Quando eu aprendi, quando eu ensinei

Entusiastas
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4 min readFeb 9, 2018
Imagem do filme “Escritores da Liberdade”, uma das obras mais bonitas sobre mudar a vida de pessoas através da arte de ensinar.

Bebi meu café com açúcar demais e junto dele engoli o medo. Ela já tem 17 anos, repeti pra mim mesma. Saí de casa com tempo de sobra, o ônibus já me esperava no terminal. Todos os detalhes conspirando para que eu chegasse com tempo suficiente.

Escolhi estudar Letras porque sempre amei ler e escrever, essa é minha história clichê. Mas primeiro foi necessário passar quase dois anos fazendo outra faculdade, de algo que não significava nada pra mim, até entender que clichês muitas vezes apontam verdades. Eu queria ler e escrever durante cinco anos, queria que professores apoiados em livros antigos me contassem coisas que eu não sabia e sequer podia imaginar sobre tudo que eu gostava de ler. Queria vivenciar a surpresa e o prazer de Rory Gilmore ao descobrir que em algum lugar do mundo você pode ler livros, conversar sobre eles e ainda ganhar nota por isso. Mas eu tinha medo do depois. “E aí, o que eu faço com isso?”

Tive ótimos professores. Durante o ensino médio em uma escola pública federal no subúrbio do Rio de Janeiro, encontrei uma professora de história que surpreendia por não nos subestimar nem por um segundo. Ela entrou na sala no primeiro dia de aula, nos contou sobre o programa e logo começou a ensinar. Quando alguém conversava de forma inapropriada, ela só dizia: “Gente, por favor, não temos tempo pra isso”. Era simples e eficaz. Queríamos ser tratados como adultos, queríamos que apostassem em nós. Um outro professor de literatura chorou enquanto lia “Invocação ao Recife”. Ele pediu desculpas e disse que aos 16 anos nós ainda não conhecíamos a saudade.

Já um terceiro foi o mesmo que havia me dado aula no ano anterior, mas em uma escola particular. Eu costumava dizer que ele era meu professor favorito, e a decepção foi imensa quando percebi que ele sequer levantava da mesa pra escrever no quadro. Nas nossas aulas de sábado, passava um filme e ficava dormindo no fundo da sala ou criando constrangimentos para alunas que ele, de alguma forma, enxergava como seres tão adultos que poderiam ser alvo de paquera. Era como se ele tivesse um irmão gêmeo canalha. Um ensinava as crianças do colégio particular, o outro desperdiçava a oportunidade das crianças do colégio público.

Se você presta atenção suficiente, aprende muito cedo que professores podem causar um bem enorme, exatamente na mesma proporção com que podem causar danos. E eu nunca aceitei muito bem a possibilidade de causar danos às pessoas. Então como eu poderia ensinar?

Alguém abriu o portão para mim, e esperei durante cinco minutos que minha nova aluna chegasse. Eram 9h, ela apareceu com jeito de quem já acordou há algum tempo e sabe que tem muito a fazer. Durante a hora seguinte, ensinei o verbo “to be”. Ela nunca havia estudado inglês, e em poucos meses deveria aprender todo o possível pra continuar buscando um sonho que eu sabia que ela merecia. É possível causar danos imensos a alguém nessa situação, e quando eu saí de casa naquele dia, o medo era uma mistura de esperança e terror.

Fomos falando, repetindo frases por uma hora. Ela conseguiu pronunciar o “r” retroflexo. Passamos alguns minutos no “th”. Eu dizia pra ela ficar à vontade, eu também estava falando engraçado. Forjava uma confiança e uma experiência que não tinha, mas sabia que precisava ser a pessoa adulta. Ela precisava mais de mim do que eu mesma e a minha insegurança.

“Birthday. My birthday is on October 10th.” Isso levou algum tempo, mas ela conseguiu. E eu comemorei e a parabenizei com uma empolgação até então inédita. Ao fim da aula, quis que ela soubesse que havia ido muito bem, especialmente pra uma primeira vez.

-Você arrasou, conseguiu até falar “birthday” de cara!
-Claro, com uma professora boa assim…

Na volta pra casa, andei pela rua com um sorriso bobo demais no rosto. Eu posso ensinar um número interessante de matérias atualmente. Há muitos assuntos, alguma experiência, muitos alunos à procura. E eu poderia encarar isso como um trabalho comum, uma forma de ganhar dinheiro. Mas a verdade é que quando você ensina algo a alguém, seja o que for, você está entregando autonomia na mão dela.

Seja qual for o caminho da minha primeira aluna, ela sempre vai poder usar aquela primeira aula. Ensinar é uma responsabilidade enorme, mas o bem que pode ser gerado disso compensa todo o risco. Ela sempre vai poder pegar essas palavras, verbos e estruturas pra mostrar ao mundo quem ela é. E eu sempre terei aquele momento, aquele diálogo e aquele sentimento.

Milena tem 24 anos, escreve e lê desde sempre, edita e ensina desde que cresceu. O chapéu seletor gritou Lufa-lufa antes de encostar na cabeça. Formada em Letras, gosta mesmo é de falar de livros e divas pop. Decidiu que sabe o que está fazendo da vida, mas ainda não contou pra ninguém.

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