O que senti ao ler a série napolitana

Taryne Zottino
Entusiastas
Published in
3 min readOct 25, 2019

Este texto não contém spoilers.

Quando se trata de literatura, eu valorizo muito o encontro, o momento certo de conhecer um autor, de mergulhar em sua obra. Ainda mais quando se trata de alguém muito comentado e elogiado, pois nesse caso as expectativas podem afetar minha percepção e isso nunca é o ideal. Sendo assim, não li Elena Ferrante na explosão do hype, preferi marcar a nossa reunião para este ano, colocando “A amiga genial” nas minhas metas de leitura, ansiosíssima para finalmente conferir, uma empolgação que não havia sentido até então. Não sabia muita coisa além do mistério envolvendo a identidade da autora e que os livros narravam a trajetória de duas amigas, da infância até a maturidade.

No fim das contas, não poderia ter tomado uma decisão mais acertada porque, como já esperávamos, 2019 chegou — e permaneceu — difícil, pesado, sem brilho algum. E não me refiro somente ao País, falo do quintal de casa mesmo, dos momentos penosos vividos por mim este ano. Portanto, ler a tetralogia napolitana foi como fazer uma longa viagem para Nápoles e para dentro de mim mesma. E isso era exatamente o que eu precisava, não apenas como uma leitora inquieta, sempre à procura de livros capazes de me tirar do eixo, mas como um ser humano ávido por autoconhecimento e compreensão do mundo em que vivemos.

Ler os livros de Elena Ferrante sendo mulher é uma mistura de revolta e alívio. Revolta por constatar o quanto a realidade mostrada ali é cotidiana em nossas vidas e alívio por sermos tão bem compreendidas em nossas particularidades. Entramos em contanto com muito do que nos afeta, de maneira certeira, sem meias palavras. Conhecemos duas amigas muito diferentes, vivendo em contextos distintos, às vezes distantes uma da outra, no entanto sempre unidas pelo fato de serem mulheres em um mundo machista, marcado por uma violência que não se manifesta apenas fora de casa, mas dentro dela.

A honestidade brutal da narrativa — talvez a maior dose de franqueza já lida em minha vida — é fascinante. Nos identificamos com as mais belas virtudes e os mais terríveis defeitos das personagens, passando de espectadores a cúmplices de suas histórias. Julguei Elena Greco e Raffaella Cerullo ao longo da série, é verdade, porém jamais consegui odiá-las, me parecia errado odiar aquelas que me eram apresentadas de modo tão honesto. Só pude amá-las, seguir com elas, até mesmo justificá-las, como se as conhecesse mais profundamente do que pessoas de carne e osso.

Devorei os dois primeiros volumes em janeiro, desesperada para saber o que iria acontecer, deixando os dois últimos para um feriado de outubro, com a intenção de ler devagar, saborear cada construção. Sem dúvida, uma tarefa difícil: a prosa ferrantiana é profunda e deliciosa na mesma proporção. Você não quer fazer mais nada além de acompanhar a trajetória de Lenu e Lila. Eu não conseguia parar de pensar que estava diante de uma obra com a força necessária para permanecer. Claro, não há como prever algo assim, mas eu ainda arriscaria o palpite. Os autores mais brilhantes são aqueles capazes de captar as nuances de seu próprio tempo e Elena Ferrante me parece ter alcançado isso com maestria.

Alguns livros não nos dizem mais nada depois de lermos a última página, ao passo que a tetralogia napolitana me marcou profundamente, como se o bairro de Nápoles existisse no meu peito e as criaturas de Ferrante me ajudassem a entender — e até mesmo aceitar — partes de mim que eu não queria ou não conseguia acessar. Não faço ideia de como será o teste do tempo ou qual será o veredito do cânone, só posso dizer o seguinte — e sei que não sou a única a me sentir dessa forma: a tetralogia napolitana está viva em mim e desconfio que continuará assim para sempre.

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Taryne Zottino
Entusiastas

Lê e escreve como uma forma de experimentar a vida duas vezes // IG: @tarynedisse