Me Chame de Gustavo

Gerson Souza Cruz
E Outras Coisas
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3 min readApr 27, 2021

Por Gerson Souza Cruz

Crédito: arquivo pessoal

Em meio ao caos da ocupação de terras no Grande Mucuripe, Fortaleza (CE), Nádia Shirley Bernardo da Silva, na época com 22 anos, conseguiu juntar o máximo de tábuas possíveis debaixo de um sol de 32ºC para montar o que seria o primeiro lar de seu segundo filho, ainda na barriga. Sem condições financeiras, era ali que conseguiria ao menos dar um “teto” à família.

Em 8 de fevereiro de 2002, pouco tempo depois da ocupação, Gustavo Rannier nasceria no Hospital Geral de Fortaleza, para então conhecer o mundo ao seu redor.

Foi naquele barraco de tábua que Gustavo passou a maior parte da sua infância. Em uma das noites, conta Nádia, a família foi dormir na casa da avó da criança, pois não conseguia descansar ali. Porém, no dia seguinte, o barraco fora invadido, tinham levado embora a cama e até tentaram levar o berço do pequeno também, mas não conseguiram. Pouco tempo depois a situação foi resolvida e a cama recuperada.

Mas foi em 2010, com a chegada do terceiro filho, que a situação da família começou a melhorar. A casa de tábua passou a ser de tijolos e cimento.

Quando mais velho, Gustavo conta que, durante a saída dos outros membros da família, usava as roupas do irmão mais novo quando ninguém estava por perto. “Meu corpo magrelo, por incrível que pareça, entrava no vestiário do caçula sem problemas”.

Na chegada da adolescência, além de muitas acnes e dramas, a descoberta de si, alma e corpo, também chegou para Gustavo. Definia-se como bissexual. Em meados do fim de 2016, buscou por informações e se encontrou numa expansão da realidade em que finalmente conseguiu se expressar por meio de um termo.

Gustavo, que havia nascido num corpo feminino, se identificava como homem trans.

Crédito: arquivo pessoal

Em 2018, Gustavo começou a namorar uma garota, e assim como algumas pessoas mais próximas, ela tinha noção sobre como Gustavo se sentia, mas, assim como os outros, ela também não sabia lidar com a realidade do garoto.

Em junho de 2019, após o fim do primeiro relacionamento, Gustavo se assumiu como homem trans. “Me lembro como se fosse hoje a primeira vez que eu saí com uma roupa ‘masculina’, e eu fiquei, tipo, ‘meu deus como eu sou lindo’, e eu tinha o cabelo grande ainda, chegava no ombro”. Apesar de suas afirmativas, Gustavo ainda lidava com o fato de as pessoas não saberem por quais pronomes o tratarem, e ele mesmo tinha receio por ainda possuir “características femininas”, não protestando sobre ser chamado por ambos os pronomes masculino/feminino.

Até que, certo dia, Gustavo recebeu uma mensagem de uma garota em seu perfil no Instagram. Depois de algumas mensagens trocadas, ela fez a seguinte pergunta: “Como você gosta de ser tratado?”. Foi a primeira pessoa a tratá-lo unicamente no masculino, e então, depois de se conhecerem, que Gustavo passou a exigir de outros que fosse tratado como realmente era: como homem. Os dois se relacionaram por cerca de um ano, mas, mesmo com o fim do segundo relacionamento, Gustavo se diz grato até hoje.

No início de 2020, Gustavo começou a buscar acompanhamento no ambulatório de Fortaleza para pessoas trans, onde tem direito à endocrinologista, advogado, psicólogo, assistente social.

“O meu plano é de começar a tomar hormônio ainda esse ano, porque tem toda essa questão da disforia e, por mais que eu esteja feliz de como estou hoje, ainda mais olhando para o passado, ainda quero mudar. Quero que nasça barba em mim, que o formato do meu rosto mude, que minha voz mude”.

Hoje, com 19 anos, Gustavo tem consciência da vida que teve até aqui, e o tanto que ainda falta, mas já se sente suficientemente feliz.

“Prazer, me chame de Gustavo”.

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Gerson Souza Cruz
E Outras Coisas

Jornalista em construção; cinéfilo metido a crítico