Conheça a Abrace, única instituição que pode cultivar maconha medicinal no país

Ítalo Rômany
E Outras Coisas
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8 min readDec 14, 2019

Texto produzido para a agência Eder Content, publicada no UOL TAB.

Quando conseguiu o emprego, a estudante Jamiles Lopes deu um susto na mãe: “Vou trabalhar com maconha”. O local do novo trabalho era a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) — a primeira e única instituição do Brasil autorizada pela Justiça a cultivar maconha para fins medicinais. Além da Abrace, 37 famílias têm habeas corpus concedido pela Justiça para plantar Cannabis, segundo levantamento da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas.

“Até minha mãe entender que a maconha era usada como medicação, foi bem complicado”, relembra Jamiles, que coordena o atendimento às famílias que buscam na Cannabis sativa — nome científico da planta — um tratamento para doenças como epilepsia, esquizofrenia e esclerose múltipla. “Mas é super de boa trabalhar aqui, é um aprendizado, uma lição de vida todo dia”, resume.

Foto: Ítalo Rômany/Eder Content

Localizada em João Pessoa (PB), a associação funcionou clandestinamente de 2014 a 2017, quando conseguiu uma liminar judicial para funcionamento. No Brasil, a pena para fabricação de medicamento ilegal é de até 15 anos de prisão. Cassiano Teixeira, fundador e diretor executivo da Abrace, diz que, nesse caso, o “crime” cometido foi essencial para conseguir a autorização da Justiça. “A causa foi ganha com provas, juntamos os depoimentos das mais de 100 famílias que já estavam sendo atendidas pela associação. A ilicitude é derrubada quando você salva uma vida”, defende.

A causa da Abrace teve apoio do próprio Ministério Público da Paraíba. Segundo Teixeira, a juíza Wanessa Figueiredo chorou ao ouvir o depoimento de pais que lutam diariamente pela vida dos filhos. Antes da decisão liminar, para ter acesso ao canabidiol (CBD), substância derivada da maconha, era preciso pedir autorização à Anvisa para importar o produto. O preço do importado, que custa US$ 250 por 100 mg (cerca de R$ 1.000, sem contar as taxas) e é suficiente para um mês e meio, dificulta o acesso ao medicamento. Em comparação, o spray nasal Resgate, de 25 ml, produzido pela Abrace, custa em média R$ 150.

Da plantação à venda do óleo Esperança

Chamados carinhosamente de “fazendinha”, os laboratórios de plantio, cultivo e análise da maconha produzida pela Abrace ficam numa casa de 450 metros quadrados, na zona norte de João Pessoa, a poucos metros de uma comunidade carente. Protegido por um muro alto, cerca elétrica e câmeras, o local exige autorização prévia da associação para ser acessado. Teixeira diz que até houve uma única tentativa de invasão, logo no início dos trabalhos, mas sem prejuízos. “A comunidade protege e abraça a associação”, afirma.

Foto: Ítalo Rômany/Eder Content

O primeiro laboratório do país para produção do óleo artesanal extraído da maconha teve início na garagem da casa de Teixeira. “No início, dormia aqui no sofá. Já acordava no trabalho”, lembra ele, que dedica 12 horas do dia, em média, à Abrace.

A decisão de cultivar a Cannabis surgiu com a doença do irmão, que tem epilepsia. As convulsões estavam se tornando constantes e o tratamento com remédios tradicionais não surtia mais efeito. Formado em Turismo, Teixeira aprendeu a extrair de forma artesanal o óleo da planta vendo vídeos no YouTube e conta que o irmão raramente tem crises desde o início do tratamento.

Ao entrar na estufa com plantação de maconha no laboratório da Abrace, o sentido que “acorda” primeiro é o olfato. O cheiro é muito aromático, por causa da floração. A depender da fase de crescimento em que se encontre a planta, os aromas mudam. Da plantação ao cultivo, o processo pode demorar de oito a 24 semanas. “Essa aqui é para final de julho, aquela outra, para setembro”, aponta Teixeira.

Foto: Ítalo Rômany/Eder Content

O espaço é dividido em duas áreas. Na verde, ficam as três estufas, separadas por períodos de germinação. Assim que as mudas estão prontas, a Cannabis é cultivada, separada e colocada em pequenos contêineres metálicos, protegidos por senha.

Na área vermelha, onde estão os laboratórios de extração e análise do óleo artesanal, o acesso é limitado e tudo é inspecionado pelo Ministério Público Federal (MPF). É dali que sai o disputado óleo Esperança, com três tipos separados por cor (azul, verde e laranja). Na prática, a diferença entre os óleos se dá na concentração e na predominância de tetrahidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD), principais substâncias extraídas da maconha. A Abrace ainda produz uma pomada para uso em regiões de dores e inchaço, um óleo para vaporização e um spray nasal para interromper rapidamente uma crise convulsiva.

Dificuldades para manutenção

Teixeira conta que a Abrace tem um custo fixo mensal de R$ 100 mil. O lucro, quando há, é usado para investir na melhoria da infraestrutura, como a compra de equipamentos. Um exemplo foi a aquisição do HPLC, equipamento de análise que permite maior precisão na produção, análises e pesquisas de produtos feitos com as substâncias THC e CBD.

O caixa da associação vem da taxa anual paga pelos associados, no valor de R$ 350, e da comercialização das pomadas, óleos e sprays nasais, que têm preços que variam entre R$ 50 e R$ 600, a depender da quantidade. Para reforçar o caixa, a Abrace também comercializa camisetas, broches e canecas da campanha a favor da maconha medicinal.

Entre colaboradores, voluntários e assalariados, são cerca de 25 funcionários distribuídos entre o laboratório, cultivo e dispensário. O grupo inclui farmacêuticos, psicólogos, assistentes sociais e químicos, entre outros, e todos precisam assinar um termo de ética para trabalhar na Abrace.

Fila de Espera

Há quadros espalhados por toda a Abrace com desenhos e depoimentos de crianças atendidas. Toda semana, conta Teixeira, chega alguma carta de agradecimento à associação pelo acolhimento. Já são mais de 2.000 pessoas de todo o Brasil, incluindo países como Portugal e Argentina, que tiveram acesso ao produto. Entre elas, mais de 100 famílias recebem o medicamento gratuitamente por falta de condições financeiras. Para ter direito, a criança precisa estar matriculada na escola, ter a vacinação em dia e participar do programa Bolsa Família.

Foto: Ítalo Rômany/Eder Content

Hoje, há mais de 1.000 famílias na fila de espera da associação e o cadastro para obtenção do óleo artesanal está suspenso desde maio. Sem investimentos em equipamentos e na infraestrutura dos laboratórios, não há como aumentar a produção.

No esforço de zerar a fila, a instituição vai abrir em outubro deste ano um novo dispensário e espaço para plantio e cultivo da Cannabis em Campina Grande, a 120 km da capital paraibana. A expectativa é ampliar o atendimento para 10 mil pacientes até o fim de 2020. Além da burocracia jurídica para ampliação da produção, a iniciativa exige gastos com segurança. “Já fizemos campanha de arrecadação, mas não há muito apelo. O clamor da sociedade vem quando sente na pele. Quem mais ajuda é quem mais precisa”, diz Teixeira.

Um caminho para driblar as dificuldades foi fazer parcerias e convênios com outras instituições, como a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), por meio de projetos de pesquisas. No Piauí, por exemplo, 60 crianças com microcefalia do projeto Ninar utilizam os produtos terapêuticos da Abrace. Em troca, a associação recebeu equipamentos necessários para extração do óleo da maconha.

“É só uma planta”

O fato de a Cannabis ainda ser vinculada a questões morais dificulta o trabalho de associações como a Abrace. O preconceito em torno da planta pode ser observado no dispensário da instituição: muitas vezes, os funcionários evitam usar a palavra maconha. Cannabis, além de ser o termo científico, diminui a resistência de quem busca uma cura. “Ontem, passei quase duas horas com uma mãe que estava desesperada”, conta uma funcionária da instituição. Segundo ela, a mãe pedia perdão a Deus por dar maconha ao filho. “A visão que foi criada é tão negativa que, sem conhecer, julgam. É só uma planta”, resumiu.

Foto: Ítalo Rômany/Eder Content

Apesar do preconceito, o número de profissionais que prescrevem a Cannabis como medicamento no Brasil deu um salto de 183% entre 2015 e 2018, segundo dados da Anvisa. Para comprar o óleo, o paciente precisa ter uma receita prescrita por algum médico habilitado, laudo caracterizando a doença e termo de ajuizamento. Mas a resistência da classe médica em prescrever a planta está longe de desaparecer.

“Nós, médicos, não estudamos [a Cannabis] na faculdade, esse é o maior fator para não termos mais prescrições. Se a gente não aprende, não sente a vontade de prescrever”, admite a médica Carolina Nocetti, uma das principais referências do país em terapia canabinoide. A aprovação, em 2017, do primeiro medicamento à base de maconha pela Anvisa, destinado a pacientes com esclerose múltipla, mostra que há estudos científicos da eficácia da planta, lembra a especialista. “Falta sentar e estudar”, ressalta.

A luta pela regulamentação

Em nota publicada em 2017, a Anvisa manifestou que não é contra o uso da maconha para fins medicinais. “Porém, especificamente no que diz respeito ao cultivo da Cannabis destinado a fins científicos ou médicos, incluindo a obtenção de insumo para a fabricação de medicamentos registrados ou para o eventual tratamento de pacientes autorizados pelas autoridades governamentais, entende-se que o tema merece regulamentação ou projeto específico”, diz a agência.

Foto: Ítalo Rômany/Eder Content

Enquanto isso, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5708), proposta pelo PPS (hoje Cidadania), pedindo a descriminalização do plantio, cultivo, colheita, armazenamento, transporte, prescrição, aquisição e também da atividade de ministrar Cannabis para fins medicinais e de bem-estar terapêutico. A relatora do caso, ministra Rosa Weber, decidiu levar a ação diretamente para julgamento pelo plenário da Corte, que ainda não tem previsão de data.

Dentro dessa discussão, o Senado Federal realizou no início de julho deste ano audiência pública sobre o uso da maconha para fins medicinais. O objetivo era debater a sugestão legislativa 6/2016, que estabelece regras para fiscalização, regulação e tributação da planta. O ministro da Cidadania, Osmar Terra, presente na audiência, deixou claro que, se depender do atual governo, a regulamentação não vai ser fácil. Terra foi taxativo contra a proposta: “É o começo da legalização da maconha no Brasil”.

Na presença de familiares de pacientes que usam a Cannabis no tratamento de doenças, o ministro comparou mães que buscam maconha medicinal para filhos doentes às mães que perderam seus filhos para a droga. “São muito mais numerosas”, ponderou. Questionado pela reportagem sobre a fala do ministro, o dirigente da Abrace baixou a cabeça e lamentou. “É uma aberração”, resumiu.

Terra foi confrontado durante a audiência pela presidente da Associação de Cannabis e Saúde (Cultive), Cida Carvalho, que é mãe de uma paciente usuária do óleo à base da planta. “A dor não pode esperar. Se eu tivesse esperado por uma regulamentação para poder cultivar para a minha filha, para poder dar um óleo para a minha filha, não sei se eu teria ela aqui hoje porque a síndrome dela tem risco de morte súbita. Se fosse seu filho você esperaria pela regulamentação?”, questionou.

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