Playboy entrevista José Serra (1994)

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Entrevistas com políticos em revistas antigas
39 min readJan 23, 2019

Uma conversa franca com o deputado tucano sobre economia, exílio, golpes, bastidores da política e estudantes de antigamente

Suponha que estamos em 1948, numa São Paulo que ainda tem o bonde, a garoa e o Parque Dom Pedro II, que o Minhocão vai desfigurar daqui a algum tempo. Há um parque infantil logo ali. E hora da distribuição da merenda para a garotada, na maioria filhos e netos de imigrantes italianos radicados nos bairros próximos ao centro da cidade: pão, leite e banana. O mundo anda aos calafrios, preocupado com que a tensão na Coréia se transforme numa nova grande guerra. A preocupação passa longe dessas crianças. Ou melhor, de quase todas essas crianças. Repare naquele ali, de 6 anos. Ele vai ficar famoso quando crescer. Não se deixe enganar pelos cabelos. É o futuro deputado José Serra. Parece impossível, mas ele, sim, está apavorado com a possibilidade de acontecer outra guerra. Como se sabe? Veja o que ele vai fazer com o lanche. Come a banana, bebe o leite e guarda o pão. Vai levar o pão para casa e armazená-lo na despensa que improvisou dentro do baú onde está guardado o enxoval de casamento de sua mãe, junto com as figurinhas e as bolinhas de gude. É o seu esconderijo. Foi assim que ele começou a fazer economia.

Na II Guerra Mundial, ainda praticamente um bebê, era levado de madrugada pela mãe para a fila do pão, naquele frio, naquela garoa. “Depois, quando se falava de conflito na Coréia, eu raciocinava que, se ia ter guerra outra vez, ia faltar pão”, recorda hoje o deputado. “Então era melhor estocar para escapar da fila.” Em nove horas de conversa com o repórter especial Marcos Emílio Gomes, de PLAYBOY, Serra reabriu esse e outros baús dos seus 52 anos de idade, que contêm experiências riquíssimas vividas em épocas de política efervescente — no início dos anos 60, foi presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE) de São Paulo; no dia 31 de março de 1964, data do golpe militar, estava sentado no topo de um vulcão, como presidente da brava União Nacional dos Estudantes (UNE); exilado, foi professor universitário e, na volta, secretário de Estado e deputado federal duas vezes.

Nesta entrevista a PLAYBOY, José Serra também revela como se vê no futuro, alçando um vôo que, se correr conforme suas ambições, o levará simplesmente à Presidência da República, depois de levá-lo ao Senado nas eleições do mês que vem e ao governo de São Paulo dentro de quatro anos. Serra falou como nunca em quatro sessões de conversa em sua casa do Alto de Pinheiros, em São Paulo, e uma no seu apartamento funcional, em Brasília.

Quase sempre depois das 23 horas e pelo menos uma vez até as 2h30 da manhã. Nada comprovaria mais adequadamente o seu estilo notívago de fazer as coisas. A cabeça tucana para assuntos econômicos perde o sono, revela-se obcecada quando o assunto é o Brasil. Convidado a falar do futuro do país, explica que a saída do buraco é uma escalada de longo percurso, mas a desenha como se já tivesse visto o lado de fora. O duro mesmo é fazê-lo tratar de assuntos mais pessoais. Nestes momentos, demonstra quase enfado. É daqueles políticos mais interessados na grandeza das idéias do que nas pequenas experiências do cotidiano. A custo se pode ouvir dele mesmo que considera seu estilo de vida semelhante ao do estadista inglês Winston Churchill, mas sem charuto e conhaque. Conta, ainda, que fazia duas composições, nas provas de Português do ginásio, sempre passando a segunda para um amigo menos preparado para a navegação entre pronomes e concordâncias.

Muito reservadamente, José Serra discorre também sobre uma interessante teoria relacionando a queda dos cabelos a um efeito psicológico. E que ninguém na sua ascendência direta teve tendência à calvície e ele acredita que sua careca começou a aparecer pouco depois que amigos, numa brincadeira, anunciaram que ele perderia os cabelos. Tinha, então, pouco mais de 20 anos e acha que a preocupação com o assunto foi devastando sua cabeleira. Daí em diante, só falando com gente muito íntima dele para saber de experiências ainda mais pessoais — como a pequena crise familiar provocada pelo acordo de seu partido, o PSDB, com o PFL, revelada no almoço do último Dia das Mães, quando teve de enfrentar a incompreensão de seus filhos Verônica, de 25 anos, e Luciano, de 21. Político até na hora de calçar o sapato, José Serra quase nunca solta uma frase sem refletir sobre as conseqüências eleitorais do que vai dizer.

E, antes de responder a estas perguntas, deixou isso claro, dizendo-se tranqüilo porque não fumou maconha, acredita em Deus e jamais teve distúrbios emocionais –assuntos que já deram polêmica na vida de outros entrevistados de PLAYBOY. Se o comportamento de Serra é bom ou ruim, respondem seus eleitores, que o fizeram campeão entre os escolhidos para a Câmara em 1990, no seu segundo mandato, com 338 749 votos, e o colocavam à época desta entrevista em primeiro lugar nas pesquisas para o Senado, em São Paulo.

Casado com uma ex-primeira bailarina do Ballet Nacional do Chile, Mônica Allende (não é parente do ex-presidente Salvador Allende), que conheceu no exílio, o deputado José Serra nasceu no bairro paulistano da Mooca, bem perto do parque infantil onde economizava pão. Fez carreira de professor universitário na área de economia e, hoje, até reclama de ser visto como um deputado-economista. “Falo de questões muito mais amplas, inclusive nos meus artigos, mas ainda assim sou mais lembrado nas discussões econômicas”, explica. Há pelo menos uma boa razão para essa preocupação: Serra tem muitos planos para o futuro. Tantos, que chegou a assustar o presidente Itamar Franco numa conversa em que o deputado seria sondado, mais uma vez, para assumir o Ministério da Fazenda.

Nos bastidores do Planalto, sussurra-se que Serra teria trazido para essa conversa um verdadeiro plano de governo, provocando a queixa de Itamar para um parlamentar que tentava aproximá-los: “O Serra não quer ser ministro, ele quer ser presidente.” E não é que quer mesmo? Ao longo da entrevista para PLAYBOY, o deputado lembra discretamente esse encontro — com outro ponto de vista, naturalmente — e as demais ocasiões em que esteve com um pé no ministério. Assim, podemos entender como, num país onde quase se esgotou o arsenal de economistas disponíveis para a Fazenda — a ponto de se levar para o posto um sociólogo, seguido de um diplomata — , o doutor em Economia José Serra, que só não foi engenheiro porque o exílio arrancou o da Escola Politécnica, em São Paulo, tornou-se o mais notório dos quase-ministros. E diz, sem que se possa apostar 1 real nisso, que continuará nessa condição se depender da sua vontade, caso Fernando Henrique Cardoso seja o eleito para o Planalto.

PLAYBOY — Se Fernando Henrique for eleito e convidar, o senhor aceita ser ministro da Fazenda, enfim?
JOSÉ SERRA — Tirando o enfim, eu não teria como negar para o Fernando Henrique, mas isso não significa que é minha hipótese preferida.

Qual sua hipótese preferida?
Haverá oportunidade de saber se eu receber o convite para a Fazenda. Se digo agora, pareceria uma reivindicação.

Quantos convites o senhor já teve para ser ministro?
É preciso explicar. Quando o Tancredo Neves estava em campanha para a Presidência, ele me convidou para coordenador do programa de governo e, na época, todo o mundo achou que eu seria o ministro da Fazenda ou do Planejamento. Eu, no entanto, preferia disputar um mandato eletivo na eleição seguinte. Mas convite mesmo não chegou a haver. Posteriormente, durante o governo Sarney, quando caiu o Dilson Funaro [ministro da Fazenda], eu fui sondado por vários auxiliares do presidente. Chegou a haver troca de condições recíprocas, mas o convite final não se materializou. No caso do Collor, houve uma sondagem indireta, se eu aceitaria assumir a Fazenda, com a Zélia [Cardoso de Mello] no Planejamento. Depois, quando ela estava por cair — eu não sabia disso — , num determinado dia, em 1991, houve um convite quase formal, do Collor, por intermédio do então ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, para que eu assumisse o ministério. Ele disse que eu devia responder naquela noite. Eu recusei.

“Questão econômica você explica, a pessoa entende e, dali a cinco minutos, pensa o contrário, quando não faz o contrário”

E o presidente Itamar Franco, quantas vezes o convidou?
Com relação ao Itamar, o perfil que ele desejava era diferente do meu. Num primeiro momento houve muito interesse do meu partido em que eu fosse. Aparentemente, as notícias de imprensa dizendo que o presidente ia me convidar vieram do lado do Itamar. E eu encontrei o Itamar duas vezes, sempre no apartamento do Fernando Henrique, que já vinha tendo contatos com ele desde que ficou claro que haveria o impeachment. Era para conversar sobre o quadro econômico. Conversamos, expus o que achava do país, da prioridade da inflação, da privatização, da questão fiscal. Itamar não chegou a manifestar propriamente suas opiniões, mas foi uma conversa muito afável.

Ele demonstrou entender o que o senhor dizia?
Não fiz nenhum teste. E o problema de entendimento nessa questão econômica é mais complexo do que parece, porque uma coisa é entender e outra é assimilar. Não é particularmente sobre o Itamar. Mas aprendi rapidamente na vida pública que as questões econômicas você explica, a pessoa entende na hora e, dali a cinco minutos, pensa o contrário, quando não faz o contrário. Eu acredito com relação a isso que o Itamar foi assimilando aos poucos. Com o Fernando Henrique houve um avanço muito grande nessa direção. Mas insisto que não há aqui diminuição da figura do Itamar. Apenas a questão econômica tem um pano de fundo político.

Como é sua relação com o ministro Rubens Ricúpero?
É um grande amigo meu. Conheci o Rubens quando cheguei em Brasília, em 1987. A intensidade inicial da amizade compensou a falta de antiguidade, por vários fatores, acho que até de natureza biográfica. Nós temos em comum a ascendência italiana e somos de bairros vizinhos em São Paulo. Ele é do Brás e eu sou da Mooca, ao lado. Também houve complementaridade intelectual e uma coisa mais subjetiva que nunca se explica numa relação de amizade.

Falando em novas amizades: o senhor considera o governador Antônio Carlos Magalhães um grande parceiro eleitoral?
Ele é um parceiro eleitoral competente, sem dúvida. Se nós fizemos a aliança é porque se pensa isso a respeito do PFL e dos seus principais integrantes.

Então é também um parceiro importante para governar?
O PFL, sem dúvida. Se for eleito um presidente da República que vai gastar dois anos procurando formar maioria para governar, ele estará fadado ao fracasso, dada a delicadeza da situação econômico-social do país. Por trás dessa aliança e de outras está a idéia de que o governo do Brasil, para ser eficiente, precisa ter uma maioria que lhe dê respaldo.

Essas perguntas são mesmo uma provocação…
[Irritado.] Vê-se.

Então vamos a outra provocação: o PFL, na composição do programa, briga mais por reforma agrária ou por distribuição de renda?
A coligação é política e os rumos programáticos da campanha vão ser dados pelo candidato, pelo Fernando Henrique.

O que é o trabalho de bastidores no Congresso? Tem um grupo de parlamentares que manda, que pilota?
Não, não tem. Até porque falta no Congresso um eixo de poder. O Congresso é muito fragmentado. Por outro lado, a ausência de um Executivo forte paradoxalmente também faz falta ao Congresso, porque se perde um ponto de referência importante para a situação e para a oposição. O Executivo brasileiro virou curso de pós-graduação, ou de graduação, dependendo do nível das pessoas. Elas vão aprender o que é Brasil enquanto governam. Em geral, saem antes de terminar sua formação e enquanto aprendem estragam o país. Isso acontece até em campanha. Sobre o mesmo problema, o sujeito diz uma coisa no Rio Grande do Sul, em Minas diz uma segunda, em Pernambuco uma terceira, no Pará uma quarta e nos Estados Unidos uma quinta. Quando termina, ele está dizendo o inverso do que dizia originalmente. Isso, de um lado, é oportunismo eleitoral. De outro, é simples aprendizado. De qualquer modo, é inconcebível.

O fato de ser Lula quem visitou essas regiões todas e foi em seguida também aos Estados Unidos tem alguma relação com a comparação?
Seria injusto concentrar isso apenas no Lula. Isso se espalha pela maioria dos candidatos. Felizmente não é um mal que acomete o Fernando Henrique, mas inegavelmente é um fenômeno brasileiro, inclusive desta eleição.

Então, ainda recordando Lula, nas suas contas, quantos são os picaretas no Congresso?
Não dá para dizer que tenha “X” picaretas. Até porque tem parlamentares honestos e desonestos. Este é um corte. Tem ideológicos e fisiológicos. Este é outro corte. Agora, o sujeito pode ser fisiológico e ser honesto. Também pode ser ideológico e desonesto. Eu diria que a maioria predominante é fisiológica. Os corruptos talvez não sejam a parte mais volumosa.

Nem a mais alta. A descoberta dos anões do Orçamento surpreendeu o senhor?
A existência dos chamados anões eu não ignorava. Aliás, eu fui talvez o primeiro a trombar com muitos deles quando a nova Constituição abriu a possibilidade de o Congresso participar do Orçamento. Mas realmente eu não imaginava que houvesse um esquema organizado na forma que posteriormente se revelou.

O senhor apresentou 200 emendas na Constituinte e aprovou 124. Até onde se sente responsável pela chamada ingovernabilidade resultante dessa Constituição?
Sem qualquer pretensão, a minha responsabilidade é praticamente zero nesse caso. Em geral, fui contra tudo aquilo que foi introduzido e não dá certo. Hoje boa parte da esquerda está de acordo com as teses que eu defendia. Por exemplo, votei contra um dispositivo que proibia empresas estrangeiras na mineração, um absurdo completo. E só 100 votaram contra. Lembro que nesse dia a Benedita da Silva [candidata ao Senado pelo PT-RJ] percorreu o plenário com uma bandeira brasileira amarrada no peito. A Benedita é uma pessoa que eu respeito. Achei estranhamente irônico. Ela estava comemorando uma coisa que beneficiava a dois ou três cartéis nacionais e conspirava contra os empregos, os interesses da população pobre do Rio de Janeiro, que ajudou a elegê-la deputada.

“Alguém me disse que eu era sovina com dinheiro público. Falou brincando, mas para mim foi uma consagração”

Mas, por exemplo, esse modelo de Orçamento com participação do Congresso: não houve erro seu aí, deixando brecha para passarem os anões?
O capítulo orçamentário é dos melhores e mais enxutos que existem na Constituição. Não ficou brecha. O que houve foi desrespeito à Constituição. Ela não admite criar despesas sem indicar de onde sairão os recursos. Mas há um dispositivo lá que permite isso nos casos de erros ou omissões, e o Congresso usou este item para fazer tudo de maneira distorcida. Essa não era minha intenção e, no entanto, fui eu que botei isso.

Qual foi sua pior experiência política?
A pior experiência política não foi individual. Foi a dificuldade do PSDB em ganhar eleições majoritárias, seja em São Paulo, seja no Brasil, a partir de sua fundação até este ano, quando eu espero que esta tendência se altere. Já está na hora de nós deixarmos de ser oposição. Eu estou muito desejoso de
ser governo. No meu caso, aspiro realmente cargo executivo por eleição direta. É muito melhor do que ser secretário ou ministro.

Ter sido secretário no governo Montoro foi um bom trampolim político?
Não foi um trampolim. Porque trampolim dá a idéia do salto esperto. A secretaria me promoveu, sim, porque o trabalho foi considerado bom. Fui um secretário forte. Era de fato o braço direito do governador. Então, a obra positiva do governador em grande parte me beneficiou politicamente. Naquela ocasião eu já fui o quarto deputado mais votado. Em 1990, quando eu era oposição ao governo municipal, estadual e federal, multipliquei a votação por dois e meio e fui o mais votado do país. Isso prova que a questão de governo ou não-governo é relativa.

Isso provocou ciumeira em 1986. Teve gente dizendo que o senhor tinha 300 kombis na sua campanha.
Delírio puro. Coisas delirantes. Mas isso também se deve ao sistema eleitoral, porque ele transforma o seu colega de partido em adversário. Se houvesse o sistema distrital, isso não aconteceria. Quem perde eleição, sempre procura uma explicação estranha a seus próprios defeitos e insuficiências.

E apela?
Ah, sim. Sem dúvida.

Foi o caso, por exemplo, do “Serra Pelada”?
Que “Serra Pelada”?

O apelido que lhe deram, juntando sua calvície e uma suposta campanha milionária.
Hummm [silêncio].

Se o senhor conseguir eleger-se governador no futuro, como já disse que pretende, qual o passo seguinte?
Se eu for um dia governador de São Paulo, o que espero, vou me concentrar em ser um bom governador. Se conseguir isso, sem dúvida posso aspirar algo mais acima. Mas a minha maneira de aspirar vai ser desempenhando bem. Fiz coisas, como deputado e secretário, consideradas por colegas como temerárias do ponto de vista eleitoral. Uma vez, não me lembro mais quem me disse uma coisa que me agradou bastante: que eu era sovina com dinheiro público. Ele disse brincando, mas foi uma consagração.

E o controle do dinheiro na sua casa, o senhor sabe como é?
Isto é mais ou menos administrado. Minha mulher administra. Eu não sei direito quanto ela usa. Mas ela administra as despesas domésticas. Eu assino cheques, a secretária também já tem uma lista das despesas. É tudo mais ou menos automático.

Hoje é segunda-feira, 2h15 da madrugada, a alguns dias da troca da moeda. Quanto o senhor tem no bolso?
Não tenho praticamente nada. Devo ter uns 80 cruzeiros… [Confere o dinheiro.] Tenho 580 cruzeiros, porque fui comprando coisas. Eu vim de Contagem [MG], tive que pagar táxi lá em dinheiro. Foi muito e limpou o bolso de cruzeiros. Além do mais comprei revistas e jornais neste final de semana. Mas isso é típico de domingo à noite. Em geral eu tenho dinheiro no bolso.

De onde sai o dinheiro das suas campanhas eleitorais?
Do partido. Contribuições legais ao partido: Se você considera os votos que eu tive, os gastos totais devem ter sido muito baixos por voto.

Mesmo na sua primeira campanha, pelo PMDB?
Eu fui candidato pelo PMDB uma vez, em 1986. Aquela foi uma campanha até relativamente fácil. Não acho que o Cruzado foi um estelionato no sentido consciente, mas indiscutivelmente facilitou bem a campanha.

E já sobrou algum de uma de suas campanhas?
Não, porque não manejo campanhas privadamente. São recursos de natureza partidária.

Qual é o seu patrimônio?
Não tenho isso contabilizado. Não sei o valor. Mas o meu patrimônio é basicamente o mesmo do começo dos anos 80, antes de entrar no governo. Tenho uma casa em Ibiúna. Moro em casa alugada em São Paulo. Tenho três carros para toda a família, dois terrenos na capital, outro no interior e telefones. E algum dinheiro na poupança. Isso vem de uma combinação de trabalhos de professor, pesquisador do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, de São Paulo] e editorialista da Folha de S.Paulo. No exterior eu ganhava bem, mas quando cheguei ao Brasil já tinha gasto tudo, não deu para acumular.

O senhor faz economia em casa? Apaga as luzes?
É, razoavelmente. Nós não dormimos com luzes acesas. Nesse aspecto de economia doméstica, eu lembro do meu avô, pai da minha mãe, que era italiano e viveu alguns anos na Argentina antes de vir para o Brasil. Ele era analfabeto e fundou um idioma que misturava italiano, português e espanhol. Só a família entendia. Ele ficava desesperado quando na mesa se deixava uma maçã pela metade. Nos dias em que ficava mais aflito, ele próprio comia ou bebia as sobras [risos]. Não entendia como se podia deixar comida na mesa.
Isso tem relação com a guerra. E me marcou. Não que eu fique na mesa comendo as coisas [risos], mas realmente marcou.

O senhor controla seus investimentos? Sabe quanto tem, por exemplo, em conta corrente?
Honestamente, não sei. Minhas secretárias, embora não sejam financistas, são bastante cuidadosas. Eu sei os princípios gerais de investimentos, mas para saber o que está bom ou o que está ruim, pergunto a um especialista amigo meu. Claro que, se puder não perder, não perco. Até porque o meu pai pagou caro na vida por não acreditar na inflação, pela ilusão monetária. Nos anos 50, ele guardava o dinheiro, as poucas poupanças que tinha, no banco, a juros ridículos. E foi num período em que a inflação acelerou. Lembro quando, no começo dos 60, me dei conta dessa situação. Tentava argumentar e era impossível. Ele não aceitava e achei até que era inútil. Ficou com juros negativos até praticamente perder o pouco que tinha.

O seu pai tinha uma banca no mercado. Foi uma infância pobre?
Era uma família bem modesta. Mas eu não tinha muita consciência disso. Nunca faltou comida, roupa, e também nunca faltou possibilidade de acesso à escola, embora eu tenha estudado quase só em escola pública. Naturalmente, tudo ficou facilitado por eu ser filho único.

Como seu pai chegou ao Brasil?
Ele emigrou sozinho da Itália pouco antes de estourar a II Guerra Mundial. Mas eu tinha um tio em São Paulo e ele provavelmente chamou o meu pai, que veio em função de um desentendimento com o meu avô.

Coisas de família italiana?
É, e da Calábria. Ele chegou a se inscrever como voluntário na Guerra Civil da Espanha [1936-1939]. Minha avó conseguiu que, em vez de ele ir para Espanha, viesse para o Brasil. Meu pai sempre dizia que aprendeu a ler e escrever, uma certa disciplina, no serviço militar, na Itália, durante dois anos. Ele era de extração camponesa, no sul.

Na sua casa também se vivia pelo modelo calabrês? O senhor se dava bem com o seu pai?
A relação com ele era boa. Nunca foi extremamente próxima, mas era boa. Eu levo em conta que a relação de meu pai e meus tios com meu avô era tal que eles não podiam dirigir diretamente a palavra a ele. Tinham que fazer por intermédio da minha avó.

E agora, como é a relação com os seus filhos?
Acho que há uma espécie de escadinha. Comparando meu pai com meu avô, há uma diferença. Provavelmente devo ter sido um pai mais liberal do que foi o meu. Não tenho uma visão objetiva sobre isso. Espero ter sido um pai daqueles que dão mais liberdade aos filhos. Mas desconfio que não. Porque uma das coisas que mais me incomodam é não ter sido perfeito na educação dos meus filhos. Ser um pai legal é muito bom. Tem horas que dá vontade de começar de novo. Não teria feito isso. Não teria feito aquilo.

O senhor passou bem pelo período das conversas francas com eles, sobre drogas e sexo, por exemplo?
Sobre drogas e sexo nunca achei necessário. Com drogas eu sei que eles nunca tiveram nada, nem envolvimento nem tentação. Da intimidade deles, quando colocam, comenta-se. Mas uma coisa é certa: você não consegue forçar nada. Não fui participado de tudo o que foi acontecendo na vida de cada um deles, não fiz nada para controlá-los rigidamente e também não fiquei angustiado por isso.

Na sua juventude, seu pai nunca teve expectativa de que o senhor herdasse a banca de frutas?
Não. Não fez nenhuma indução sequer para que eu seguisse a mesma profissão que ele. Sempre tive muita liberdade.

E ele insistia que o senhor estudasse?
Na verdade, nunca houve em casa uma insistência muito grande para que eu estudasse. Havia, provavelmente, interesse em que eu fizesse o ginásio. Mas a partir daí eu estudei mais por vontade própria. Acabei sempre tendo muita pressa. Entrei na faculdade direto. Fiz o cursinho para a Politécnica enquanto cursava o 34 ano do científico. E posteriormente, quando fui aos Estados Unidos fazer doutorado em Economia, fiz os créditos todos em um ano e a tese em mais um ano. Tinha sido admitido em Yale e Cambridge, na Inglaterra, mas decidi por Cornell porque era onde podia fazer o doutorado mais depressa.

O senhor era um aluno nota 10?
No grupo escolar eu me sobressaía um pouco mais. A partir do ginásio me tornei mais seletivo no que estudava, e também fui deixando as coisas mais para última hora, mas por algumas matérias tomei paixão verdadeira. No começo, era Geografia. Sabia tudo de memória. Depois isso mudou para Matemática, principalmente no científico.

Por que o senhor foi estudar Engenharia primeiro? Achava que
tinha mais vocação para engenheiro?

É que os dois cursos que tinham prestígio naquela época eram Medicina e Engenharia. Medicina eu descartei porque, se vejo alguém aplicar uma injeção, já começa a me dar tontura. Provavelmente teria me formado engenheiro, se não tivesse saído do Brasil. Mas também acabaria estudando Economia de qualquer maneira, como acabou acontecendo quando eu tive de morar no Chile. Já na Poli, a partir do 34 ano, quando passei a ser mais ativo em política estudantil, me interessava muito por Economia.

Então, no curso secundário o senhor não era ativista político?
Desde que eu me sinto gente me interesso por política. Em casa, quando o Brasil entrou em guerra com a Itália, meti pai escutava rádio em ondas curtas, transmissões da própria Europa. Eu também ouvia. Lembro que, com 7, 8 anos, às vezes eu discutia política com tios, parentes. Era corrente eles brincarem que eu ia ser um político. Mas nos anos 40 a minha atividade política se resumia a vaiar o Dutra [marechal Eurico Gaspar Dutra, presidente da República de 1946 a 1951] quando ele aparecia no jornal do cinema [risos]. A partir dos anos 50, essa atividade política foi enriquecida por eu comandar a banquinha de distribuição de cédulas nas eleições, o que era muito divertido. Naquela época, as cédulas eram entregues ao eleitor antes de entrar no local da votação. Não havia cédula única. Alguém lá na vila devia ser cabo eleitoral, provavelmente do Adhemar de Barros [candidato a governador de São Paulo]. Então em 1950 eu apoiei o Getúlio, porque o Adhemar dobrou com ele.

“Na UTE, o Teatro Oficina pirateava, pegava no nosso telefone. Eu me vi na contingência de acabar com essa sociedade”

E como o senhor se envolveu com o movimento estudantil?
Na Poli, eu me envolvi com o teatro e acabei sendo diretor do grupo teatral. Fazia parte dos jograis, que era a coisa mais divertida que havia. E a política começou com a questão da reforma universitária. Houve uma greve muito ampla em 1962, da qual eu participei ativamente na faculdade. Passei a ter uma certa aproximação com os estudantes da Juventude Universitária Católica, embora eu não fosse integrante da JUC. Eles tinham maioria no movimento estudantil, tinham a eleição para a UEE praticamente certa. O José Carlos Seixas, que hoje é médico e ocupou vários cargos na área da saúde, era o dirigente principal em São Paulo e acabou achando que eu seria o melhor nome. Acabei entrando, inclusive com ajuda do Walter Barelli [ex-ministro do Trabalho do governo Itamar Franco].

Como foi o seu primeiro mandato?
Na UEE eu me dedicava muito. Era muito importante que a diretoria fosse bem, porque era a primeira vez que aquela tendência dó movimento tinha ganho a UEE. Participei então da fundação da AP [Ação Popular], uma organização na época basicamente estudantil. Depois de eleito, lidei muito com a parte administrativa da entidade.

Sua campanha foi assim, na base do “vou organizar”?
A campanha foi mais política, mas é possível que tivesse essa característica. Eu me preocupava até com detalhes. Tinha um sótão no prédio da UEE. E havia lá uns beliches em que dormiam artistas, hóspedes de passagem. Acabei com aquilo. A UEE não era entidade assistencial. As pessoas acabavam virando hóspedes permanentes e a sede ficava infreqüentável. Mandei as camas para fora. O [dramaturgo] Plínio Marcos era dessa época, lá. Ele chegou a ser hóspede da UEE. Também dividíamos o telefone com o Teatro Oficina, que pirateava, pegava no nosso telefone. Eu me vi na contigência de cortar essa sociedade, embora tivesse sido ligado ao Oficina.

O senhor chegou ao movimento estudantil pela JUC e já declarou que é católico, às vezes vai à missa e comunga. Acredita também em reencarnação?
Racionalmente, não. Irracionalmente, eu tenho, como muitos têm, aquela sensação, ao ver um filme ou ler um livro, de já ter estado numa época passada. Mas me deram uma interpretação decepcionante, de que isso seria uma microepilepsia, quando se desliga por um momento e ao retornar surge essa sensação. Mas eu tenho muito isso.

Em que situação? Um amigo seu disse algo sobre um monge na Idade Média.
Em filmes, tenho uma coisa muito forte em relação ao período entre guerras. Essa história de monge é porque quando visito conventos da Idade Média na Europa tenho a sensação também de que já estive naqueles lugares. Racionalmente, não acredito nisso. Nem sou de ter crenças fantásticas ou de ter medo do sobrenatural. Não tenho problema de passar embaixo de escada ou cruzar com um gato preto, nenhuma microssuperstição.

Mas ator e diretor de teatro amador o senhor foi nesta vida mesmo. O senhor se considerava talentoso no palco?
Mais ou menos. A Irene Ravache me disse uma vez que provavelmente eu seria um grande canastrão [risos]. Mas na época a sensação que eu tinha é de que ia bem. Num festival de teatro estudantil, fomos para Porto Alegre levando uma peça do Zé Celso, Vento Forte para Papagaio Subir. Eu era o ator principal. No júri estavam a [atriz] Glauce Rocha, o Joracy Camargo, autor do Deus lhe Pague, e outros atores e autores que não me lembro. Mas os dois, particularmente, me incentivaram muito a seguir a carreira teatral. Só que logo depois começou o envolvimento com o movimento estudantil e essa não era uma atividade compatível com o teatro.

Há algum ator cujo estilo o senhor gostaria de ter se tivesse continuado com o teatro?
Não sei se gostaria de ter o estilo do Paulo Autran e do Raul Cortez, mas gosto dos dois, por exemplo. Infelizmente freqüento pouco teatro e tenho terror de ter tédio, o que já aconteceu algumas vezes. Só não cito exemplos porque não quero criticar o trabalho de ninguém. Dos jovens, gosto do Gabriel Vilela, que tem muita imaginação para montar os espetáculos. Vejo mais cinema. Não perco filme do Stanley Kubrick e descobri recentemente o Danny de Vito. É um ator de talento e um diretor excelente. Impressionante como ele se impõe como ator, com aquela condição física.

De certo modo, os políticos também vivem num palco…
Para mim, essa pequena atividade teatral foi fundamental, porque me ajudou a enfrentar a inibição de encarar a platéia e também a desenvolver a voz, a capacidade de falar em público. Mas até hoje eu me considero extremamente tímido para aparecer em público.

Na sua época, o movimento estudantil era bem diferente, não? Estudante usava gravata.
Sem dúvida. Líder estudantil que se prezava boa parte das vezes andava de paletó e gravata. Como presidente da UEE e depois da UNE, eu tinha de fazer palestras que eram verdadeiras conferências. Não era só agitação e comícios. Havia uma intelectualização maior, que era compulsória, senão não conseguia desempenhar.

Havia mulheres na Poli?
Eram raríssimas. No meu ano não tinha. Mas havia duas ou três na escola…

Que, quando passavam, deviam ser aplaudidas…
Eram objeto de atenção. Eram tão poucas que para o grupo de teatro nós importávamos meninas de outras faculdades. Principalmente da Arquitetura, que tinham um conceito altíssimo entre os estudantes de Engenharia, no bom sentido, claro.

E o senhor, diretor do grupo de teatro, fazia o teste do sofá, também?
Não.

O senhor não pegou nem o começo da liberação sexual?
Não. Na minha geração, não. As relações com as mulheres eram mais formais. Você raramente tinha relações mais íntimas com namorada. Era outra época. A concepção de que relação sexual é para depois do casamento era muito mais difundida e mais aceita do que é hoje. O namoro era uma coisa diferente. No movimento estudantil em geral eu sempre ouvia dizer que em tal congresso houve namoros, meninas. Para mim, congresso estudantil era só trabalho.

Como? O senhor não se interessava por esse lado da vida?
Não era falta de interesse. Apenas não cruzava com essas situações. E também não fui a tantos congressos. Só estive em dois e era dos 10% que iam tratar de assuntos da entidade.

Se os namoros eram mais conservadores, como era a iniciação sexual da garotada no seu tempo?
Eu não vou falar do meu caso, mas acho que hoje se vive uma situação muito mais saudável nesse aspecto. Naquela época, no meu meio, era mais comum a iniciação com prostitutas e, entre garotos um pouco mais abastados, com empregadas domésticas. Acho as duas situações muito desconfortáveis, porque representam exercício violento do poder, seja porque, num caso, se compra uma pessoa ou porque, no outro, há enorme abuso numa relação econômica, de trabalho.

Não sobrava tempo para fazer coisas divertidas naquela época, como paquerar na Rua Augusta, por exemplo?
Muito pouco. Mas o trabalho era embevecedor também. Era um elemento afrodisíaco, de certa maneira, estimulante. Não ia para a Augusta porque era de outra região da cidade, mais modesta. Até o primeiro, segundo ano
da universidade, ainda ia a festas, bailes, cinema. Mas era uma coisa bem comportada. Às vezes também ia para o litoral. Dava para jogar futebol, arrumar namoradas eventuais.

E drogas, havia?
Não tinha. Maconha era considerada coisa de marginais. Quem fumava era maconheiro.

Nem lança-perfume o senhor experimentou?
Também não, porque sofri uma operação de apendicite aos 5 anos e a anestesia foi feita com uma máscara com clorofórmio colocada no meu rosto. Foi uma violência. A sensação é de perder a consciência como se estivesse morrendo. Em razão dessa experiência, acho inconcebível me meter a cheirar alguma coisa. É como comer camarão frito. Também tive uma indigestão quando era pequeno e hoje até como pratos com camarão, mas só de ver camarão frito com casca já começa a me dar enjôo.

E porre? Nunca tomou um?
Acho que um que poderia verdadeiramente se caracterizar como porre, uma palavra que não gosto, foi na Bolívia, em 1964. Estava exilado e, portanto, bastante deprimido, também pelas condições ambientais horríveis, a 4 000 metros de altura, um lugar frio. Houve uma festa de aniversário e nada de chegar a comida. Eu estava em jejum e comecei a tomar pisco sauer. Lembro que tinha dança, mulheres. Comecei a dançar de uma maneira bastante desinibida e, de repente, sai para tomar ar, o que, a 4000 metros, não faz o menor sentido [risos]. Foi respirar fundo e cair. Me levaram para a cama e eu passei a conversar com todo o mundo em espanhol, na maior fluência. Fiquei bêbado em espanhol [risos]. Depois passei vários dias mal do estômago. Meu estômago é uma espécie de órgão controlador. Ele não me permite excessos.

“Tomava pisco sauer em jejum. Saí para tomar ar e caí. Depois, só falava espanhol. Fiquei bêbado em espanhol”

Logo depois da eleição para a UNE, o senhor foi convocado para depor numa CPI sobre corrupção no movimento estudantil que deu em nada. Mas havia ou não corrupção?
Essa CPI da UNE foi uma experiência incrível. Eu tinha 21 anos e, de repente, passo dois ou três dias em Brasília respondendo, numa CPI, para deputados experientes. Quem tinha convocado, recolhido as assinaturas, era o deputado Raimundo Padilha [UDN do Rio de Janeiro], que era um homem muito inteligente. Não era bem corrupção o objeto. Entrava por aí também, mas era mais dinheiro vindo do exterior, subversão. Fui absolutamente educado e irônico durante o depoimento e acabei fazendo o Raimundo Padilha perder a paciência. Quando ele interveio, disse: “Eu tenho nove filhos, graças a Deus todos anticomunistas como eu, e alguns têm mais idade do que o jovem que está aqui sendo interrogado, mas ele tem a cabeça de um adulto. Portanto vai me permitir tratá-lo como um adulto.” A partir daí, a todas as perguntas que ele me fazia, sempre capciosas, eu respondia: “Mas deputado, o senhor com nove filhos anticomunistas, com trinta anos de vida pública, como o senhor pode fazer uma pergunta como essa, como pode dizer uma coisa tão equivocada?” E essa história eu colocava em todas as respostas. Aprendi já bastante cedo que uma CPI servia para gerar noticiário. O país estava polarizado, a UNE era uma entidade bastante combatida. Então dava material para a grande imprensa, que acusava a UNE de ser agente de Moscou. Era um prato.

A idéia que se tinha da UNE era errada?
A UNE era bastante radical. Mas se tinha uma coisa que a caracterizava era a defesa da democracia. Em agosto de 1963, houve um comício na Cinelândia, organizado pelo [então presidente] João Goulart, mas formalmente pelas entidades de trabalhadores. Tinham me colocado como primeiro orador, mas nesse horário o pessoal ainda está fazendo passeata, comendo pipoca. Então cheguei bem atrasado no palanque, e acabei falando quando o Jango estava presente. Falei contra a intervenção na Guanabara e em São Paulo, que estava sendo cogitada pelo governo. E nós éramos inimigos do [Carlos] Lacerda [então governador da Guanabara] e do Adhemar. Um mês depois, o governo propôs o estado de sítio.

Vocês foram recebidos pelo presidente João Goulart para tratar disso, não foi?
Fizemos uma reunião da Frente de Mobilização com ele, num apartamento que se não me engano era da irmã dele, no mesmo prédio em que o Leonel Brizola [cunhado de Jango e então deputado federal pelo Estado da Guanabara] morava, para pedir para retirar a proposta de estado de sítio. Na hora, o Brizola, que abriu a reunião com o Jango, disse que eu falaria em nome da Frente, contra o estado de sítio. Ele àquela altura também já estava contra.
Apresentei ao Jango as razões, dizendo que aquilo levaria a um golpe e que ele próprio seria engolido.

Um jovem cheio de razões…
Cheio de razões. Analítico, com toda uma argumentação. Quando eu terminei de falar o Jango me disse: “O jovem não precisa se preocupar porque eu já vou retirar a proposta. Apenas não quero que isso seja revelado, por enquanto.” A reunião foi secreta e, por incrível que pareça, não vazou. Inclusive continuamos pedindo que a idéia do estado de sítio fosse abandonada. Nessa reunião, o Jango disse que não terminaria o mandato…

Ele previu o golpe?
Eu ouvi isso da boca dele. Num outro momento deu a entender que havia pressão contra a UNE e que nos protegia, apesar da nossa insolência, do nosso radicalismo, inclusive contra ele. Jango nos considerava oposição, o que era verdade. Ele disse: “Vocês me tratam mal mas não sabem como eu os protejo. Tem muitos generais que gostariam de…” [pausa] Não lembro mais qual foi a expressão.

“O Jango queria ser deposto em função das reformas, ir para São Borja e, depois, também dar uma entrevista para Samuel Wainer”

Mas o radicalismo da UNE não acabou contribuindo para o golpe?
Veja: o que nós fizemos foi a mobilização pelas reformas e antigolpe. Isso não mudou. O radicalismo nosso não nos parecia incompatível com a legalidade democrática. O que empurrou o Jango para ser derrubado não foi a pregação das reformas. Foi a quebra da hierarquia militar, tentativas de golpe. Não foi a reforma agrária. Claro que acabou contribuindo, mas esses foram fatores secundários. É curioso, porque muitos anos depois do golpe conversei com o [jornalista] Samuel Wainer, quando eu era editorialista da Folha de S.Paulo. O Samuel, talvez a pessoa mais próxima ao Jango, ghost writer, conselheiro político, disse que o presidente preparou a saída a partir da crise do estado de sítio. Quer dizer, aquilo que nós suspeitávamos na época era quase verdadeiro. No fundo, o modelo que ele via pela frente era ser deposto em função das reformas, voltar para São Boja e provavelmente dali a alguns anos dar uma entrevista para o Samuel, como o Getúlio deu. O Samuel escreveria, corrigiria algumas coisas, e ele voltaria nos braços do povo. Com esse plano, acabou contribuindo para jogar o país num período de vinte anos de autoritarismo.

Do golpe até sua saída do país, como se passaram as coisas?
Depois do golpe, eu fiquei no Rio de Janeiro, que eu conhecia pouco. A UNE foi incendiada depois da ocupação. Fiquei com o Marcelo Cerqueira, então vice-presidente da UNE, que era do Rio. Eu implicava muito com o Marcelo, porque nós fomos um belo dia para a casa de algum amigo dele, num bairro mais distante. Quando chegamos lá, a casa do amigo não existia mais [risos]. Ficamos indo de lugar em lugar, com uma ou outra roupa emprestada, literalmente ao Deus dará. Depois de algum tempo, fomos para a Bolívia. Para mim, parecia uma idéia estranhíssima sair do Brasil, uma coisa não planejada.

Consta que o senhor ainda voltou e viveu clandestinamente em São Paulo.
Eu voltei, no final de 1964, começo de 1965.

Como? Com passaporte, tudo direitinho?
Não. Eu voltei via Chile, com carteira de identidade. Tinha um documento de viagens boliviano. Vim por terra. Minha intenção era permanecer aqui, terminar a faculdade. Mas não havia condições. Se eu aparecesse, seria detido. E vários estudantes ligados a mim acabaram sendo detidos num encontro estudantil da AP. Então, perdi um pouco a ilusão de permanecer aqui a curto prazo. Inclusive porque no dia do aniversário de um ano do golpe, o [general Arthur da] Costa e Silva [então ministro do Guerra] aludiu indiretamente a mim, quando disse que no Brasil tinha acabado a época em que estudantes insolentes insultavam generais da República [risos]. Isso porque eu tinha criticado naquele comício da Cinelândia o comportamento golpista do general Amaury Kuel [comandante do II Exército]. Aí percebi que não dava. Por intermédio de um despachante, tiramos um passaporte…

No seu nome mesmo?
No meu nome. Saí por mar para o Uruguai e de lá fui para o Chile.

E por que o senhor escolheu o Chile?
Porque era perto do Brasil. Em segundo lugar havia um curso de pós-graduação em Economia na Universidade muito bom, que concorria com o padrão americano de ensino. E além do mais lá estava a Cepal [Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe], onde também havia um curso básico de formação, do Ilpes [Instituto Latino Americano de Planejamento Econômico e Social], que era de um ano

E o senhor tinha concluído Engenharia?
Não tinha. Pensei fazê-lo no Chile enquanto começava a estudar Economia, mas chegando lá vi que era inviável. O curso de Engenharia no Chile era de seis anos, o currículo era diferente. Por isso, resolvi me concentrar em Economia. Não tinha nada para fazer exceto estudar. No ano seguinte, tornei-me professor assistente. Ao mesmo tempo, entrei no curso da Cepal, o que consegui sem bolsa, porque os alunos eram indicados pelos governos, e o governo brasileiro evidentemente não me indicaria. Também fui dar aula de Matemática no Ilpes. Com essas duas fontes de renda eu me mantive naquele ano. Em 1965, eu me mantive com muita dificuldade com o dinheiro que minha família havia dado.

Então o senhor levou daqui uma mala de dinheiro?
Não, não [risos]. Levei uma malinha e me mantinha com dificuldade. As refeições, em geral, eram visitando os amigos. Não era muito planejado, porque não tive dificuldade de sobreviver com sanduíches. Acho até que foi um período vibrante, porque me abriu o mundo intelectual. Decidi fazer o curso de pós-gradução. Aí eu estudei tudo, em três meses, e entrei, passei no exame.

“No aniversário do golpe, Costa e Silva disse ter acabado a época em que estudantes insultavam generais. Falava de mim”

Isso tudo está muito confuso. O senhor fez pós-graduação sem completar a graduação? Não tirou diploma.
É. Mas depois eu acabei tirando. Na verdade, foi tudo muito estranho: para começar, entrei no curso no 2° ano sem ter feito o 1°, que existia para homogeneizar a formação das pessoas em Matemática. Fui um dos dois ou três melhores alunos e, quando terminei o curso, tornei-me professor da Escola de Economia. Ao mesmo tempo, tornei-me titular na pós-graduação. Então, sendo professor, tendo terminado o curso com boas notas e com tudo que tinha já estudado, o conselho da universidade me deu o título de bacharel em Ciências Econômicas. Com esse título, pude apresentar a tese de mestrado.

Fez tudo ao contrário…
Tudo ao contrário. Enfim, fiquei por lá até depois do golpe, quando fui para os Estados Unidos.

Quando a situação chilena começou a evoluir para o golpe contra Salvador Allende o senhor chegou a ter aquela sensação de um filme que já tinha visto?
Até certo ponto. Porque o Chile parecia ter uma democracia muito mais consolidada. Para mim, a vitória do Allende foi uma surpresa, inclusive porque já era a quarta vez que ele se candidatava. O fato é que o Chile ficou dividido em três, porque as votações de Allende, do candidato democrata [Jorge Alessandri] e do conservador [Radomiro Tomic] foram parecidas. A Unidade Popular tinha aquele programa de esquerda democrática socialista, sem ser pela via revolucionária, e levou o programa para a frente de maneira determinada. Não era como no Brasil. Era para valer. A partir de um certo momento, passei a ter dúvida, lá, sobre a seguinte estratégia: você tem minoria no Congresso, ganha o Poder Executivo, faz a chamada política popular, ganha as chamadas massas, pressiona o Congresso, que então promove reformas institucionais.

“Nas primeiras horas de prisão eu estava abismado. Sabíamos de gente que tinha sido morta longe de testemunhas”

Paralelamente vai conquistando maiores índices eleitorais e, com isso, chega ao socialismo pela via pacífica. Tinha dúvida sobre esse caminho, porque dependia muito do que ia acontecer com a economia e de como as forças majoritárias no país iam reagir. Lembro, quanto à questão do golpe, de uma carta ao Plínio Sampaio [ex-deputado federal do PT], que morava em Washington. Escrevi para ele em janeiro de 1973 dizendo que o golpe no Chile, na minha opinião, era praticamente inevitável, que dificilmente iria passar de setembro, outubro. [O golpe ocorreu no dia 11 de setembro daquele ano.] Não tenho nenhuma vaidade de ter ficado, em acontecimentos tanto no Brasil como no Chile, com um noção clara daquilo que iria acontecer. Eu espero, da próxima vez, errar quando fizer uma previsão desse tipo [risos].

O senhor virou especialista em golpes?
Depois analisei isso, detalhadamente, na minha tese de doutorado,
que fiz nos Estados Unidos. Talvez tenha sido a análise mais minuciosa da experiência chilena. Foi feita pouco tempo depois, e como era uma experiência de menos de três anos, pude reconstituir tudo. Essa estratégia é a mesma curiosamente implícita na atitude do PT, às vezes não consciente. Hoje faz parte da minha estrutura de convicções a idéia de que governar bem significa governar com maioria. Se nós tivermos que enfrentar a reprodução do método Allende já no ano que vem, nós estaremos perdendo o resto da década. No Chile, a sensação de que tinha visto aquele filme foi até certo ponto. Tinha certa familiaridade, mas não era tanta. Sinceramente, não dá para comparar o Jango com o Allende, em matéria de preparo, de seriedade, de vontade de governar. de competência.

E o golpe no Chile também veio com violência muito maior.
Isso sem dúvida nenhuma. O golpe brasileiro de 1964, comparado ao do Chile em 1973, foi um chá de senhoras.

O senhor foi parar no Estádio Nacional, que havia sido improvisado em prisão. Como foi isso?
Eu era funcionário internacional, tinha um carro com chapa diplomática. Um dia foram procurar por mim. Até hoje eu ignoro a razão. Não me acharam. Logo depois, me pediram desculpas pelo incidente. Então me preparei para uma viagem programada anteriormente ao golpe. Na prática já tinha deixado o país, estava no hall de embarque do aeroporto de Santiago quando fui detido. Estava com o Lu [seu filho Luciano] no colo, ele tinha só 3 meses. Perguntei imediatamente por que estava sendo detido, e o sujeito que me prendeu só disse que tinha ordem. Ele ficou atrapalhado com o meu visto oficial. Mas fui preso.

O senhor não se apavorou?
Nós sabíamos de casos de gente que havia sido morta longe de testemunhas. Nas primeiras horas eu estava abismado, com muito medo. Depois me veio uma grande tranqüilidade. Passei a noite no quartel de investigações, em dependências da Polícia Civil. De manhã tive um interrogatório cretino. Queriam saber se eu tinha uma gráfica, umas coisas absurdas. Mais tarde me levaram para o estádio. Quando cheguei, fiquei numa espécie de portaria. Não cheguei a ser encaminhado para nenhuma cela. Pedi para falar com o comandante do campo. Me lembro até hoje o nome, coronel Spinoza. Insisti que eu tinha imunidade e não podia ser preso. Houve lá uma polêmica. Passei o dia nisso. Queria falar com o major, com o capitão, com este, com aquele.

E conseguiu ser solto.
No final do dia chegou lá um major e me disse para voltar para interrogatório, no dia seguinte. Tive medo de levar um tiro pelas costas, na saída, mas encontrei um telefone público ali perto. Liguei para casa. É extraordinário isso. Praticamente ainda dentro do estádio. Fui a única pessoa a sair assim. Os outros todos ou não saíram vivos ou saíram direto para fora do Chile. Não voltei para o interrogatório. Fui para a embaixada da Itália com minha família. Saímos do país depois de algum tempo.

É verdade que o senhor fez análise enquanto esteve no Chile?
Fiz uns dois anos de psicoterapia tradicional, de conversar só. E talvez uns três anos de análise bem convencional. Com direito a divã e tudo. Dessas que, se você não fala nada, o analista também não. A gente não muda fazendo análise, mas passa a se aceitar mais. Eu nunca tive nenhum estalo. Sempre tive inveja de pessoas que dizem ter feito alguma grande descoberta a seu próprio respeito ou tiveram algum acesso de choro no meio da sessão. Comigo nunca houve nada disso. Fui reconhecendo traços da minha personalidade, como a minha tendência de não fazer o que não gosto, uma coisa que aliás acho que é muito certa. Só faço o que não gosto quando não tem outro jeito. Mas nunca surgiu nada de muito emocional. Nem sonhos trabalhei muito. Acho que interpretação convencional de sonhos é uma coisa muito elementar. Ou seja, o sonho sobre a morte de alguém significa que se quer matar aquela pessoa, por exemplo.

O senhor tem algum sonho recorrente?
Só um pesadelo que às vezes se repete. Sonho que estou num avião e ele voa tão baixo que parece que vai bater num monte de fios ou edifícios. Convenhamos que é pesadelo para ninguém botar defeito. Eu até já desenvolvi provavelmente uma técnica que avisa que é só um sonho. Nunca teve um desfecho trágico, até porque acordo antes de chegar ao final. Outro sonho que me marcou eu tive há uns dois anos. Vi meu avô, pai da minha mãe, que era uma pessoa que me dava apoio irrestrito no que eu fazia, chegando perto de mim e me segurando o braço com bastante energia. Eu devia estar passando por algum momento difícil e meti subconsciente resolveu dar uma força para a realidade desencavando alguém que sempre me deu apoio.

Voltando, então, à sua realidade de exilado, o período que o senhor passou nos Estados Unidos, depois disso, fez a sua cabeça em algum aspecto?
A coisa que me impactou mais foi a disciplina social voluntária que existe por lá. Quem nasce lá nem deve ter consciência disso. O respeito à individualidade do outro. Um segundo aspecto foi que, na verdade, é uma sociedade em que a riqueza é menos ostentatória. As diferenças sociais não só são menores, como não são exibidas ostensivamente. Um terceiro aspecto é que realmente há democracia. Lá, é um modo de vida. E também é um lugar onde ganhar dinheiro é considerado um mérito, um elemento de valorização social.

No retorno ao Brasil, como estava a situação do seu passaporte?
Eu não sei se não dá encrenca eu ter tido um passaporte italiano…

Não pode dar. Afinal, não lhe davam passaporte brasileiro.
Eu voltei com passaporte italiano.

Sua família gosta dessa vida de político que o senhor escolheu ou preferia vê-lo na universidade, como nos tempos de exílio?
Eu não sei se eles têm claro a alternativa. Porque há tanto tempo estou nisso. Nunca falaram nada. No caso da minha mãe, acho que hoje é motivo de satisfação. Mais restritamente, aqui em casa, eu tenho a impressão de que o Lu não tem maior entusiasmo por eu estar na política.

“O horário da manhã não é meu período mais brilhante. Nunca cometi a insensatez de corrigir provas nessa parte do dia”

E em época eleitoral? O senhor instala cabos eleitorais na sala?
Não. As crianças nunca participaram efetivamente de uma campanha, e a Mônica eu diria que somente na campanha para a prefeitura de São Paulo, em 1988 [Teve 5,59% dos votos e ficou em quarto lugar; elegeu-se Luiza Erundina, do PT]. Eu não forço. Isso depende de cada um. Em casa raríssimas vezes faço uma reunião. Cuido mais da parte intelectual do trabalho, como escrever ou telefonar.

Dizem, aliás, que os seus telefonemas não obedecem a horários convencionais. O senhor incomoda os outros à noite?
É uma coisa que tenho procurado corrigir. Não tenho um gosto especial por dormir. Se tenho um trabalho para fazer, não hesito em invadir a noite, mesmo quando tenho de acordar cedo no dia seguinte. Aliás, estamos conversando aqui, meia-noite e meia, e às 6 horas tenho de acordar para o Bom Dia Brasil [programa da Rede Globo]. Nem me ocorreu cancelar esta sessão da entrevista por causa disso. Mas quando estou fazendo alguma coisa que acho importante, não vem o sono. Diria que 90% das vezes em que durmo é porque considero racionalmente que é importante dormir. E também tendo a levar problemas para a cama. Não sei desligar. imediatamente. Eu posso não ter resolvido muitos problemas na vida, mas os que eu resolvi foram, em grande parte, deixando de dormir.

Isso não é muito estressante? Como o senhor resolve o problema do stress?
Às vezes com massagem. Acho curioso que as pessoas fujam disso dizendo que dói. Ora, a dor é exatamente o resultado da tensão acumulada nos pontos massageá-los. Quem sente mais dor é exatamente quem mais está precisando de massagem. Acho tão bom isso que, mesmo sendo leigo, sinto-me capaz hoje de fazer massagem bem. Faço para minha mulher e para minha filha e dá resultado, mesmo não sendo profissional.

Mas o hábito que está corrigindo é o de levar problemas para a cama ou o de incomodar os outros?
É o de incomodar os outros. Às vezes, eu não olho a hora ou acho que não estão dormindo. Mas o motivo é sempre importante. O ideal é ter um assessor ou algum amigo que você sabe que não tem problema de acordar e dormir de novo, o que aliás não é o meu caso. Se acordo, não é tranqüilo voltar a dormir com alguma preocupação. Mas tem gente que realmente é espantosa nesta matéria. O [jornalista] Elio Gaspari, por exemplo. Nunca sei se ele estava ou não dormindo. Ele sempre diz que não estava.

E sua mulher não reclama desses seus hábitos telefônicos noturnos?
Reclama ocasionalmente. Mas pouco, levando em consideração que ela dorme na mesma cama que eu pelo menos 200 noites por ano. Se reclama dez vezes é muito.

Mas o senhor, dormindo assim, funciona bem de manhã?
Não é o meu período mais brilhante. O meu humor em geral melhora no transcorrer do dia. De manhã é razoavelmente ruim. Eu dava aulas melhor à tarde do que de manhã e melhor à noite do que à tarde, do ponto de vista do humor, da afabilidade.

Então, de manhã o senhor era uma fábrica de zeros?
Não. Nunca cometi a insensatez de corrigir provas de manhã [risos].

O senhor somatiza o mau humor? Dizem que consome pastilhas para gastrite.
Não é gastrite. É acidez. Eu tenho um excesso de produção de ácido no estômago. Em geral, principalmente à noite, eu chupo pastilha.

E remédio, o senhor toma muito?
Pouco. Eu tomo todo dia uma vitamina C natural e também um complexo vitamínico contra o stress, com zinco. Não é muito científico, mas me faz bem.

E o guaraná em pó?
Eu tomo guaraná em pó. O efeito não é muito diferente do café. Não gosto de café. Tem duas coisas que eu tentei fazer e, por sorte, não deram certo: fumar, quando era adolescente, e tomar café.

Aspirina, o senhor não toma?
Aspirina, não. Tem o Buferin. É um pouco melhor, mas mesmo assim não me faz bem. Eu tendo a tomar Tylenol. De Novalgina, tenho uma alergia enorme. Me saem manchas vermelhas no corpo.

O senhor entende bem de remédios, não?
Não. Eu tenho fama de hipocondríaco, mas não é justificável. Não faço como o Marcos Azambuja [embaixador do Brasil em Buenos Aires], que quando morava em Genebra assinava a revista das Farmácias para saber as novidades.

E para a crise brasileira, o senhor acha que há remédio?
Acho que o Brasil, depois de 110 anos de expansão econômica extraordinária, a maior do mundo entre 1870 e 1980, entrou numa espécie de inferno zodiacal econômico. A superinflação, a mais longa da história conhecida dos povos, acabou encurtando os horizontes, mudando, anuviando e exarcebando o individualismo, a esperteza. E terminou contribuindo decisivamente para a deterioração da administração pública. Mas há pontos favoráveis. Há uma indústria que ainda é significativa, uma disponibilidade muito favorável de recursos naturais, uma força de trabalho com grande capacidade, boa capacidade empresarial, agressividade exportadora significativa e muitas oportunidades de investimento. Por outro lado, o Brasil tem capacidade de gerar superávit comercial mesmo crescendo, coisa que outros países da América Latina têm dificuldade. Veja o México, que chegou a déficits comerciais de 7% do PIB. Na Argentina, está crescente. No próprio Chile. No Brasil, não.

Mas o nó central para ter mercado não é a má distribuição de renda?
A má distribuição da renda não estreita o mercado, porque ele é dado pelo volume da demanda. Pode ser um mercado de que você não goste, mas o
volume não muda com a distribuição da renda. Esse é um equívoco muito comum em economia, o de que a má distribuição da renda diminui o mercado. Então, há excelentes condições para uma retomada, inclusive melhores do ponto de vista econômico e social. A democracia no Brasil tem resistido a pestes incríveis, até de uma Constituição que entrava o desenvolvimento do país. Afinal de contas, em 1989, um ex-líder operário quase ganhou a eleição para presidente e não houve nenhum abalo institucional. Já não se confunde tanto democracia com populismo. O importante é criar um círculo virtuoso, em que felicidade puxa felicidade, em contraposição ao circulo vicioso, em que desgraça puxa desgraça. Isso é fundamental.

O Plano Real será suficiente para isso?
O Plano Real teve uma reação positiva da população porque o país ganhou uma moeda e já é possível, pelo menos, comparar preços. A idéia de saber que o preço será o mesmo na semana que vem também agrada. Mas a luta para o Real vencer não é de dois ou três meses. Será de dois ou três anos. Isso aconteceu com todos o países que tiveram sucesso nos seus planos de estabilização. É como lutar com o Arnold Schwarzenegger. Já derrubou. Agora tem que mantê-lo no chão. Para isso, será preciso uma reforma ampla da Constituição no próximo ano. O ideal é que o governo Itamar segure as pontas e o próximo possa fazer as reformas para controlar o déficit. A necessidade da reforma pode até gerar uma crise institucional, já que será necessário encontrar uma forma rápida de fazer isso. Pelo processo normal de emendas, a tentativa de reforma pára nas obstruções indefinidamente. Só que um presidente recém-eleito poderá ter força para evitar esse risco.

O seu otimismo tem relação com o bom desempenho de Fernando Henrique nas pesquisas?
Não é só isso. Acho que a confiança que se percebe na população demonstra um passo dado na direção certa. É urgente recuperar no Brasil a idéia de uma utopia. E necessário permitir a mobilização das energias sociais numa direção positiva, ainda que os resultados sejam sempre mais modestos que aqueles almejados e que motivaram essa mobilização. O importante é ter uma utopia realista, que permita ao país continuar caminhando. O país parado é um país que não se abre nem ao inesperado, ao extravagante.

Dê um exemplo disso.
Algo que não era previsível pouco tempo antes, como aconteceu na a queda do muro de Berlim. Não há História sem extravagância.

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