Diário de uma manteiga derretida: fevereiro de 2019

Sofia Soter
Entusiastas
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4 min readFeb 28, 2019
Imagem de "Practical Magic", indiretamente uma fonte de choro do mês.

Sumi por uns meses. Talvez vocês tenham notado, mas talvez não. Sumi porque, em outubro, entrei em depressão. Eu e muita gente, o caos das eleições um gatilho para todos os jeitos dos nossos cérebros pifarem. Do meu cérebro, pelo menos.

Teria sido interessante escrever aqui sobre a depressão, explorar os choros diferentes, o desespero. Mas o problema da depressão é que algumas coisas ficam simplesmente impossíveis, e escrever esta coluna foi uma dessas coisas. Quando não consigo sair do fundo do que estou sentindo, é muito difícil registrar, escrever, analisar. Por isso, nos últimos meses, eu só senti.

Agora estou estável. Já faz uns dois ou três meses que os remédios continuam na mesma dose. Estou funcionando. E, como estou funcionando, estou também chorando.

1/2: Comecei o mês gripada e exausta, com uma noite mal dormida por dificuldade de respirar. Fui à casa da minha mãe e acabei chorando, chorando e chorando, falando sobre família. Mais tarde, fui ler o horóscopo do Autostraddle, como é de costume. Cheguei em Virgem (meu ascendente, mercúrio, marte e vênus) e, ao chegar na frase "do you feel guilty for experiencing joy when others are suffering?", chorei tanto que fechei a janela sem terminar de ler o horóscopo. Ainda mais tarde, já sensível, chorei de novo escutando "Meu caro amigo".

3/2: Ainda gripadíssima, no meu segundo dia em São Paulo. Estava trabalhando na tradução de textos ótimos mas duros, pesados, sobre violência doméstica. Virei para a Laura sem saber se estava chorando de gripe ou emoção.

12/2: Cliquei num link no Twitter e acabei aos prantos: "My Son and I Don't Do Well With Chaos — and That's Okay", da Katie Rose Pryal, colocou em palavras a forma como me sinto e como funciono, com tanta precisão que passei dias sem conseguir falar de outra coisa. Para completar, no mesmo dia chegou a newsletter da Jeanna Kadlec (uma fonte certa de choro) sobre o amor entre irmãs (outra fonte certa de choro). Honestamente, dá para ler um parágrafo desses sem chorar? "It turns out, this is how family curses break — at least, the ones in mine, and the ones in Practical Magic: through the strength of sisters’ love, and the support we offer each other as we walk out through and out of trauma. This is how old bonds are weakened and how new paths are forged."

18/2: Outro dia estava respondendo perguntas sobre trabalho no Twitter e me perguntaram qual é a parte mais difícil do trabalho. Respondi que era trabalhar em livros muito ruins. No dia 18, estava de madrugada mergulhada em um trabalho desses, um livro péssimo, urgente, chato. Não tinha comido muito durante o dia, nem dormido muito na noite anterior. E, mesmo que não gostasse nada do livro, que não me conectasse emocionalmente com ele, o cansaço foi tanto que cheguei em uma parte triste e chorei. Cinco minutos depois, o Spotify começou a tocar "You & I" e chorei mais.

22/2: Pela primeira vez em 12 anos de terapia, chorei tanto que a sessão precisou ter o dobro do tempo. Chorei, chorei e chorei, de soluçar, de me sacudir. Chorei e falei meus medos, com a voz infantil que surge quando me sinto desamparada. Chorei e acabei com a caixa de lenços da terapeuta. O dia inteiro foi carregado por esse choro, por essa hora e meia de sentimentos sendo expelidos como se à força. Por isso, quando tive que me concentrar na revisão de um texto sobre o MST, acabei aos prantos de novo, emocionada com o poder da comunidade.

25/2: Passei o mês inteiro trabalhando sem parar, para poder chegar no dia 25 e pegar um avião para Nova York. Na semana anterior, ansiei pelas onze horas de voo porque representavam descanso e calma para chorar de verdade. Incluo aqui essa viagem por isso, mas agora, só dois dias depois, não sei mesmo se chorei. Vi metade de Gone Girl, dormi profundamente, vi outra metade, pousei. Devo ter chorado, cansada. Devo ter chorado, vendo o céu pela janela. Sempre choro. Mas não lembro.

27/2: À noite, encontrei amigues da internet para ver duas das minhas maiores ídolas, Kristin Russo e Heather Hogan, falarem sobre televisão queer dos anos 90. O evento começou com "Becoming, pt. 2", o final da segunda temporada de Buffy, que já me fez chorar nessa coluna, então claro que chorei. Depois, uma série de cenas curtas de Buffy, Charmed e Xena: chorei de novo. Quando a Kristin e a Heather começaram realmente a discussão, chorei mais um pouco. Depois do painel, fui até elas. Queria agradecer pelo trabalho das duas, por tudo que elas significaram para mim nos últimos anos. Chorei tanto que precisei me desculpar por não estar conseguindo falar direito. Abracei a Kristin. Abracei a Heather. Chorei mais, me desculpei mais. Cheguei em casa com o coração transbordando de amor pelas três horas que passei em uma salinha da NYU cercada de pessoas queer falando de Buffy. Acho que senti, de novo, a emoção do poder da comunidade.

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