bell hooks e a Mudança de Outro Marginalizado para Sujeito Radical Negro
Capítulo 8 escrito por Maria Del Guadalupe Davidson em Critical Perspectives on bell hooks
traduzido gratuitamente por Carol Correia. Qualquer erro de tradução, me avise por aqui ou via email: carolcorreia21@yahoo.com.br
A eleição de 1948 foi reveladora. Strom Thurmond, candidato à presidência do Partido Democrático dos Direitos dos Estados, repetiu o slogan de seu partido de “Segregação para Sempre” para que todo o país ouvisse. Thurmond venceu quatro Estados do Sul (Louisiana, Mississippi, Alabama e Carolina do Sul) e recebeu mais de um milhão de votos e trinta e nove votos eleitorais daqueles a favor da continuidade do apartheid racial. Além de suas atividades segregacionistas, Strom Thurmond também obstruiu a Lei dos Direitos Civis de 1957 (ele falou por um recorde do Senado ainda ininterrupto de 24 horas e 18 minutos), ele votou contra a Lei dos Direitos Civis de 1964, a Lei dos Direitos de Voto de 1965 e ele votou contra a confirmação de Thurgood Marshall para a Suprema Corte. Não foi até depois da morte de Thurmond em 2003 que sua propriedade reconheceu publicamente a existência de sua filha birracial, Essie May Washington-Williams, que ele gerou com Carrie Butler de dezesseis anos (uma empregada na casa de sua família) quando ele tinha vinte e dois. Thurmond conheceu sua filha quando ela era adolescente e, embora não tenha reconhecido publicamente a Sra. Washington-Williams durante sua vida, ele providenciou sua educação e regularmente se comunicava com ela em particular[1]. O compromisso de Thurmond com o bem-estar de sua filha levanta a questão: como um homem como Strom Thurmond, tão cheio de desprezo público pelas pessoas negras, um homem que construiu uma carreira política negando os direitos iguais a pessoas negras, poderia cuidar do corpo negro de sua filha Essie May Washington-Williams? Essa questão se torna mais relevante à luz da resposta da família Thurmond à entrevista coletiva da Sra. Washington-Williams, na qual ela revelou talvez o segredo mais mal guardado da história política da Carolina do Sul. Embora a maioria de nós se pergunte por que ela permaneceu em silêncio por tanto tempo, é importante notar que alguns membros da família de Strom Thurmond agiam como se a Sra. Washington-Williams tivesse feito algo errado ao quebrar seu silêncio de quase sessenta anos. Jeffrey Gettleman, em seu artigo “Thurmond Family Struggles with a Difficult Truth” [em português: A Batalha Familiar de Thurmond com a Difícil Verdade], cita vários membros da família Thurmond lutando para chegar a um acordo com a revelação da intimidade interracial de Thurmond. Uma membra da família, a Sra. Mary T. Thompkins Freeman, que é sobrinha de Thurmond, chegou a dizer que isso (leia-se: a filha ilegítima negra) foi uma “praga para a família”[2].
É esse paradoxo de ódio e desejo que está no cerne da compreensão da noção de bell hooks da comodificação da outridade. Por um lado, as ações de Thurmond espelham a maneira como o corpo feminino negro era explorado sexualmente durante a escravidão, e a resposta de sua sobrinha branca “culpe a vítima” (ignorante) é semelhante à das mulheres brancas pré-Guerra que culpavam as mulheres negras escravizadas pelo abuso que receberam de homens brancos. Em ambos os casos, é como se o mal fosse ela (a negra) ter falado algo e não o que ele (o branco) fez. Por outro lado, Thurmond e seus parentes, por extensão, desejavam e se beneficiavam dessa exploração do corpo feminino negro: política, financeira e socialmente. Por meio de sua noção de comodificação da outridade, hooks examina como a supremacia branca e a sociedade patriarcal denegriram e desejaram o corpo feminino negro. O corpo feminino negro é o paradoxo de um corpo desejado e ao mesmo tempo detestado; ela é útil e dispensável, ela é sagrada e é um tabu.
É minha opinião que podemos obter insights sobre a compreensão de hooks sobre a subjetividade negra radical por meio de sua noção da comodificação da outridade. Isso é especialmente importante para o movimento feminista, na medida em que pode avançar a discussão sobre o corpo feminino negro da questão da objetificação para a subjetividade e a agência. hooks nos lembra da importância dessa mudança, quando ela observa que, “Enquanto os americanos brancos estiverem mais dispostos a estender a preocupação e o cuidado a pessoas negras que têm uma ‘identidade negra focada na vítima’, uma mudança de paradigmas não ocorrerá.[3]” Para desenvolver essa mudança de paradigma no trabalho de hooks, meu capítulo explora as seguintes questões: Primeiro, como bell hooks entende a comodificação da outridade? Em segundo lugar, como essa noção pode elucidar o paradoxo perigoso de um corpo negro que é ao mesmo tempo um outro subordinado e uma mercadoria cobiçada? Finalmente, como esse relato da comodificação do corpo feminino negro pode fornecer recursos para o desenvolvimento da subjetividade negra radical? Considerando que acomodificação da outridade complica a capacidade de se auto identificar e funciona para anular o próprio ser, mostrarei que a noção de subjetividade negra radical de hooks busca criar espaços onde múltiplas subjetividades negras possam ocorrer, dando voz e poder às mulheres negras com a intenção de encorajá-las a falar seus próprios nomes sagrados de uma forma que testemunhe a importância da raça, classe e gênero e seu impacto na vida das mulheres negras.
Muito do trabalho feito atualmente por acadêmicas feministas negras, de uma forma ou de outra, tenta decifrar o status das mulheres negras como o outro comodificado. Por exemplo, Ann duCille em “The Occult of True Black Womanhood” [em português: “O Oculto da Verdadeira Mulheridade Negra”] pergunta:
Por que as mulheres negras são sempre Outros? Eu me pergunto. Para mim, é claro, não sou o Outro; para mim, são as mulheres e os homens brancos tão empenhados em teorizar minha diferença que são o Outro. Por que eles estão tão interessados em mim e em pessoas que se parecem comigo (metaforicamente falando)? Por que nós — mulheres negras — nos tornamos sujeitos de tantas investigações acadêmicas contemporâneas?[4]
Para duCille, ser um outro comodificado significa que você, seu corpo, é reduzido a um objeto que pode ser, e para muitas mulheres frequentemente é, brutalizado pelas forças do capitalismo, do patriarcado e do racismo. No entanto, o problema é como tornar essa exploração visível além dos sentimentos viscerais e medos inarticulados de privação de direitos. Em seu texto canônico Pensamento Feminista Negro, Patricia Hill Collins escreve que “A interseção das opressões de raça, classe, gênero e sexualidade não poderia continuar sem uma poderosa justificativa ideológica para sua existência”[5]. hooks, como duCille e Collins, procuram tornar visíveis as “justificativas ideológicas” que excluem e ao mesmo tempo comodificam as mulheres negras.
Porque ela está mais interessada em abrir um espaço de autodefinição para mulheres de cor, hooks aponta a limitação das críticas de gênero convencionais de gente como Betty Friedan, cuja análise ela afirma ter sido limitada a um “grupo seleto de pessoas com formação universitária, mulheres brancas casadas de classe média e alta — donas de casa entediadas com o lazer, com o lar, com os filhos, com a compra de produtos, e que queriam mais da vida”[6]. hooks busca expandir o movimento feminista por meio de tornar visíveis outras mulheres — aquelas outras comodificadas “que são diariamente abatidas, seja mentalmente, fisicamente ou espiritualmente — mulheres que são impotentes para mudar sua condição de vida.” “Elas são” ela continua “uma maioria silenciosa. Uma marca de sua vitimização é que eles aceitam sua sorte na vida sem questionamento visível, sem protesto organizado, sem raiva ou fúria coletiva.[7]”
O silêncio dessas mulheres, mulheres como a Sra. Washington-Williams, é indicativo de sua comodificação e silêncio históricos. De acordo com Trudier Harris, as mulheres negras comodificadas como outras são:
Chamada de Matriarca, Emasculadora e Mama Gostosa. Às vezes Irmã, Bebezinha, Tia, Mammy e Menina. Chamada de Mãe Solteira, Recipiente de Bem-Estar e Consumidora da Cidade. A mulher negra americana teve de admitir que, embora ninguém soubesse dos problemas que ela viu, todos, seu irmão e seu cachorro, se sentiam competentes para explicar a ela, até para ela mesma[8].
É um silêncio de quase resignação à sua condição de mercadoria que começou com a escravidão e continua até hoje para muitas mulheres negras. Visto que para hooks, as vidas dessas mulheres são importantes, a análise de hooks sobre a comodificação da outridade busca descrever as múltiplas maneiras em que a negritude é explorada pela insaciabilidade do apetite branco. Ao fazer isso, hooks destaca o ponto de que “diferenças culturais, étnicas e raciais serão continuamente comodificadas e oferecidas como novas refeições para realçar o paladar branco — o Outro será comido, consumido e esquecido”[9]. Para dar voz à vida das mulheres negras, então, devemos desafiar o canibalismo branco por meio do qual ocorre a comodificação da outridade. Podemos fazer isso primeiro tornando visível o consumo branco do corpo feminino negro.
Outridade Comodificada: O Que Marginalização Tem a Ver com Isso?
Nesta seção, explicarei o princípio fundamental da outridade comodificada no pensamento de hooks. Começo com a outridade comodificada porque acredito que hooks a usa como um ponto de contraste contra seu sujeito negro radical.
Em seu conhecido ensaio “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book”, Hortense Spillers, como Trudier Harris acima, fala da imagem feminina negra na imaginação branca e, ao fazê-lo, torna visível as implicações da outridade comodificada. Spillers observa:
Vamos enfrentá-lo. Sou uma mulher marcada, mas nem todo mundo sabe meu nome. “Pêssegos” e “Açúcar mascavo”, “Safira” e “Mãe da Terra”, “Tia”, “Vovó”, “Tola Sagrada” de Deus, “Miss Ébano First” ou “Mulher Negra no Pódio”: eu descrevo um locus de identidades confusas, um ponto de encontro de investimentos e privações no tesouro nacional de riqueza retórica. Meu país precisa de mim e, se eu não estivesse aqui, teria que ser inventado[10].
Aqui, vemos que a existência feminina negra “descreve(m) um locus de identidades confusas” na imaginação branca — o corpo feminino negro é invisível e hiper visível. Muitas dessas identidades negativas foram exploradas pela sociedade branca para seu próprio ganho econômico, político, emocional e sexual. Spillers passa a expressar que os “marcadores” mencionados acima “… demonstram uma espécie de codificação telegráfica; eles são marcadores tão carregados de predisposição mítica que não há maneira fácil para os agentes enterrados sob eles serem esclarecidos.” Como Spillers, hooks nos encoraja a questionar esses marcadores que são “tão carregados de predisposição mítica”.
Para hooks, a noção de comodificação da outridade se refere a um sistema em que o status de sujeito de pessoas negras é negado e as pessoas negras são exploradas para o ganho da sociedade patriarcal de supremacia branca. Para hooks, os corpos de pessoas negras tornam-se um local de prazer, um local onde os brancos encontram a diferença no ato conspícuo de consumo. Voltando-se para a mídia para fornecer provas de sua afirmação, hooks escreve que “dentro dos debates atuais sobre raça e diferença, a cultura de massa é o local contemporâneo que declara publicamente e perpetua a ideia de que há prazer a ser encontrado no reconhecimento e no gozo de diferença racial” e ela prossegue dizendo que “a comodificação da outridade tem sido tão bem-sucedida porque é oferecida como um novo deleite, mais intenso, mais satisfatório do que as formas normais de fazer e sentir”[11]. Como a cultura branca sofre de tédio, outras raças e etnias fornecem “tempero” para o que normalmente é uma existência branca e branda. Voltando-se para Michel Foucault, hooks acrescenta que:
Embora falando do ponto de vista de sua experiência individual, Foucault expressa um dilema sentido por muitos no Ocidente. É justamente essa ânsia de prazer que levou o ocidente branco a sustentar uma fantasia romântica do “primitivo” e a busca concreta de um verdadeiro paraíso primitivo, seja esse local um país ou um corpo, um continente negro ou uma carne escura, percebida como a personificação perfeita dessa possibilidade[12].
Como resultado do anseio da brancura por um continente primitivo e negro — um desconhecido — a sociedade patriarcal de supremacia branca erotiza o corpo negro. Isso é histórico, e os corpos de Harriet Jacobs, Sojourner Truth ou da jovem Carrie Butler, mencionados no início deste capítulo, são todos testemunhos da erotização e comodificação do corpo feminino negro. Assim, por exemplo, junto à comodificação do jovem corpo de Harriet Jacobs, em termos da quantidade de trabalho que “isso” poderia proporcionar aos Flints e da quantidade de dinheiro que “isso” poderia ser vendido, é baseado em sua disponibilidade sexual. O corpo de Sojourner Truth foi comodificado da mesma maneira, e podemos ler seu discurso evocativo “Não sou uma mulher?” como um desafio direto a seu status como mercadoria e como outro. Finalmente, a posição da jovem Carrie Butler seguiu o mesmo padrão de Jacobs e Truth. Sua comodificação como trabalhadora para a família Thurmond está ligada à sua disponibilidade sexual para Strom Thurmond. Essa ligação entre a comodificação e a disponibilidade sexual de mulheres negras e não brancas continua hoje, como evidenciado pela própria descrição de hooks de um encontro com um grupo de meninos brancos da Ivy League enquanto ela caminhava pelo centro de New Haven[13].
Ignorando seu corpo feminino negro, mais velho, ela os ouve conversando sobre quais garotas não brancas eles planejavam tentar “foder”[14]. hooks mostra como aqueles meninos brancos metodicamente “contaram tudo. Garotas negras estavam no topo da lista, garotas nativas americanas difíceis de encontrar, garotas asiáticas (todas agrupadas em uma categoria) consideradas mais fáceis de atrair, eram consideradas ‘alvos principais’”[15]. “Para esses rapazes”, ela conclui, “e seus amigos, foder era uma forma de confrontar o Outro… Possuir um pouco do Outro, neste caso se envolver em encontros sexuais com mulheres não brancas, era considerado um ritual de transcendência, um movimento para um mundo de diferença que se transformaria, um rito de passagem aceitável.[16]” Neste caso (e em inúmeros outros), hooks argumenta que a inferioridade da negritude e do corpo feminino está ligada à erotização do corpo feminino negro. Embora a brancura possa considerar seu contato sexual com corpos negros como uma demonstração de libertação revolucionária e como uma aceitação do multiculturalismo, na verdade o que está realmente ocorrendo é a recorrência da compreensão tradicional dos corpos negros como mercadorias disponíveis para o consumo branco. “Do ponto de vista do patriarcado capitalista de supremacia branca”, observa hooks, “a esperança é que o desejo pelo ‘primitivo’ ou fantasias sobre o Outro possam ser continuamente explorados e que tal exploração ocorra de uma maneira que reinscreva e mantenha o status quo.[17]” A comodificação da outridade revela o que hooks chama de “nostalgia imperialista”[18]. Mesmo que os brancos considerem o contato físico com corpos negros não violento, não racializado e não racista, hooks considera isso um ato de má fé que apenas perpetua o status quo[19]. É importante notar que hooks detecta isso como má-fé do lado dos negros também. Assim como a erotização do corpo feminino negro pode ser falsamente interpretado como um ato de tolerância, também pode ser falsamente interpretado por mulheres negras como um ato de aceitação. Esse movimento teórico é importante, pois marginalizar a atenção da sociedade branca pode ser mal interpretado como “… grupos marginalizados, considerados Outros, que foram ignorados, tornados invisíveis, podem ser seduzidos pela ênfase na Outridade, por sua comodificação, porque oferece a promessa de reconhecimento e reconciliação.[20]” O que isso significa é que grupos marginalizados podem ser seduzidos a acreditar que a atenção dada a eles pela sociedade patriarcal branca é uma afirmação de sua subjetividade. No entanto, fica claro que essa atenção nada mais faz do que reificar o corpo negro como mercadoria e um outro marginalizado. Se a análise acima estiver correta, a questão central é se os negros têm algum poder para resistir à comodificação dos brancos. Em outras palavras, como hooks empodera o outro marginalizado a resistir à brancura e emergir como um sujeito negro radical?
Em resposta a essa pergunta, hooks nos adverte contra várias tentações de pensar sobre a condição das mulheres negras. Uma tentação seria abraçar a afirmação, embora falsa e profundamente problemática, de que, uma vez que a supremacia branca da sociedade patriarcal deseja os corpos de mulheres negras, as mulheres negras ganhariam assim uma subjetividade aceitável. Para entender as mulheres negras apenas como objetos de desejo, hooks nos lembra, apenas reforça ainda mais seu status marginal. Outra tentação seria promover o status das mulheres negras por meio da separação da sociedade branca patriarcal. Contra essa tentação, hooks adverte que os apelos separatistas para romper com a sociedade patriarcal de supremacia branca são equivocados, na melhor das hipóteses, e na pior, uma negação da história e das experiências reais das pessoas negras[21]. Com relação à realização do nacionalismo negro, hooks registra uma boa dose de ceticismo ao escrever que o “Ressurgimento do nacionalismo negro como uma expressão do desejo das pessoas negras de se proteger contra a apropriação cultural branca indica até que ponto a comodificação da negritude… foi reinscrita e posta à venda… Dado este contexto cultural, o nacionalismo negro é mais um gesto de impotência do que um sinal de resistência crítica.[22]” Em vez de simplesmente concordar com um status de marginalizado ou se afastar completamente da sociedade e da história branca, hooks enfatiza o papel-chave do discurso na transformação da subjetividade negra.
Embora ela não afirme expressamente, o trabalho de hooks está implicitamente alinhado com a análise do discurso[23], interpretada de forma ampla. Em Language as Symbolic Action, Kenneth Burke afirma que “o homem é um animal que usa símbolos”[24] e, de acordo com Burke, usamos símbolos para comunicar significado não verbalmente[25]. Burke chama a atenção para a potencialidade da linguagem e dos símbolos para nomear, definir e destruir o objeto da fala verbal e não verbal. Da mesma forma, ao longo de seu trabalho, hooks argumenta que a superioridade da branquitude é inscrita por meio do discurso verbal e não verbal, de modo que, “Se compararmos o progresso relativo que os afro-americanos fizeram na educação e no emprego com a luta para obter controle sobre como somos representados, particularmente na mídia de massa, vemos que houve pouca mudança na área de representação”[26]. O papel da análise do discurso aqui é desconstruir os conceitos errôneos sobre a negritude e o rebaixamento das pessoas negras ao status de outro marginalizado. A análise do discurso pede que vejamos aquelas“… condições institucionais e estruturas de poder que servem para fazer declarações aceitas como autorizadas ou verdadeiras…”[27] A análise de hooks das imagens de mulheres negras na mídia, em particular, nos desafia a confrontar as imagens que reforçam o não-ser das mulheres negras como “verdadeiras”. Por exemplo, ela usa a obsessão pelas bundas das mulheres negras[28] (pense em Josephine Baker), a selvageria de Tina Turner[29], as imagens exóticas de Iman e Naomi Campbell[30] como tropos usados para comunicar (verbalmente e não verbalmente) a disponibilidade das mulheres negras como objetos de sexo e de desejo sexual. Além disso, a análise do discurso pede que “… compreendamos a função de um determinado discurso, a maneira como posicionam seus sujeitos nas relações de desprezo e respeito, de dominação e subordinação ou de oposição e resistência, passamos rápida e inelutavelmente da crítica conceitual para a crítica social.[31]” A sociedade patriarcal de supremacia branca estabelece uma falsa dicotomia que posiciona os brancos como sujeitos e as pessoas negras em geral e as mulheres negras em particular como outros subordinados e marginalizados. Embora hooks forneça uma crítica intelectual de tais discursos opressivos, essa crítica por si só não é suficiente. Ela pede que avancemos para além da crítica do poder, dominação e subjugação, para uma práxis de libertação que desafia o status quo. Um desses desafios vem na forma de sua subjetividade negra radical que, como a análise do discurso, “… não é apenas um processo reflexivo; é também um processo produtivo ou um processo que traz mudanças.”[32]
É óbvio em nossa discussão que hooks rejeita todas as formas de outridade comodificada. Ao fazer isso, hooks cria um espaço pelo qual ela pode começar a examinar uma identidade negra significativa e positiva; ambos os quais ela postula em seu sujeito negro radical.
Subjetividade Negra Radical
Embora o corpus geral de hooks seja, em sua maior parte, surpreendentemente claro, sua concepção de subjetividade negra radical permanece indefinida. Como uma pintura que evoca, mas não dá seu significado, o uso desse conceito por hooks fascina, mas foge ao leitor. hooks é mais clara sobre o que não é. A subjetividade negra radical não é uma ramificação da vitimização compartilhada, nem se trata meramente de rejeitar a constituição externa em favor de uma constituição negativa auto infligida, muito semelhante ao que ocorreu durante o movimento do black power. Os leitores do trabalho de hooks estão familiarizados com sua crítica ao movimento black power, especialmente sua crítica à insistência em obter os direitos e privilégios do patriarcado[33]. hooks é igualmente crítica das lutas nacionalistas negras para receber benefícios sociais no mesmo nível da sociedade branca. hooks afirma que:
O exame retrospectivo da luta de libertação negra nos Estados Unidos indica até que ponto as ideias sobre “liberdade” foram informadas por esforços para imitar o comportamento, estilos de vida e, mais importante, os valores e a consciência dos colonizadores brancos. Muitas reformas dos direitos civis reforçaram a ideia de que a libertação negra deve ser definida pelo grau em que as pessoas negras ganham igual acesso às oportunidades e privilégios materiais disponíveis para os brancos.[34]
Como mostra hooks, movimentos como a Revolta Nacionalista Negra são mais reacionários do que revolucionários; eles são mais sobre os homens negros recebendo um “pedaço do bolo proverbial” do que sobre a verdadeira igualdade construída sobre uma subjetividade positiva e revolucionária. Assim, embora diga claramente ao leitor o que a subjetividade negra radical não é, hooks pede ao leitor que imagine o que a subjetividade negra radical pode ser por meio das anedotas que ela compartilha.
Em Olhares Negros: Raça e Representação, hooks relata um caso em que ela e outras mulheres negras estavam planejando uma conferência sobre feminismo negro. Durante o processo de planejamento, as mulheres revelaram histórias sobre terem crescido em comunidades negras segregadas e a dor que suportaram nas mãos da comunidade[35]. Falando contra o que ela viu como uma representação monolítica do ser e da experiência feminino negra, hooks conta uma história gloriosa de ser amada, valorizada e fortalecida em sua comunidade totalmente negra, explicando que “me deu a base para uma experiência positiva de ‘negritude’ e isso me sustentou quando eu deixei aquela comunidade para entrar em ambientes racialmente integrados, onde o racismo informava a maioria das interações sociais.[36]” Para sua surpresa, hooks foi castigada por “apagar” as experiências de outras mulheres, enquanto sua própria história “foi reduzida a uma narrativa competitiva, que foi vista como uma tentativa de desviar a atenção da narrativa ‘verdadeira’ da experiência feminina negra.[37]” Onde, ela se pergunta, estava a “narrativa de resistência”[38] a ser encontrada em toda essa “dor e vitimização compartilhada?”[39]
A partir desse encontro negativo com pessoas que se parecem com ela e que supostamente compartilham os mesmos objetivos, não é de admirar que o sujeito negro radical de hooks busque especificamente abordar o comando de Paulo Freire de que “Não podemos entrar no debate como objetos apenas para nos tornarmos sujeitos.”[40] Ao lutar contra este comando, a noção de subjetividade de hooks não se baseia na retórica da vitimização nem é uma concessão de subjetividade aos negros pela sociedade branca. Ao apontar os dilemas de se associar à posição problemática de ser um “objeto” e, em seguida, lutar para se tornar um “sujeito”, hooks, acredito, nos mostra que se a linguagem é uma tomada de poder, então é melhor partir desde o início estando do lado dos empoderados positivamente. Isso é especialmente verdadeiro porque os negros nunca desistiram voluntariamente de seu status de sujeito nem de seu lugar ao sol. hooks certamente reconhece que a escravidão, as falsas representações na mídia e a brancura complicaram a subjetividade negra, mas esses encontros negativos não são a base de sua noção de subjetividade. Ela se concentra mais no fato de que tais representações e encontros negativos nunca apagaram com sucesso a subjetividade negra. A diferença entre a subjetividade negra e a subjetividade negra radical é que a primeira é um conceito binário, estabelecido por meio de sua oposição à brancura. A subjetividade negra radical não se limita a uma relação binária, enquanto a subjetividade negra vê sua missão apenas em termos de rejeição da constituição externa e “desumanização”[41] imposta pela branquitude. Ao desenvolver uma subjetividade negra radical, hooks pede que olhemos além da multiplicidade negativa e externamente imposta do outro comodificado.
Uma maneira de olharmos para além dos múltiplos significados negativos embutidos no outro marginalizado é ver a outridade marginalizada como um local de resistência contra a comodificação. Em seu artigo “The Politics of Radical Black Subjectivity”, hooks vira de cabeça para baixo a marginalização em sua cabeça, olhando para as margens como um local de resistência. “Talvez as construções mais fascinantes da subjetividade negra e do pensamento crítico sobre o mesmo”, escreve ela, “surjam de escritores, críticos culturais e artistas que estão à margem de vários empreendimentos”.[42] Para hooks, ser um “outro marginalizado” (se esse tiver poderes) significa ser capaz de falar e agir livremente. Também significa ser capaz de teorizar a potencialidade das lutas radicais. Uma vez que aqueles que estão à margem que possuem poderes tendem a:
… compartilhar um compromisso com a política de esquerda… reconhecer a primazia da política de identidade como uma etapa importante no processo de libertação. Citamos Audre Lorde, que disse “As ferramentas do mestre nunca desmontarão a casa do mestre” para reivindicar o terreno sobre o qual estamos construindo “lar” (e não estamos falando de guetos ou favelas).[43]
hooks descreve algumas das características daqueles “escritores, críticos culturais e artistas que estão à margem de vários empreendimentos” e que, para hooks, exibem a consciência e fluidez que marca seu sujeito negro radical. Sobre esse grupo de “vanguarda”, ela escreve que eles “… evitam noções essencialistas de identidade e personalidades da moda que emergem do encontro de diversas epistemologias, hábitos de ser, locais de classe concretos e compromisso político radical”. Posteriormente, sua subjetividade negra radical é definida por uma “visão de mundo oposicionista, uma consciência e identidade, um ponto de vista que existe não apenas como aquela luta que também se opõe à desumanização, mas como aquele movimento que permite uma autorrealização criativa e expansiva.[44]” E acrescenta: “A oposição não é suficiente. Naquele espaço vazio depois que alguém resistiu, ainda há a necessidade de se tornar — de se fazer de novo.”[45]A subjetividade negra radical, portanto, interrompe a comodificação do corpo feminino negro. Em vez de ocupar a posição de objeto, o corpo feminino negro passa a ser fonte de ação transformadora. hooks escreve que, “Mesmo a pessoa mais submissa tem momentos de raiva e ressentimento tão intensos em que eles reagem, eles agem contra”.[46] Esses momentos de raiva, se combinados com uma compreensão do “espaço dentro de si mesmo onde a resistência permanece” e eventualmente se desenvolvem em “pensamento crítico e consciência crítica”, empoderam a pessoa a acessar as fontes criativas pelas quais se pode autodefinir.
É se afastando do sujeito negro estático que, argumenta hooks, marcou o progresso pelo “grau em que as pessoas negras ganharam igual acesso às oportunidades e privilégios materiais disponíveis para os brancos” ou alternadamente marcou o progresso pelo grau em que os homens negros obtiveram acesso ao poder, autoridade e patriarcado; que a subjetividade radical emerge para se opor ao trabalho da comodificação.[47] De acordo com hooks, é responsabilidade dos pensadores fornecer formas alternativas de ser-negro-no-mundo que não reinscrevam a compreensão negativa da negritude ou olhem “para aquele Outro em busca de reconhecimento”.[48] Esses pensadores não têm medo, porque seus desejos não são impulsionados pelo mercado, mas impulsionados pelo discurso libertador para postular vários entendimentos positivos da negritude que transcendem a comodificação ao abraçar a outridade como uma posição de poder. Ao nomear outridade ou marginalidade, como ela chama de um “local de transformação”[49], hooks cria um espaço “onde a subjetividade negra libertadora pode emergir plenamente, enfatizando que é uma distinção definitiva entre a marginalidade que é imposta por estruturas opressivas e aquela marginalidade que se escolhe como local de resistência, como local de abertura e possibilidade radicais”.[50]
Notas
[1] Essie-Mae Washington, interview by Dan Rather, “Strom’s Daughter: A Burden Lifted,” 60 Minutes, December 16, 2003, http://www.CBS News.com (accessed October 16, 2008).
[2] Jeffrey Gettleman, “Thurmond Family Struggles with Difficult Truth,” The New York Times, December 20, 2003, http://www.nytimes.com
[3] hooks, Killing Rage, Ending Racism (New York: Henry Holt, 1995), 58.
[4] Ann duCille, “The Occult of True Black Womanhood: Critical Demeanor and Black Feminist Studies,” in Female Subjects in Black and White: Race, Psychoanalysis, Feminism, ed. Elizabeth Abel, Barbara Christian, and Helene Moglen (Berkeley: University of California Press, 1997), 21–56.
[5] Patricia Hill Collins, Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment, (New York: Routledge, 2000).
[6] hooks, Feminist Theory from Margin to Center (Cambridge, MA: South End Press, 2000 ), 1.
[7] Ibid.
[8] Trudier Harris, From Mammies to Militants: Domestics in Black American Literature (Philadelphia: Temple Univ. Press, 1982).
[9] hooks, Black Looks: Race and Representation (Boston: South End Press, 1992), 39.
[10] Hortense Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book,” in The Black Feminist Reader, ed. Joy James and T. Denean Sharpley-Whiting (Malden, MA: Blackwell, 2000), 57–87.
[11] hooks, Black Looks, 21.
[12] Ibid., 27.
[13] Em sua discussão, hooks aponta que o centro de New Haven era visto como uma espécie de campo de batalha, “onde a dominação racista dos negros pelos brancos era contestada nas calçadas, já que os brancos, geralmente homens, muitas vezes atletas, usavam seus corpos para forçar os negros fora da calçada, para empurrar nossos corpos para o lado, sem nunca nos olhar ou reconhecer a nossa presença.”Black Looks: Race and Representation (Boston: South End Press), 23.
[14] hooks, Black Looks, 23.
[15] Ibid.
[16] Ibid., 23–24.
[17] Ibid., 22.
[18] Ibid., 25.
[19] Lewis Gordon e Robert Birt argumentaram que a brancura é um ato de má-fé. Em seu ensaio, “The Bad Faith of Whiness”, Robert E. Birt fornece um argumento convincente para interpretar a branquidade como má-fé quando escreve que “branquitude é a identidade de má-fé do racialmente dominante. A má fé da branquitude é o autoengano dos privilegiados, a inautenticidade das pessoas dominantes dentro de uma hierarquia social racializada.” Robert E. Birt, “The Bad Faith of Whiteness” in What White Looks Like: African-American Philosophers on the Whiteness Question, ed. George Yancy (New York: Routledge, 2004), 58.
[20] hooks, Black Looks, 26.
[21] Ibid., 32.
[22] Ibid., 33.
[23] Para uma discussão completa da análise do discurso, consulte Laetitia Zeeman, Marie Poggenpoel, C. P. H. Myburgh, and N. Van Der Linde, “An Introduction to a Post Modern Approach to Educational Research: Discourse Analysis,” Education 123 (2002): 96–102.
[24] Kenneth Burke, Language as Symbolic Action (Berkeley: University of California Press, 1966), 3.
[25] Burke prossegue dizendo que: “A linguagem que se refere ao domínio do não-verbal é necessariamente falar sobre as coisas em termos do que elas não são — e, nesse sentido, começamos cercados por um paradoxo. Tal linguagem é apenas um conjunto de rótulos, sinais que nos ajudam a encontrar o nosso caminho. Na verdade, eles podem até ser tão úteis que nos ajudam a inventar maneiras engenhosas de ameaçar nos destruir. Mas mesmo uma precisão desse tipo poderoso não contorna o fato de que tais termos são vazios puros, em comparação com a substância das coisas que eles nomeiam.”Language as Symbolic Action, 6.
[26] hooks, Black Looks, 1.
[27] M. H. Abrams. A Glossary of Literary Terms (Fort Worth, TX: Harcourt Brace Jovanovich, 1993), 66.
[28] hooks, Black Looks, 63.
[29] Ibid., 66–69.
[30] Ibid., 72–73.
[31] Ian Parker. Discourse Dynamics: Critical Analysis for Social and Individual Psychology (London: Routledge, 1992), 37.
[32] Zeeman et al., “An Introduction to a Postmodern Approach to Educational Research,” 96–102.
[33] Respondendo à declaração de Kathleen Cleaver de que “Ela foi destruída pelo movimento”, hooks escreve que “A insistência nos valores patriarcais, em equiparar a libertação negra com homens negros obtendo acesso ao privilégio masculino que lhes permitiria afirmar o poder sobre as mulheres negras, foi uma das forças mais significativas que minaram a luta radical.” Veja hooks, Yearning: Race, Gender, and Cultural Politics (Boston: South End Press),16.
[34] hooks, Yearning,15.
[35] hooks, Black Looks, 44.
[36] Ibid.
[37] Ibid.
[38] Ibid.
[39] Ibid., 45.
[40] hooks, Yearning,15.
[41] Ibid.
[42] Ibid., 19.
[43] Ibid.
[44] Ibid.,15.
[45] Ibid.
[46] Ibid.,15.
[47] A comodificação da negritude como outro refere-se à limitação da negritude a algo que pode ser vendido à sociedade branca, independentemente de ser produzido por negros. Para ilustrar isso, ela usa Ela quer tudo de Spike Lee e School Daze e August Wilson’s Fences como exemplos; Veja hooks, Yearnings, 18.
[48] hooks, Yearning, 22.
[49] Ibid.
[50] Ibid.