forcei a barra. O pessoal não gosta de mim. Então o líder vai ser o Arthur da Távola [PSDB-RJ].” Jogada pura! Ele queria o lugar de líder mas sem o desgaste correspondente. O Arthur da Távola é uma pessoa que ele imaginava manobrar e que não faria contraste a sua vaidade.

O que aconteceu, então?
Aí eu disse: “De jeito nenhum. O apoio é para você. Se você não vai ser, então vai ser o Sérgio Machado [PSDB-CE]”, o nosso senador, que era deputado na época. Aí ele ligou, depois de dez minutos, dizendo que tinha decidido ser líder. Depois, quando o Fernando Henrique era ministro da Fazenda e se renegociava a dívida externa aqui nos Estados Unidos, estavam todos os credores querendo ter certeza da revisão constitucional. Um negócio grave, sério, dramático [vai elevando a voz enquanto enfileira adjetivos]. Aí o Serra dá uma entrevista dizendo que o PSDB não apoiava a tese da revisão. Fomos eu, o Tasso [Jereissati] e o Fernando Henrique para Brasília, pegamos o Serra: “Porra! Que loucura é essa? Fernando pendurado na broxa lá nos Estados Unidos, garantindo a revisão, e você dizendo que o partido é contra?” E ele: “Ah, mas todo mundo sabe que es-sa revisão não passa.” Ainda que não passasse, um líder do partido do ministro não podia dizer isso.

Há mais algum episódio desse tipo?
Noutra vez, o Fernando Henrique estava tomando as primeiras providências do Plano [Real] quando o deputado Paulo Paim [PT-RS] apresentou um projeto elevando o salário mínimo para 100 reais. Para que o projeto fosse a deliberação, precisava da assinatura de todos os líderes. Quando vem, surpresa! Pou! Primeira grande derrota de Fernando Henrique no Ministério. É de se perguntar o que estava fazendo a assinatura do líder José Serra naquele requerimento. O presidente Itamar foi obrigado a vetar o projeto. Pergunta-mos a ele, que respondeu lembrando da prática parlamentar de todos os líderes assinarem. Prática em cima de uma coisa dessas, liquidando o processo! Mais um caso: eu ministro da Fazenda e ele nucleando gente em São Paulo, o tempo todo, contra a política cambial, porque ele é organicamente comprometido com essa turma. Um cara me ligou contando: “Olha, o Serra estava f-lando mal de você conosco, hoje, numa reunião assim, assim, assado.” E falava mal também do Fernando Henrique, do Plano Real. [Pausa.] Por isso me dava bem com o Antônio Carlos Magalhães [atual senador pelo PFL da Bahia, governador na mesma época que Ciro]. Entre outras coisas, é franco. Nunca concordamos em quase nada, mas ele luta aberto.

O senhor já elogiou muitas vezes o senador ACM. Ainda gosta dele?
Como B [de Bahia] e C [de Ceará] são vizinhos de alfabeto, em muitas das reuniões que tínhamos em Brasília, como as da Sudene, estávamos sentados lado a lado. Reconheço nele um camarada muito experimentado, assim como eu sou um político ainda novo, que precisa sempre aprender. Então começamos a falar. E curiosamente sempre muito antagônicos. Nosso primeiro grande choque foi num aniversário do Collor. Os governadores fizeram uma festa para ele. Resolvi não ir. No dia seguinte, todo mundo me encheu de pancada pelos jornais, mas Antônio Carlos foi fino: “O Ciro Gomes não veio? Eu não notei” [imitando a ironia do senador baiano]. Não é fantástico [entusiasmado]? Aí mandei o cacete nos outros e liguei para ele para brincar sobre o assunto. Ele sempre me tratou com um carinho paternal.

O senhor concorda com a definição que se usou — chantagem — para a ação do senador no caso do Banco Econômico?
Olha, foi uma pressão com certeza. Não usaria a palavra chantagem. Ele errou. Foi uma pressão espúria. Isso é forte também. [Realçando as palavras.] Mas errou conforme o padrão de julgamento. Se entendermos que ele é um representante da Bahia, e ponto, qualquer eleitor do Brasil adoraria ter seus interesses cuidados com a mesma garra, atrevimento e entrega com que o Antônio Carlos defende o eleitorado dele. Sei que isso é a contramão dessa onda atual, e detesto essas ondas.

O senhor faria o mesmo por um banco cearense?
De jeito nenhum. Aliás, não fiz. O primeiro banco que fechou [depois do Plano Real], foi o Bancesa, Banco do Ceará, que na origem era Banco de Sobral S.A. Era importantíssimo para nós, até do ponto de vista afetivo, de tradição. Mas não tinha o que fazer.

A crise do Banco Econômico foi mais um degrau para baixo nessa crise que o senhor aponta no governo?
Graças a Deus o presidente voltou atrás no início da crise. Senão teria acabado o governo naquela horinha ali mesmo. Há coisas que às vezes quem está no palácio, cercado de áulicos, não percebe. Por exemplo, assinar a anistia do Humberto Lucena [senador do PMDB da Paraíba, ex-presidente do Congresso, condenado pela Justiça Eleitoral em 1995 por ter usado indevidamente a gráfica do Senado para fins eleitorais] logo na chegada. Pode até haver mil justiças nesse ato. Eu mesmo não senti muita justiça naquela condenação, não. Mas tem coisas que são lamentáveis e não se pode fazer, porque são paradigmáticas. Fernando Henrique até conseguiu se livrar um pouco dessa memória. Mas tudo isso vai se sedimentando e criando a imagem de um cara que não consegue confrontar, que no “Existe alternativa ao PFL, com essa esquerda oportunista, burra e inconseqüente que o Brasil tem?” primeiro grito abre mão. E isso é mortal. No caso do Banco Econômico, a imagem de ter voltado atrás quando todo mundo chiou é ruim, mas é mil vezes melhor do que poderia ser.

E, juntando as duas coisas, dá para governar com um senador que vai ao Planalto e depois sai comemorado por ter dobrado uma intenção do presidente?
O papel do senador é esse. Cabe ao presidente e aos auxiliares criar um antídoto para isso. Às vezes um integrante do PFL assume uma caricatura arrogante, como naquele gesto de atravessar a rua feito um xerife com um bando de capangas. Mas essa até foi transparente. Pior é quando você e o camarada estão dentro de uma sala, e fica lá ele fazendo um apelo por alguma coisa pessoal.

Então aquela aliança com o PFL que o senhor contestava não precisa mais ser desfeita…
Espera aí. Você tem alternativa?

Perguntei primeiro…
Mas eu estou perguntando em resposta. Existe alternativa? Com essa esquerda irresponsável, inconseqüente, oportunista, ‘burra e sem projeto
que o Brasil tem? É melhor com o PFL, porque pelo menos se pode conversar com eles em torno de um negócio concreto. Aliança pode ser muito ruim mas também pode ser muito boa. O que faz a diferença é a hegemonia moral. Para mim, não é que a aliança fosse improvável. Era desnecessária. Fernando Henrique seria eleito presidente da República, como em tese qualquer outro seria eleito, sem querer tirar dele nenhum mérito, pela conjuntura brasileira.

Como assim?
A população não acredita no radicalismo retórico do Lula, percebe instintivamente a inviabilidade desse mundo ideal sem quebrar ovos. Mas o povo brasileiro também não é reacionário. Quer mudança. Então esse perfil estava lá para ganhar a eleição. E havia o Plano Real. A gente sabia, e eu participei das reuniões de formulação do plano, que todas aquelas primeiras etapas iam dar na queda drástica da inflação. No mundo inteiro, num momento desses, há um fortalecimento enorme dos autores de um plano ou do candidato comprometido. com ele. Era evidente que íamos ganhar a eleição e que o PFL nos acompanharia de graça, pensava eu. E também achava que, se a gente não se desse bem, uma aliança formal com eles de nada adiantaria, porque eles acabariam indo para o lugar em que estivessem bem. Quando conversamos a respeito, Fernando Henrique até foi muito nobre. Ele acreditava que o que viria depois era uma tarefa que exigiria uma engenharia política sofisticada e que era melhor legitimar essa aliança, com suas contradições, já no processo eleitoral.

Então isso o convenceu a votar a favor da aliança?
Votei. Nós tínhamos um núcleo básico, e uma vez resolvido o que fazer, esse grupo jogava unido. A aliança era contra a minha opinião, mas votei a favor. E Fernando Henrique me pediu para fazer um discurso na convenção e eu fiz. Participei de tudo. Mas minha opinião não mudou. Aí eu fiquei quieto lá em casa, até que houve o lançamento do [senador Guilherme] Palmeira [do PFL de Alagoas, o primeiro candidato a vice de Fernando Henrique]. O Fernando disse que era simbólico da unidade do partido e me pediu para ir. Fui, fiquei sentado lá na mesa. Aquela mesa que caiu [pequeno acidente bastante divulgado] por causa do peso da aliança [risos]. Voltei para casa e fiquei quieto de novo. Aí veio a substituição do Palmeira pelo Marco Maciel [então senador pelo PFL de Pernambuco]. E me pediram de novo para ir a Brasília. É
verdade que não tinha entusiasmo, realmente, mas fui.

Não é estranho um sujeito que foi do PDS fazer tantas restrições a um partido conservador?
E preciso entender o contexto. Quando saí da faculdade e voltei para Sobral, não tinha nenhuma filiação partidária. Meu pai, àquela altura, era prefeito pelo PDS, porque não havia outra legenda na cidade. Quando chegou o ano de 1982, havia a sucessão dele, que tinha sido candidato pela Arena, na época da sublegenda [recurso que permitia aos dois únicos partidos admiti-dos pelo regime militar terem, dentro de si, diferentes correntes e candidatos a pos-tos majoritários]. Ele lançou um candidato e saiu um pacote instituindo o voto vinculado [todos os candidatos escolhidos tinham de ser do mesmo partido]. Então meu pai me chamou e disse que precisava que eu concorresse à Assembléia Legislativa. Brigamos, passei uma semana fora de casa, acabei aceitando. Mas decidimos marcar nossa posição votando contra o senador e o governador do PDS. Foi o voto camarão: o eleitor votava só até deputado, mas não escolhia ninguém para a cabeça. Sobral foi o município com a maior proporção de voto camarão do Ceará. O dia de assinar a ficha do PDS foi um horror. Só pensava nos meus amigos.

O que eles diziam?
Os amigos mesmo entenderam. Fiquei como segundo suplente, e inimigo do governador, mas ele convocou dois deputados para o secretariado e acabei assumindo. Falava em defender a democracia, combater o autoritarismo, mesmo no PDS, onde ninguém mandava em porra nenhuma. No ano seguinte mudei para o PMDB. Digo a você: o PDS era muito mais confortável porque era inorgânico, nunca tinha reunião para nada. E o PMDB é um ajuntamento de canalhas da pior estirpe, salvo meio dúzia. Como era oposição consentida, atraiu aquela turma que era vistosa por alguma razão: futebol, rádio, qualquer coisa, menos posição crítica. Para completar, o governador [Luiz Gonzaga da Fonseca Mota], com a turma dele, que era a escória lá do Ceará, aderiram ao PMDB também [risos].

Já que estamos passando pela política cearense, vamos relembrar aquele episódio do caminhão de trigo da família Jereissati que foi multado no seu primeiro ano de governo…
Ai [põe a mão na cabeça]

Como foi essa história?
Foi uma das vezes em que percebi uma relação pouco séria entre órgãos de imprensa e o dinheiro. Evidentemente, eu nunca tomei conhecimento de multa nenhuma, até o problema aparecer. Mas como éramos duros com os funcionários, botando muita gente para fora por corrupção, eles nos testavam algumas vezes. Creio que essa foi uma das tais situações. Multaram. Isso deu início a um processo normal, e então vazaram a notícia para um jornal de Fortaleza. A idéia era provocar meu rompimento com o Tasso. Aquela história da criatura contra o criador. Então circulou que eu tinha mandado multar o irmão do Tasso [Carlos Francisco Jereissati, dono da empresa proprietária do caminhão em questão]. Logo concluímos que era uma provocação.

Mas o caminhão estava em situação irregular?
Estava. Depois apurei. Mas me telefona o Carlos Francisco [engrossa a voz]: “Porra, sacanagem, o caminhão está regular. Desvencilhei em Vitória e a nota fiscal ficou na fábrica, em São Paulo.” Pedi calma, e ele me agredindo [engrossa a voz novamente]: “Porra! Sacanagem! Não sei o que você está pensando.” Voltei a pedir calma: “Primeiro vamos saber” [interrompe a si mesmo, engrossando a voz de novo]. “Como você vai querer que eu acredite nisso?” Falei: “Vamos mudar o tom, porque não é assim, não. Se estiver ilegal vai ser multado e acabou. Agora vamos começar a conversar de novo” [interrompe-se outra vez, com a voz grossa]. “Não. Você vai ver. Pegue a [revista] IstoÉ da semana que vem!” Não deu outra: a IstoÉ me esculhambando. Resultado: o Tasso ficou puto, passou a me defender, deu uma enorme confusão.

Sua amizade com Tasso parece realmente inabalável…
O que sou, devo a ele e a meu pai.

Seu pai já fazia política quando o senhor era pequeno?
Quando voltou de São Paulo, começou a participar da vida comunitária, digamos assim, mas sem ligação partidária. Meu avô tinha sido deputado classista [deputados que, no regime da Constituição de 1934, representavam categorias profissionais, à maneira fascista], na época de Getúlio Vargas. Mas pode-se dizer que a minha família está na política de Sobral há 100 anos. E na de Pindamonhangaba também, pelo lado da minha mãe. É uma carga genética pesadíssima [risos]. Meu pai era UDN fanático, idealista.

O senhor tem alguma lembrança do golpe de 1964, quando tinha 6 anos?
Quase nenhuma. Digo sempre que não sou um dos heróis da resistência [risos]. Lembro de um episódio de 1968, quando estava na escola primária e vi uma passeata. O que me chamou a atenção foi um jumento, na frente da manifestação, com um cartaz aqui [mostra o peito] com o nome do prefeito. Depois disso, houve também o caso de um rapaz que preparou um coquetel molotov para soltar no palanque do 7 de Setembro. Para ver como o interior do Ceará era uma redoma, ele foi preso, mas o coronel chefe da polícia local avisou a família para tirá-lo de lá porque o Exército, sabendo do caso, estava indo buscá-lo. A família procurou meu pai, que era advogado e foi ao quartel, onde acabou dando fuga ao rapaz, meio na cara do freguês. Outra situação de que me recordo aconteceu no Colégio Sobralense, cujo jornal dos estudantes uma vez recebeu a vista de uma pessoa da Polícia Federal por uma bobagem dessas que a gente andou escrevendo [risos.] Maluquice, né?

“[Ainda diz que Quércia é ladrão?] “Penso comovidamente. Ele é. E não pretendo me retratar na Justiça”

É bom para esta entrevista falar desse período, porque o senhor é um dos primeiros dessa safra de estudantes a ganhar projeção política.
Mas tem o Zé Dirceu [o ex-líder estudantil e ex-deputado paulista José Dirceu, atual presidente do PT]

Sim, mas ele é um pouco mais velho e não foi governador nem ministro. Foi candidato [ao governo de São Paulo, nas eleições de 1994]
Hum, hum [visivelmente satisfeito com a comparação]! Tem o [deputado Marcelo] Barbieri [PMDB-SP], que é quercista…

Falando nele, o senhor processa e está sendo processado pelo ex-governador Orestes Quércia, porque um chamou o outro de ladrão.
Verdade.

O senhor continua dizendo que ele é ladrão?
Penso comovidamente. Ele é.

No processo que ele move contra o senhor, já houve oportunidade de repetir isso diante da Justiça?
Ainda não. Quando me perguntarem, vou reafirmar o que disse. Já pedi desculpas muitas vezes por coisas das quais me arrependi. Quando falei, por exemplo, que o grupo de nazistas que matou um cearense a chutes em São Paulo era composto de homossexuais, pedi desculpas aos grupos gays. No caso do Quércia, não vou me retratar.

De onde o senhor tira elementos para acreditar nessa acusação?
Do rombo de São Paulo e da fortuna pessoal dele.

Mas o governador Luís Antônio Fleury Filho, que foi sucessor dele…
O Fleury é uma caricatura do Quércia. É pior, porque é incompetente. O Quércia é um mafioso competen-te. O Fleury é Um boboca [pausa]. Da mesma natureza que o Quércia, na questão moral. Nenhum Estado está com mais dificuldades do que São Pau-lo. O que eles fizeram no Banespa fere dez artigos do Código Penal, do Código Nacional de Contabilidade, da Lei dos Orçamentos. Um monte de operações ruinosas feitas sem garantia. [Irritado.] Do ponto de vista contábil, Quércia foi o maior malfeitor da História brasileira contemporânea. Está tudo lá. É claro que ninguém assina em cartório que é corrupto. Aos 24 anos, eu não tinha patavina. O que se diria de mim se, dez anos depois, tendo sido deputado, prefeito, governador e ministro, aparecesse com 50 milhões de dólares, 10 milhões, 1 que fosse? O dinheiro que a VEJA provou que o Quércia tem, de onde vem?

Quando ele o atacou dizendo que o senhor usava brinco depois do expediente, não apareceram mulheres querendo chegar as insinuações que ele fazia?
[Gargalhada.] Infelizmente, não. Mas se fosse por essa razão, eu não me sentiria estimulado, não. Aliás, o idiota não percebeu que isso é simpático. A garotada e os intelectuais usam brinco. E ninguém tem sua masculinidade questionada por isso.

“Num hotel, uma mulher bate à porta: ‘Quero ficar aqui.’ Pode ser plantação de algum adversário”

O seu sucesso como político jovem, aliado ao jeito que muita gente classifica como boa-pinta, nunca deixou as mulheres alvoroçadas a sua volta?
Isso tem. Mas toda pessoa que tem visibilidade pública passa por isso.

A que ponto?
Tudo o que se pode imaginar. Estar num hotel do interior e alguém vem bater à porta. Aí abre, é uma moça. Mas tem que admitir como primeira hipótese que algum adversário pode estar plantando aquilo [risos]. Então já não tem tesão na partida, além de ter chegado ao hotel morto de cansaço. Aí pergunta: “O que você quer?” E a resposta: “Ah, eu quero ficar aqui.” E eu, por pura gentileza: “Olha, minha filha. Vá para casa. Estou cansado. Talvez amanhã. Me deixa o seu telefone.” Isso aconteceu algumas vezes. É desagradável. E há as cartas. Elas chegavam e muitas vezes era minha mulher quem abria. Algumas diziam que sou lindo, que gostavam muito de mim. Botavam marca de batom no papel, pediam para telefonar. Muitas vezes até escrevi de volta, agradecendo a gentileza.

Isso cria um universo de tentações…
Sim, claro.

Não dá vontade de cair em alguma?
Às vezes, sim. Mas tem outras questões em jogo.

O senhor nunca caiu em uma tentação dessas?
Se caísse, não diria [risos]. Mas não pode. Nessas circunstâncias, é um erro fatal.

E o senhor não se arrepende de ter se desviado de ceras tentações?
Ah, sim, sim [quase nostálgico]! se pudesse [suspirando, risos]!

Para lamentar assim, talvez numa das vezes se tratasse de uma mulher conhecida.
Não. É que aparece mesmo. Mas mulheres famosas caem menos nisso. O universo é outro. Acho que político normalmente é até meio desprezado. Tenho muito acatamento em ambientes assim, mas aí o universo é outro. Uma olhada, uma brincadeira…

Um flertezinho?
Uma brincadeira…

E…?
E não dá. Você é tão público, tão visado. Não dá.

Quem são as mulheres que o senhor admira?
Me vem à cabeça a Fernanda Montenegro.

“Um político tira minha mulher para dançar. Não gosto. Mas nunca fui de tirar satisfações”

E as que atraem sua atenção por razões mais libidinosas? Quem são as interessantes?
Acho a Marisa Monte especialmente bonita.

Foi com ela aquela troca de olhares da qual o senhor falou an-tes?
Se fosse, não falava [risos]. Mas não houve nada. No mais, tenho o padrão do brasileiro médio. Todos esses ícones aí eu admiro. [Divaga.] Sônia Braga… Essa Adriane Galisteu não acho uma coisa muito especial. Acho a Xuxa bonita, delicada, interessante.

Mas para levar para uma ilha deserta seria mesma a Marisa Monte?
Não posso falar isso [simulando um susto]. Não sei se ela é casada…

O senhor é…
[Risos.] É. Eu sou.

Sua mulher é compreensível com a vida de político, que chega tarde, passa noites fora de casa?
Completamente. Tem o ciúme normal, que é gostoso. Se não tivesse, até acharia ruim. Ela pergunta sempre onde eu estava, diz que tentou falar comigo. Mas muito ciúme também seria impossível, porque chegava com mancha de batom na camisa.

E aí, que desculpa o senhor dá?
Nenhuma! [Risos.] Digo o que aconteceu mesmo. Foi uma velhinha que me beijou [risos]. Nem sempre foi uma velhinha, claro. Ela sabe que são as meninas. Mas sabe também que isso faz parte da política. Ela brinca: “Uma velhinha né? Safado!”

E o senhor, é ciumento?
Muito. Roupa, por exemplo. Ela gosta de minissaia. Eu não gosto. Acho bonito, mas não gosto. Mas se ela usar não vou brigar. Agora [pensa]… Até já aconteceu tentativa, assim, e ela se desvencilha com muita habilidade. Suponha: vamos para o interior, numa festa, e um desses políticos a convida para dançar. Eu não gosto. Mas nunca fui tirar satisfações. Ela se sai muito bem.

Nunca aconteceu nenhum equívoco nessa área? Alguém se aproximar dela sem saber que é sua mulher?
Na minha frente, nunca. Na rua certamente já aconteceu. É normal, na rua, as pessoas verem uma mulher muito bonita e fazerem uma gracinha. Mas ela nunca falou nada. Acha que me poupa.

Quando vocês namoravam, como era Sobral, do ponto de vista de liberdade sexual?
Não havia nenhuma.

E como era o namoro de vocês?
Namorei depois que voltei para Sobral. Tínhamos uma relação aberta. Ela era líder estudantil. O pai morreu quando ela estava com 10 anos. A mãe morava em Belo Horizonte. Tinha um avô em Sobral, tia e uma avó em Fortaleza. Os parentes queriam saber aonde ia, que hora voltava, essas coisas. Mas como eu tinha boas referências familiares, comigo havia menos problemas. Mas queriam saber. Então, se a gente ia dormir junto, por exemplo, tinha de falar que ia passar a noite na casa de uma amiga. Primeiro a gente namorou escondido porque ela namorava outra cara e eu, uma outra menina.

O senhor, que se casou aos 24 anos, nunca se arrependeu de ter renunciado cedo aos prazeres da carne?
Eu já tinha namorado tudo c que queria. Vivia sozinho. Imagina, na quela idade, sem ninguém para enche’ o saco, sem hora para sair ou chegar! Namorava duas, três. Eu atribuo muita coisa ao movimento estudantil. É um ambiente muito generoso. Ia panfletar, ia pichar à noite. E as meninas também estavam ali para afirmar sua própria identidade. Aquilo é um espaço de contestação aos dogmas familiares.

E o senhor ajudava as amigas a contestar…
Ah, é [risos]. Em viagens para congressos, fim de semana. Se chegava quinta-feira e estava aporrinhado, dizia: “Vou passar um tempo na praia.” Pegava um ônibus, ia para uma colônia de pescadores fazer comunismo, de preferência tomando cachaça e comendo peixe frito. Passava quatro, cinco dias, com duas, três meninas por lá.

Duas ou três!? Então realizou aquelas fantasias…
Não [rápido]! Era uma turma, mas normalmente as relações eram monogâmicas. Lembre que sou um matuto do interior do Ceará [risos].

E alguma experiência homossexual?
Também não, nem quando era pequeno.

Pode acontecer…
Não é provável [firme].

O senhor se iniciou cedo?
Me preparei para essa pergunta [risos]. Mas na verdade foi uma coisa completamente sem graça, violenta, chocante. Tinha 14 anos. Gostaria que meu filho tivesse uma experiência melhor.

O senhor pagou?
A turma pagou para mim. Eu não tinha dinheiro nenhum. Fomos para lá e um deles era mais esperto, conhecia lá o ambiente, já tinha ido. Conhecia a moça. Não gosto nem de lembrar. Foi péssimo! Ficou aquela coisa de garotos: “Tu já fez? Já. Tu já fez? Já. Tu já fez? Não. Tu não fez ainda!?” [Risos.] E veio aquela conversa de Juizado de Menores, o terrorismo. E alguém disse: “Vamos lá. Eu conheço uma sem problema.” Daí fui.

E deu conta?
Que remédio [risos]! Naquela época a possibilidade de falhar nem passava pela nossa cabeça [risos]. Isso passa na iminência dos 40 [risos].

Por quê? O senhor está com algum problema nessa área?
Não [risos]. Nem estou preocupado. Estou só dizendo que tem de saber que essa é uma iminência.

Então nunca aconteceu ao senhor alguma dificuldade…
Aconteceu uma vez um constrangimento. Eu era muito apaixonado pela menina. Namorava um pouquinho e nada. Um belo dia, ela me convidou para sair. A gente foi e aí [pausa]… Aconteceu antes da hora… E depois não mais. Eu era muito jovem, não tive condições de falar. Ela também não. Como não falamos, ela ficou pensando que era algum defeito nela e eu fiquei pensando que era meu.

Mas não houve oportunidade para desfazer o engano?
Um ano depois. Naquele dia acabou. Fomos embora chateados. Quando encontrava era assim [faz um olhar atravessado], com muito rancor. Até que um dia sentamos para conversar com calma e, conforme eu ia explicando, ela ia ficando feliz [faz uma expressão de espanto e alegria]. E ela disse: “Você está me tirando um peso das costas. Achava que você tinha tido alguma decepção comigo.” Aí a gente pôde resolver [risos].

Nessa época, como o senhor conseguia dinheiro?
Houve duas fases diferentes. Logo que cheguei a Fortaleza, para fazer o último ano do colégio, deixei o cabelo crescer abaixo dos ombros e caí na farra. Era fumar, beber e puta, coisas que já tinham começado em Sobral. Loucura. Na verdade, tomar cachaça é muito ruim. Mas meu pai pagava a pensão e os gastos com a escola e me dava o equivalente a alguns sanduíches. Aí aprendi a fazer artesanato em couro para bancar as outras despesas. Fazia uns doze, quinze ou vinte cintos por semana. Na outra fase, já na universidade, passei a fazer política estudantil quase em período integral. Larguei a calça boca-de-sino [mostra o tamanho da boca com as mãos, algo para lá dos 30 centímetros]. O visual ficou mais militante: sandália japonesa, calça jeans e camiseta com alguma palavra-de-ordem [risos]. Aí fiz concurso para estagiário do Banco do Nordeste, para ter meu próprio dinheiro. Mas o trabalho, na consultoria jurídica, era um inferno. Terminava rápido o pouco trabalho, mas nunca me deixavam sair antes do horário. Depois de quatro meses, pedi demissão. Me enchi. Foi o primeiro pedido de demissão na história do Banco do Nordeste, e em caráter irrevogável [risos].

Naquele momento, a repressão brava contra estudantes já tinha passado…
Só um dos nossos foi preso, no dia 30 de março de 1976. Uns dois dias antes, discutimos um ato de protesto contra o presidente Ernesto Geisel, que iria inaugurar a Praça 31 de Março na cidade. A certa altura, um dos colegas sugeriu: “Devia jogar um tomate nesse velho filha da puta!” Injustiça, né? Justo contra o Geisel, o da abertura [risos]. Resultado: no dia seguinte esse rapaz sumiu, e ficou dois dias desaparecido. Dia 2, apareceu de volta. Não levou nenhuma pancada. Tinham metido um capuz na cabeça dele quando ia chegando no apartamento onde morava e o levaram para um cela muito pequena, onde ele ouvia barulho de um trem. Não era à toa que a gente tinha a paranóia de que todo mundo era agente infiltrado no movimento.

E havia a história das Divisões de Segurança e Informação, dentro das universidades…
Anos depois os estudantes invadiram a reitoria e pegaram os arquivos da DSI. Foi uma esculhambação. Entrei nesse assunto como advogado. Havia gente de Sobral enrolada nesse caso, tudo gente boa. Mas esses arquivos acabaram provocando constrangimento [risos], porque, em vez de ter informações que pudessem expor o patrulhamento político, tinha era dado sobre professor dedo-duro e muita anotação de sexo: fulano transa com beltrano, sicrana é sapatão [risos]. Não dava para abrir as fichas para ninguém.

“Fui expulso com o cano da espingarda na cabeça. Ele não atiraria, mas não foi agradável”

O senhor passou a juventude fazendo política e tomando por-res ou fez esportes também, como boa parte dos universitários?
Joguei muito futebol. Era meia-esquerda. Cheguei a jogar no Guarani de Sobral, que era um time profissional, mas só em alguns amistosos, sem ganhar dinheiro. Também fui cronista esportivo.

Como era?
Foi na Rádio Educadora do Nordeste, urna rádio da Igreja Católica em Sobral. Um amigo meu era o speaker[se dá conta do anacronismo] Speaker é antigo, né? Era o locutor esportivo. Convidou-me para comentar jogos. No primeiro dia, cometi uma gafe. No estádio de Sobral, muita gente gosta de ficar perto da cabine, para ver o jogo ouvindo a narração. E aí urna hora eu disse: “O Tangerina só não fez mais porque tem sido vítima do pau duro da defesa [risos].” Todo mundo olhou para trás [risos].

Voltando à política, quando o senhor começou a carreira era fá-cil fazer política no Ceará ou havia violência, como em Alagoas?
Não era tão difícil. A gente pode dizer que o Nordeste tem três civilizações à parte nessa questão de violência [conta nos dedos]: Bahia, Pernambuco e Ceará. Não quero dizer melhores, mas são peculiares. Crime político? Tinha. Pistoleiro? Tinha. Mas era em nível local e só em certas regiões. Nunca houve um crime político em Sobral, nem em Juazeiro ou no Grato. No Vale do Jaguaribe, tinha muito. Isso acabou com o Tasso Jereissati.

O senhor nunca foi ameaçado?
Só com pressão política ou ação econômica. Já tive que bater boca com gente da oposição no interior, mas não foi coisa séria. Só aconteceu um caso mais grave, e eu fui atrás. Em Sobral, numa eleição da Câmara Municipal, a oposição juntou um grupo de vereadores num sítio, para evitar que falássemos com eles. Tentei ir até lá e acabei com o cano da espingarda de um sujeito apontado para minha cabeça. Fui expulso assim do sítio. Tenho certeza de que ele não ia atirar, mas não foi agradável ter uma arma encostada na orelha. Perdemos a eleição, claro.

Foi nessa época que o senhor estudou Economia?
Mais ou menos. Sempre gostei. Quando era deputado me matriculei no curso de Economia da Universidade Federal do Ceará. Queria entender de finanças públicas.

Tirou diploma de economista?
Não, fiz só um ano de curso, porque dei de cara com um professor imbecil de Contabilidade que queria que a gente decorasse todas as rubricas de um balanço. Como não tinha tempo para estudar, ele me deu nota regular numa prova. Fui reclamar, explicando que ficava mal humilhar um deputado que até sabia bastante do assunto e tinha sido um dos melhores alunos da Universidade. Ele não quis nem saber.

E esse ano de Economia foi suficiente para que o senhor se sentisse seguro ao assumir o Ministério da Fazenda?
Bem, um ministro não precisa ser especialista. Mas conhecia os conceitos básicos. Até porque participei das reuniões de formulação do Plano Real. E sempre perguntava as coisas. Não tenho vergonha de fazer perguntas.

Deu pra ter alguma idéia do tamanho da corrupção no Brasil enquanto estava no Ministério?
É grande. No Ministério da Saúde é aloprado.

Então o ministro Jatene não precisa de imposto. Precisa de polícia.
Precisa de imposto também. [Corrige-se.] Imposto, não. Precisa de recurso também. Precisa mudar o sistema. São conhecidos os casos de hospitais que fraudam as guias de internação e tratamento.

E por que não prendem os fraudadores?
É essa coisa política de evitar o conflito. Porque as pessoas são brancas, são deputados, são doutores, são governadores. É só desfocar o dia-a-dia e ir para a estatística. Tome-se dez anos da História brasileira e diga para mim: como ninguém foi preso por sonegação, nunca ninguém deixou de pagar imposto? Isso é piada.

Então por que ninguém foi preso por sonegação quando o senhor era ministro?
Porque a legislação é feita para proteger. A cultura também.

Mas o senhor sabia quem sonegava?
Sabia.

E por que não mandou prender?
Porque eu não tinha prova. Nem é papel do ministro mandar prender. Quem tem que prender é a Receita Federal. A Receita sabe. Eu digo: a Autolatina [holding que controlava as fábricas de automóveis Volkswagen e Ford] em 1993 pagou zero de imposto de renda. O imposto de renda médio em 1994 de pessoas jurídicas foi de 600 reais.. Então tenho certeza de que tem uma brutal sonegação aí. Chamei a Receita, mandei fazer levantamentos, mas não é tão simples. E me diziam: “Ministro, não dá. Não podemos criar confronto. A gente está vendo de fato, mas não basta, tem que provar, chega uma hora que precisa examinar as contas bancárias.” Aí fica difícil, porque a Constituição garante a inviolabilidade do sigilo bancário. Não se consegue fazer tudo o que se quer.

A demora na intervenção do Banespa também foi um caso desses?
Isso foi contra a minha vontade. Por mim, teria sido feita antes.

Como pode ser? Contra a vontade do ministro? Quem defendia o Banespa?
O Banco Central. Não é que defendia. Eles tinham medo de mexer com o sistema. Diziam que um passo mal dado lá podia ter riscos incalculáveis. Eu insistia, porque o socorro ao Banespa representava 27% da base monetária [todo o dinheiro em circulação] do Brasil. Assim não havia plano de controle da inflação que sobrevivesse.

E a situação do Banco Econômico também já não era caótica na sua época?
Ninguém sabe. Possivelmente era, mas jamais ouvi falar.

Como assim?
Porque o Banco Central não é flor que se cheire.

Só um minuto: uma das grandes discussões no Brasil é sobre a possibilidade de se ter um Banco Central independente…
Deus me livre [agitado]! Deus me livre! Eu mesmo já fui a favor disso. Mas mudei de opinião. Embora a dependência o deixe vulnerável, acho que o problema do BC é o entrosamento sistemático com o sistema financeiro privado.

O senhor não mandava no BC?
Não. Pode-se dizer que eu não mandava mesmo.

Em alguma situação isso ficou absolutamente demonstrado?
No Banespa. No prazo [para a intervenção] no Banespa.

Já que o senhor diz gostar tanto de confrontos, explique aquelas rusgas com empresários e consumidores que compravam com ágio.
Nunca tive uma explosão no Ministério. também não era ensaiado. Mas dizia o que estava pensando. E ia para a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] pedir críticas às idéias que estávamos desenvolvendo. Recebi o Carlos Eduardo [Moreira Ferreira, presidente da Fiesp] muitas vezes. Só que eu dizia: “Nós não estamos aqui para servir a Fiesp.” Isso não é explosão. Mesmo havendo muitos movimentos clandestinos contra mim.

Na Fiesp?
Sim, claro. Teve uma semana em que se trabalhava um projeto de marketing contra mim. Tenho amigos fraternos na Fiesp. Os caras fizeram uma vaquinha lá — e um deles hoje é ministro — para uma campanha destinada a me derrubar. Acabou a reunião, um amigo me ligou.

Conte isso melhor. Quem foi o ministro?
Não vou contar, não [decidido]. Mas não foi uma vez só. Minha personalidade tem suas facetas, mas me dirijo explícita, clara e lealmente à classe média e para baixo disso. É de onde eu venho, é a minha linguagem. E é impressionante que o que repercute mal no grupo mais próximo às elites, que acha violentas algumas manifestações, tem outra recepção junto a esse pessoal. Me dão parabéns, me estimulam a continuar. Tenho a modéstia de dizer que tenho defeitos. Mas esse sou eu. E tenho passado periodicamente por um julgamento coletivo. O político, de tempos em tempos, é avaliado pelos eleitores.

E quanto à avaliação da imprensa, o senhor gosta do tratamento que recebe?
As vezes, sim; às vezes, não. Não gosto quando a crítica é sistemática. Uma vez, quando era prefeito, fiquei com minha mulher, Patrícia, rodando de carro, de madrugada, em volta da sede do jornal O Povo, esperando a edição do dia seguinte, tanta era a minha ânsia de saber o que sairia. Foi uma bobagem. Como o espaço é deles, podem dizer o que quiserem. O máximo que se pode fazer é processar. E processar imprensa é contra a minha formação. Então vira covardia.

E que é o crítico mais chato?
Olhe, eu mesmo não entendo, mas é uma coisa tão obsessiva que ele mesmo não percebe como é contra ele, esse rapaz da Folha [de S. Paulo], o Luís Nassif. E um negócio violento. O cara me esculhamba. Nunca viu mérito nenhum em nada. É pessoal. Fala mal, duro. Nunca diz nada consistente. São coisas subjetivas. Nunca falou comigo. Nunca me perguntou nada. É completamente antiprofissional. Sou uma pessoa pública que tem atitudes completamente exóticas algumas vezes. Isso merece crítica. Se critica um conceito econômico que pode ser desastroso, se há outro melhor, então está normal. Mas outro dia, por exemplo, ele escreveu: “Nasce um novo oligarca”. Eu? [Olha para o alto como se procurasse alguma coisa, divagando.] “Nasce um novo oligarca.”

Mas o senhor nem desconfia do motivo disso?
Desconfio. Mas não posso provar. Fico calado.

Mas diante de tudo que o senhor já falou nesta entrevista, fica insinuando que é alguma desconfiança de ligação com o mercado financeiro ou a Fiesp.
E.

Uma ligação ou a outra?
As duas [pausa]. Não falo mais. Não posso provar.

Esse é o seu maior problema com a imprensa?
Há outros. Para um ministro da Fazenda, é um drama, porque publicam três páginas de notícia de política e três de economia, coisa que nenhum jornal do mundo tem mais. Existem colunas enormes. E essa garotada que está na porta do Ministério é tudo foca. Não quero depreciar, mas quem vai para a porta do Ministério, pastorar o ministro até no restaurante, é sempre garotada que está começando, inexperiente profissionalmente e na matéria, que é árida.

A consequência é uma imprensa mal informada?
E claro. Nos ministérios econômicos é um desastre. E um desastre com conseqüências, porque tem toda uma quadrilha de especuladores trabalhando em cima disso…

“Sou mais amigo de Itamar. Acho que não sou a pessoa mais simpática para Fernando Henrique”

E dá pra identificar a quadrilha de especuladores?
Pode fazer um inquérito e descobrir quem ganha dinheiro com o boato da quinta-feira. A gente até se prevenia no Ministério para não falar às quintas. E aí não falar virava um boato [risos]. Na questão da imprensa, certamente haverá uma reforma no futuro. São colunas inteiras de disse-me-disse. Saiu no Jornal do Brasil: “Bye, bye. Entrou areia no projeto de Ciro Gomes de ser candidato do governador Marcello Alencar a prefeito do Rio de Janeiro. Ele teria que passar antes por Brasília para pedir perdão ao ministro Serra.” Ora, eu sou parte essencial dessa notícia e sei como é absurda. Alguém botou aquilo ali. É como a história do peba [um tipo de tatu] no Ceará. Se encontrar um peba em cima de um toco, alguém botou. Porque peba não sobe em toco. Então quem botou aquilo? Mas aí, como tem que encher a coluna, a jornalista, no caso, não pode ligar para mim, o Marcello e o Serra, porque nem a nota comporta isso nem ela se sente responsável por isso. O presidente Itamar, então, foi vítima de puro preconceito localizado em certas frações da imprensa do Sudeste, com aquela história de instabilidade de temperamento.

A instabilidade do ex-presidente nunca existiu?
Ele foi tratado como um capiau, um caipira intempestivo. Mas não é nada disso. Espertíssimo politicamente, foi o primeiro [realça a palavra] presidente a fazer seu sucessor na História contemporânea brasileira. E escolheu quem quis fazer. Em fevereiro do ano passado, Fernando Henrique queria apoiar o [governador Antônio] Britto [do Rio Grande do Sul, filiado ao PMDB] para presidente. Quem o convenceu a sair candidato foi Itamar. Obsessivamente, o presidente perseguiu a estabilidade monetária, num governo em que as pessoas, no máximo, esperavam que não se mexesse nas coisas. E se ele não é um cara que demonstra conhecimento sobre os negócios do Estado, ouve demais, é capaz de entender qualquer [frisa a palavra] sofisticação técnica.

Mas se o senhor explicava e o presidente entendia, como é que reclamava das taxas de juros, por exemplo? Vamos seguir o seu raciocínio…
[Irritado.] O meu raciocínio, não. Fui ministro da Fazenda. Quando o [ex-ministro Rubens] Ricúpero foi embora, a equipe achava que ia tudo por água abaixo. Antes, fui algumas vezes a Brasília, chamado pelo Ricúpero para ajudar a mediar coisas dele com o presidente. Havia essa ficção de que o presidente é um homem difícil. Na verdade, ninguém falava com ele. O presidente tomava conhecimento pelos jornais de coisas de que ele era conceitualmente contra. Ele é que era o ruim?! E Itamar tem, acima de tudo, essa convicção, essa comoção com a coisa do pobre. Ele é capaz, por exemplo, e eu acho lindo isso, de sair do carro para falar com uma mulher no meio da rua. Ela se queixa do preço do gás. Aí ele se emociona, chega no palácio, chama o ministro e manda baratear o preço do gás. Foi assim que nasceu o vale-gás.

Mas isso é ser um bom presidente?
Não. Isso aí é um atributo de personalidade que considero impor-’tante. Um bom presidente é uma pessoa que seja capaz de liderar a nação ao redor de um projeto nacional.

E era o caso do Itamar?
E não foi, não? [Inflamado.] Ele uniu a nação brasileira, fez em primeiro turno seu sucessor, numa eleição tranqüila, sem nenhum incidente, nenhuma contestação sobre a legitimidade, sobre o comportamento dele. Agora lembre que ele era um vice-presidente, não eleito [para o cargo de presidente], sem partido, sem base no Congresso e com a situação fora de controle na área econômica.

Quer dizer que se o Itamar tivesse partido, votos e base no Congresso provavelmente seria o melhor presidente da História do país?
Seria um Juscelino. O melhor, não sei, mas um dos grandes presidentes. Isso ainda vai ser reconhecido. Agora a imagem pessoal que ele cultiva é a do homem simples. Ele gosta disso. Mas é engenheiro, político experimentadíssimo, foi senador, conhece o mundo, se vira em inglês…

O senhor é mais amigo dele hoje do que de Fernando Henrique?
Pessoalmente, sem dúvida.

É verdade que o senhor ainda não falou com o presidente Fernando Henrique depois da posse, em janeiro passado?
E.

Por quê?
Porque ele é presidente e eu sou um estudante. E ele não pode es-tar falando com estudante a toda hora. Imagino que tenha outros problemas para resolver. Uma vez eu mandei uma carta de recomendação de um juiz para uma escolha em lista tríplice. Foi a única vez em que me dirigi a ele.

E o juiz foi o escolhido? Qual era o tribunal?
Não foi escolhido, mas isso é normal. Não sei qual tribunal, ou melhor, sei, mas não digo.

Como o senhor respondeu aos convites para cerimônias onde estaria o presidente Fernando Henrique aqui nos Estados Unidos, na viagem que fez em abril?
Disse que não podia ir. Pelo telefone.

O presidente não gosta do senhor?
Não acho que ele não goste de mim. Mas acho que não sou a pessoa mais simpática para ele.

Por quê?
Não sei. Sou um admirador dele, como procurei demonstrar nesta entrevista o tempo todo. Torço por ele, sinceramente, mas acho que ele pensa que eu sou um criador de casos. Houve um incidente no passado, quando estavam querendo entregar a candidatura ao Britto e eu disse que não achava correto. Por duas razões: primeiro porque o PMDB não daria ao Britto a candidatura, por ser [um partido] dominado pelo Quércia, e segundo porque a candidatura devia ser nossa, do PSDB. Falei isso publicamente e eles ficaram furiosos.

O senhor não corre risco de ficar sem espaço no PSDB?
Por quê? Em começo de governo parece que você é o dono do mundo, mas depois passa [risos]. Chega no fim do governo e você percebe que o mundo tem muitos outros donos.

O ministro Serra já deu claramente a entender que, sendo bom governador em São Paulo, aspira disputar a Presidência. Se isso acontecer, a data da disputa coincide com uma possível candidatura sua. Vai sair faísca?
A democracia no país e no partido tem mecanismos para resolver isso. É legítimo que ele pretenda. Se acontecer, o partido pode resolver isso democrática e fraternalmente. Mas é preciso ressaltar que a história da minha candidatura é uma brincadeira, porque cansei de responder não à pergunta sobre minha pretensão de disputar a Presidência. Sei que a Presidência é um funil praticamente impossível de ser vencido. Então resolvi dizer que sou candidato, mas só quando o Collor puder disputar novamente. Aí ninguém vai me confundir com ele. Mas não me considero o mais preparado para a disputa. Quanto a enfrentar Serra, ah se Deus me desse uma disputa fácil dessas [risos]! Porque ele é muito chato [risos].

Não sei do que o eleitor gosta.
Mas eu sei [risos].

O senhor está preparado para perder uma eleição?
[Rindo.] Acho que não. Havia um político lá de Sobral que dizia que era muito melhor comer merda do que perder eleição. Perdi duas eleições apoiando candidatos. Então concordo com ele. Uma foi a da sucessão de meu pai em Sobral, quando me elegi deputado estadual, e a outra foi a da Prefeitura de Fortaleza, depois que eu saí para o governo e deixei o cargo para um vice que me traiu. Quando se dedica a vida a brigar com gente sem nome e endereço, entregando seu nome e endereço, e um dia essas pessoas o repudiam, aí o negócio ri é uma merda danada.

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