Nosso palco é o canavial: conheça o projeto Teatro na Usina

Ítalo Rômany
E Outras Coisas
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8 min readDec 15, 2019

A madrugada ainda não acabara e mais uma vez era preciso despertar antes mesmo de o galo cantar. O trabalho no canavial exige acordar cedo, por volta das três da manhã, para posteriormente pegar o ônibus e iniciar as atividades no corte de cana-de-açúcar. A realidade vivida por muitos trabalhadores rurais não é diferente na Destilaria Japungu Agroindustrial, localizada na cidade de Santa Rita, a 20 km de João Pessoa, na Paraíba.

Há um dia no ano, entretanto, que a família toda faz o mesmo ritual. Acorda cedo, prepara o café, veste a melhor roupa, a mais bonita. É que a empresa promove um encontro, uma integração entre funcionários, esposas e filhos, além dos dirigentes para dar início aos trabalhos na safra. O retorno ao canavial é um dos momentos mais aguardados pelos cortadores. É também dia de diversão e de ver teatro.

Foto: Ítalo Rômany

Desenvolvido pela Companhia Paraíba de Dramas e Comédias, o projeto Teatro na Usina nasceu no ano de 2004, a partir de um processo pensado com a Japungu — como forma de melhorar a comunicação entre empresa e funcionários (ou colaboradores, como são chamados na usina).

O objetivo é o de conscientizar o cortador de cana-de-açúcar a respeito do próprio trabalho exercido, quebrando barreiras culturais acerca da profissão, uma das mais antigas do Brasil. Além disso, era preciso debater certas problemáticas enfrentadas por este sujeito no cotidiano, como também pelos familiares, ante as drogas, violência doméstica etc., utilizando uma linguagem que se aproximasse do dia a dia. O teatro foi, assim, a ação-comunicativa encontrada pela Japungu no intuito de resgatar a autoestima e o respeito com os valores da cidadania.

“Houve uma certa resistência no início, inclusive de certos dirigentes, que questionaram: Trabalhador rural vai ver teatro? A gente queria resgatar a profissão do cortador, que no passado foi muito maltratada, incompreendida, e queríamos mostrar ao trabalhador que esse era um serviço digno”, diz o dirigente agrícola Dante Guimarães, que trabalha na Japungu desde 1994.

A tarefa exigiria um grande esforço de todos. Muitos cortadores bebiam, iam trabalhar com ressaca. Recebiam os salários e gastavam em cabarés, enquanto a família muitas vezes passava necessidades em casa, sem ter o que comer. Havia casos de violência doméstica, mulheres apanhavam e não tinham o suporte necessário para denunciar. A taxa de analfabetismo também era alta.

Usina Japungu, no Mapa. No ponto azul, Localização da Casa da Fazenda, onde as apresentações ocorrem.

Início

Por causa da promulgação das Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho (NRs), foi possível uma mudança na relação trabalhista com o cortador de cana-de-açúcar, que ainda era visto como um escravo em tempos de abolição, a exemplo da dura jornada de trabalho, sem férias e direitos. Até a década de 1990, ainda era possível ver trabalhadores no campo sem nenhuma proteção, sujeitos a cortes de facão, picadas de cobra.

A NR 31 transforma a situação, a partir da obrigação do uso de equipamentos de proteção individual, a chamada EPI. Ademais, aumenta a fiscalização de órgãos do Ministério do Trabalho contra um modelo de trabalho precário.

Foto: Ítalo Rômany

Entretanto, era preciso também conscientizar os cortadores sobre as novas regras. Muitos se incomodavam com os novos equipamentos de proteção. No início, a Japungu contratou uma especialista em treinamento para ajudar na tarefa, como também criar uma nova visão de valorização humana. Para incentivar os trabalhadores a participar das integrações, prêmios e cestas básicas eram oferecidos.

Os dirigentes perceberam, porém, que premiar os melhores cortadores não era a melhor solução para mudar os índices sociais e o comportamento dessas pessoas (havia muitos casos de alcoolismo no campo, por exemplo). O teatro popular, assim, foi pensado como uma forma comunicacional de “solucionar” os problemas existentes.

Erivan Lima, diretor da Companhia Paraíba de Dramas e Comédias, foi chamado para trabalhar o teatro no canavial. “Fiz todo um apanhado da história canavieira, entrevistei trabalhadores, os melhores e os que tinham problemas. Na época, a cachaça era o maior deles. Brigas familiares também”, afirma Lima, que produziu o espetáculo “Orgulho de ser cortador” como o primeiro enredo do projeto.

A casa de fazenda, localizada na própria Japungu, transformou-se, de forma improvisada, em um teatro na zona rural. Foi feito um pequeno palco, com cortinas e alguns refletores. No primeiro ano, foram mais de 20 apresentações.

Foto: Ítalo Rômany

“A ideia primordial foi de levar a família dos trabalhadores, era um dia de lazer, de integração, porque era um encontro, uma confraternização. Ficavam sentados, perto, se identificando. Começaram a ter consciência de que beber fazia mal a eles”, ressalta Lima.

As apresentações ocorrem no início e no final da safra (de junho/julho a março/abril). Além disso, é feito um acompanhamento da assistência social com os cortadores durante o ano, como forma de reforçar a temática que foi trabalhada no teatro.

Mudança de Vida

João Melo (2017) tem hoje 49 anos. Mas a aparência parece ser mais velha, marcada pelas manchas do sol escaldantes na pele. A disposição é de um menino. “Olha minha idade, não sinto uma dor. Não tenho inveja de cabra novo”, diz.

Melo começou a trabalhar no canavial aos oito anos de idade para ajudar a família, já que o pai era deficiente. A jornada era difícil, afinal de contas era preciso alimentar os cinco irmãos, lembra. Os estudos também foram sacrificados: chegou até a 3ª série do fundamental, o que lhe permite pelo menos ler. Trabalhava de sandália, sem nenhuma proteção. Ao todo, são mais de 40 anos na mesma labuta.

Mas quem vê o sorriso simpático de Melo, não imagina o sofrimento por trás. O álcool levou-o a outros patamares. Pegava parte do salário que recebia e gastava nos bares da cidade. Chegava bêbado em casa. Desestruturava a família com seus atos. Foram 21 anos de vício. “Recebia conselho, mas não ligava. Era um lazer para mim. Estava pagando minha sepultura, pagando pra morrer. Tudo que você faz fora do normal é pagar pra morrer.”

Faz 12 anos que Melo deixou a bebida, “para nunca mais”, narra com orgulho. O álcool, para o cortador, traz quatro malefícios: desmoraliza o cidadão, envelhece, apodrece e mata. Afirma que teve sorte em não ter passado pelo último deles. Ao ser indagado sobre o motivo de deixar a bebida, conta que foi por causa do teatro. O primeiro tema trabalhado pelo grupo cênico foi justamente sobre o alcoolismo.

Foto: Ítalo Rômany

O teatro ajudou Melo a ver a vida de uma outra maneira. Já era membro do Alcoólicos Anônimos (AA), mesmo assim não conseguia parar com o vício. Hoje, dá palestras em várias cidades contando sobre o seu caso. Tem orgulho da nova fase, pois hoje considera-se uma pessoa importante. “Fui convidado no São João pra dar palestra na cidade de Sapé. Fui muito elogiado. Eu era um cabra ignorante. Fui falar com o juiz ontem por causa de problemas na família, mas se fosse há 12 anos, quem tinha sido preso era eu.”

A realidade vivida por Melo é também de muitos outros cortadores. Lidar com esse problema diário, diz o dirigente Guimarães, fez com que o teatro fosse fundamental nessa mudança, principalmente numa usina do tamanho da Japungu. Na safra 2017/2018 (ano da pesquisa*), trabalharam no campo 615 cortadores, divididos em 14 grupos. No total, são mais de três mil funcionários, entre cortadores, motoristas, mecânicos, técnicos, entre outras atividades.

Além disso, o acompanhamento feito pelas assistentes sociais durante o decorrer do ano é fundamental para que haja, de fato, uma mudança esperada, ressalta Guimarães.

Um dos temas do projeto Teatro na Usina que foi amplamente apontado como um dos mais importantes pelos cortadores entrevistados foi sobre economia doméstica. Ter dívidas é dor de cabeça para qualquer um, ainda mais quando se tem uma família para cuidar.

Tenório Barreto (2017), 49 anos, por exemplo, trabalha na Japungu desde o ano de 2002. Chegou a concluir a alfabetização, mas teve que ir para o canavial aos 12 anos. Hoje, conta com orgulho que sabe muito bem economizar o salário que ganha. Mas nem sempre foi assim. Confessa que gastava à toa, principalmente com bebida.

“Em casa, faltava de tudo. Gastei muito dinheiro com bebida. Às vezes, você ia caçar alimento em casa e não tinha. A mulher reclamava: ‘Você saiu com aquele dinheiro’. E dizia que tinha gasto com os amigos. E fazia falta no outro dia. O teatro ajudou em muita coisa”.

Outro caso é o de Santiago Veneza, 42 anos. A ida aos canaviais aos oito anos foi a forma que tinha para trazer o pão para casa. Seu pai queria que Veneza estudasse, virasse “doutor”, mas a necessidade foi muito maior. Aprendeu com o teatro a economizar parte da renda que ganha, principalmente durante o período da entressafra, quando não tem o salário-desemprego para ajudar nas contas de casa. “Passamos o dia fora e a esposa é quem comanda dentro de casa. Ela viu a peça e juntos começamos a economizar dinheiro, principalmente pensando nos filhos. Isso deu uma crescida no lar. Agradeço muito a Deus. Todos vivem bem”.

Foto: Ítalo Rômany

O projeto, para Veneza, é muito importante, relata. Nunca teve a oportunidade de visitar um teatro na vida. “Mas o bom é que eles trazem essa parte do teatro trazendo a simplicidade, não tem baixo, alto. A comunicação é boa, usam o simples pra gente entender. Mas se trouxerem a modernização, também vamos entender.”

José Ferreira narra que muitos dos cortadores levam o teatro como brincadeira, não guardam o que ouvem. Em 2017, o tema foi saúde, com foco na diabetes e hipertensão. Preocupado, Ferreira afirma que poucos são os trabalhadores que realmente vão se cuidar. Mas acredita que as esposas são importantes nesse processo: elas são as únicas que podem estimular os maridos. “A mulher se cuida muito, já percebeu isso? O homem é muito teimoso. Tiro por mim. O homem é relaxado. Vou tentar se cuidar mais e mais, pra que haja mais saúde.”

*Este texto faz parte da dissertação de mestrado “Vozes do Canavial: análise do projeto Teatro na Usina à luz das Performances Folkcomunicacionais e dos cenários do Desenvolvimento Local”, escrita por Ítalo Rômany, para o programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local, da UFRPE.

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