As histórias que reprisam na minha vida

Entusiastas
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5 min readFeb 16, 2018
Ilustração de Maria Louise Nery para o livro A Bolsa Amarela

Quando eu era criança, gostava de rever meus filmes favoritos até saber de cor todas as falas. Eu costumava ver O Rei Leão sentada em frente da tevê falando as falas alguns segundos antes dos personagens enquanto meus pais me observavam abismados. “Pra que rever algo que você já sabe de cor?”, essa pergunta da minha mãe me acompanhou durante todo o meu crescimento e até hoje eu tenho que responder: “porque eu gosto, ué”.

Eu gosto de rever. Eu gosto de reler. Nesse momento eu estou relendo toda a saga Harry Potter (em parte para o podcast Estupefaça Coração, em outra parte porque eu realmente gosto de ler Harry Potter), acabei de terminar de rever The Office e estou planejando rever Mad Men. Não é que eu não goste de coisas novas, não me leve a mal. Eu amo ir ao cinema ver uma nova estréia, amo começar livros pela primeira vez, mas meu coração também está sempre pronto para revisitar as coisas que eu já sei que amo.

E não são apenas coisas felizes e alegres que eu gosto de reler ou rever. Ainda criança, eu era obcecada por um conto sobre o sapo e a cobra que eram amigos, mas os pais não apoiavam essa amizade, tanto que proibiram seus filhos de se encontrarem um com o outro. Algum tempo se passou e o sapo tornou a ver a cobra, mas eles já eram grandes o suficiente para entenderem o porquê da desaprovação dos pais. A cobra é o predador natural do sapo e, mesmo que eles um dia tivessem sido amigos, a natureza foi mais forte que a amizade e a cobra acaba comendo o sapo. É um conto bem triste e eu sempre chorava quando lia, mas também sempre relia mesmo assim. “Por quê?”, vocês podem me perguntar, e eu respondo: porque aquilo me emocionava e eu queria sempre voltar a sentir aquelas emoções. A culpada era a catarse.

Mas só anos depois eu fui entender melhor o meu gosto pelas reprises. Recentemente, eu resolvi reler o meu livro favorito da infância (e também da vida toda), A Bolsa Amarela, da Lygia Bojunga. Eu mal tinha seis anos quando li A Bolsa Amarela pela primeira vez, mas de repente eu já sabia o que era identidade e entendia profundamente quem eu era. Foi tão intensa a minha relação com o livro que parecia que eu mesma tinha escrito uma história sobre mim. Passei anos sem reler até que numa tarde de janeiro eu resolvi revisitá-lo e tudo ficou mais claro.

A Bolsa Amarela é ainda o meu livro. Ao reler, eu entendi a minha obsessão infantil e consegui ver a mini-Júlia quase que saindo daquelas palavras. Fez todo o sentido. Aquele livro fez parte da minha formação e, por isso, ele faz parte de mim, da minha história. Ao reler, eu também estou lembrando de quem eu era e de como eu cresci, mas não de uma forma nostálgica, com saudades do passado. Eu não quero voltar a ter seis anos para ler A Bolsa Amarela pela primeira vez, eu ainda quero ser quem eu sou agora. Eu mudei, é claro, mas também permaneço a mesma. A minha história foi e ainda está sendo construída e as coisas que eu amo e consumo estão atreladas à ela, pois estão atreladas a mim.

Outro dia eu ouvi um podcast que falava sobre mudanças e transformações. Os apresentadores ficaram se perguntando se é possível uma pessoa se transformar em algo completamente diferente do que ela é. Eu não acho que pessoas podem se transformar, pois acho que a transformação implica uma pessoa se tornar outra totalmente diferente, como uma lagarta que se transforma numa borboleta. Transformação é biologia, mas não é humana. Contudo, eu acredito que as pessoas possam mudar. E é bom mudar, é bom melhorar, olhar para trás e aprender com os próprios erros.

Mudar também significa que algo permaneceu o mesmo. E é exatamente por causa disso que o reler e o rever me satisfazem tanto. É quando eu percebo o quanto eu mudei e o quanto eu ainda continuo a mesma. Quando eu retorno para algo que eu gostei no passado e percebo que ainda gosto, eu reencontro o meu eu de antes, o que ainda sou e o que eu ainda não era.

Eu, assim como outras pessoas, busco na arte muitas coisas. Uma dessas coisas é a identificação. A gente às vezes até esquece o quanto é importante se identificar e conseguir se ver em outra pessoa (ou personagem, ou história); conseguir sentir empatia pelo outro; conseguir, ou pelo menos tentar, se colocar em outras situações, mesmo que sejam situações fictícias. Eu mesma não posso saber como é ser uma mulher na Inglaterra pré-vitoriana, mas eu já reli e revi Orgulho e Preconceito o suficiente para trazer para a minha vida um pouco dessa história.

As histórias que reprisam na minha vida me ensinaram a ser o que hoje eu sou e continuam a me mostrar coisas novas. Assim como uma pessoa cresce e muda, as boas histórias são capazes de trazer coisas diferentes a cada leitura. Sempre que me sinto perdida, ou em crise, ou num dia ruim, revisitar as histórias que fazem parte da minha vida me ajudam a reafirmar quem eu sou e me ajudam a entender que a minha história é válida e importante, assim como qualquer outra.

Nem sempre eu consigo fechar ciclos, nem sempre eu consigo entender o que acontece ao meu redor, nem sempre as portas se abrem quando eu preciso que elas se abram. Durante a maior parte do tempo, eu estou perdida, tentando entender qual é o meu papel no mundo. A vida não faz sentido narrativo. E tudo bem, porque eu tenho comigo as histórias que ajudaram a construir a minha história. Elas, ao contrário de mim, são estáveis, duram para sempre e eu consigo ver sentido nelas. Revisitá-las me traz a tranquilidade que eu preciso para continuar no mundo real da não-ficção.

Júlia Medina fez Letras e estudou russo na faculdade. Passou tempo demais entre o mundo cult e pop para perceber que o importante mesmo é a zoeira. Seu sonho é se tornar crítica profissional e ser paga para ir ao cinema. É co-apresentadora do podcast Estupefaça Coração e tem uma newsletter onde escreve sobre crushes e amores impossíveis.

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