Afrofuturismo e Africanfuturism: Uma reflexão sobre de onde viemos e para onde vamos.

Kinaya Black
Kinaya Black
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8 min readMar 28, 2020

Outubro de 2019, Nnedi Okorafor, uma de minhas escritoras favoritas publica um texto sobre não escrever afrofuturismo e sim africanfuturism(futurismo africano, em tradução minha que citarei pelo resto do texto, mesmo que a autora não recomende separar o termo). Primeiramente, achei super interessante ela cunhar um termo para de certa forma classificar seu trabalho, uma vez que suas narrativas se passam no continente Africano. Diferente de outros autores da diáspora, onde suas histórias se passam fora de África.

Segundo a autora, o futurismo africano “está especificamente e mais diretamente enraizado na cultura, história, mitologia e ponto de vista da África, que se ramifica na diáspora negra, e não privilegia ou centraliza o Ocidente.[…] O futurismo africano não tem que se estender além do continente africano, embora muitas vezes o faça. Seu padrão é não ocidental; seu padrão / centro é africano.

Esse texto é curto, vou deixar abaixo nas fontes para quem quiser ler(em inglês), mas é um texto controverso, nota-se no trecho que peguei que ao mesmo tempo que ele se ramifica na diáspora negra, ou seja, isso significa que ela nos reconhece enquanto africanos/descendentes, logo em seguida diz que o gênero não tem que se estender além do continente, mesmo que ela reconheça que acontece.

Em bruxa Akata, um de seus livros mais lidos por brasileiros, podemos ver uma narrativa que se passa em África, se utiliza de juju(magia africana), mas possui como protagonista uma garota albina, nascida fora do continente e que ainda carrega o sotaque dos EUA, que vai enfrentar o racismo por ser mais clara e de fora. Quando a autora coloca que o gênero ‘às vezes’ se estende para além do continente, eu creio que é sobre isso também que ela fala, sobre possuir personagens ou elementos de fora, mas que em primeiro lugar estão os elementos africanos.

É uma narrativa que necessita que você conheça sobre história de tribos africanas, como a Igbo na nigéria, tribo de ascendência da autora, juju para além de uma breve definição e realidades cotidianas de países africanos. Deixe-me citar 3 pontos básicos sobre a autora para vocês:

1. Seu nome completo é Nnedimma Nkemdili Okorafor;

2. Seus pais são nigerianos;

3. Ela viajava pra Nigéria desde pequena.

A autora possui conhecimentos e propriedade de fala para escrever sobre tais lugares e culturas, devido seu contato direto com África. Nnedi cresceu sabendo o lugar de onde veio, como as coisas eram e são nesse lugar, quais costumes essas pessoas têm e por aí vai. Coisa que a maioria do povo preto da diáspora não tem. Tiraram tudo do nosso povo quando foram trazidos para cá, tiraram até elementos que parecem básicos como o nome, mas que para o povo africano é importantíssimo, tendo até em algumas culturas um “evento” só para tal nomeação. Nos tiraram tudo e não foi aos poucos, foi ligeiro, afinal, a escravização foi num período passado de piscar os olhos, uso essa metáfora para exibir que quase nada mudou para nós.

Gerações depois: o que temos? O que foi nos passado, o que sobrou para nos contarem desse lugar de onde viemos? O que minha família sabe sobre nossos antepassados negros? Será que aquele cara se afirma negro? Será que podemos chamar esse lugar que nascemos de lar? Se é nosso lar, por que nos matam tanto? No fundo não temos nada, mas ao mesmo tempo temos, mas isso cabe a cada um procurar. E o acesso aos estudos africanos não é fácil, afinal muitos autores ainda não foram traduzidos.

Hoje com o mundo da internet podemos ler, ver e ouvir diversas pessoas que tiveram acesso aos estudos africanos, muitas vezes por meios acadêmicos, repassando esses conhecimentos para os demais que não possuem essa possibilidade e olha que o meio acadêmico é muito branco e que se você quiser ter autores negros sendo estudados no seu curso, você tem que confrontar muito o professor e a coordenação, pelo menos. Falo isso pois eu tive, assim como outros amigos, que bater muito na tecla para que saíssemos um pouco da asfixia eurocêntrica.

Guardo até hoje a sensação de ler a ementa de uma certa disciplina, onde todos os autores eram brancos e as mulheres que haviam eram sempre as mesmas brancas. Fui duas aulas e tranquei a matéria, até que ela foi ofertada por um professor negro e a ementa era uma coisa totalmente diferente. Sou professora, e promovo ações em espaços diversificados e vejo no meu dia a dia como ter alguém da sua cor em posições não subalternizadas pode transformar a perspectiva e autoestima de algum irmão e irmã.

Mas foi depois que terminei a faculdade que tive contato com os estudos africanos, foi depois da faculdade que pude ler livros teóricos escritos por africanos, foi só depois que vi que mesmo eu me achando a estudiosa de raça e gênero da região que moro, que percebi que eu ainda estava na esfera ocidental e muitas vezes eurocêntrica. O momento de ruptura de si mesmo é uma morte onde você renasce com a África no centro, com a raça na frente e isso te faz compreender que há uma comunidade que precisa se organizar, que precisa consumir sobre si para garantir que ainda estaremos aqui por muito tempo. Ainda não encontramos um lar, mas isso não nos impede de construirmos uma rede, onde possamos nos reconhecer enquanto comunidade.

O afrofuturismo é complexo, não é sobre se empoderar usando elementos da ficção científica ultrapassada branca, afinal o empoderamento é algo pra ser vivido coletivamente, e o que vemos hoje em dia é que deturparam mais um conceito criado por uma mulher negra.

Quando leio Octavia Butler, que a considero uma escritora afrofuturista, consigo me identificar com suas personagens femininas e ver que podemos enfrentar o lugar que nos colocaram. Consigo ver uma pequena tentativa de resgate ao continente africano quando o avô da protagonista de A Parábola do Semeador muda seu sobrenome e da família para um africano, ou quando a própria protagonista se envolve com um homem que carrega raízes africanas.(desculpem os spoilers essenciais), consigo visualizar também a negação da protagonista ao cristianismo que o pai prega, ou seja, a percepção de uma religião hegemônica, e o que a faz crer em outro Deus, um Deus que é mudança. Noto uma grande diferença quando leio autores que vivem sua ascendência diretamente, como é o caso também da escritora Tomi Adeyemi, americana de ascendência nigeriana e autores que não possuem essa ligação estreita com familiares africanos, e respeito muito nossos autores que estudam África, que são do candomblé, que praticam filosofias africanas diariamente, dentre outras práticas que fazem com que sintamos uma conexão forte com África.

Temos lugares diferentes de vida, eu consigo me identificar com Ena, protagonista de (In)Verdades da escritora brasileira Lu Ain-Zaila, duologia que se passa no Brasil e no futuro, ou com Kindred onde Dana retorna ao passado e conhece seus ancestrais, afinal, o ocidente é o que eu conheço, em Inverdade podemos ver que há um ponto central que o liga ao afrocentrismo quando precisa-se compreender o sankofa, provérbio africano que diz muito sobre afrofuturismo também, uma vez que une ancestralidade, futuro e aprendizagem. Perceba que nós que nascemos no ocidente estamos buscando sempre nos ligar à África para que assim possamos viver melhor, compreender melhor o que significa nascer do outro lado do atlântico.

Ytasha Womack fala que “o afrofuturismo é uma interseção de imaginação, tecnologia, futuro e libertação” e que “a perspectiva[afrofuturista] contribui para o conhecimento e as idéias de mundo e inclui as perspectivas de um grupo que muitas vezes é excluído do passado e do futuro”.

Outra citação de Womack é que: os afrofuturistas redefinem a cultura e as noções de negritude hoje e amanhã. Tanto uma estética artística quanto uma estrutura para a teoria crítica, o Afrofuturismo combina elementos da ficção científica, da ficção histórica, da ficção especulativa, da fantasia, do afrocentrismo e do realismo mágico com crenças não ocidentais.

Ou seja, o afrofuturismo é diverso e busca está em conexão com África também, mesmo que nossas histórias não se passem no continente. O afrofuturismo é um termo que foi criado por um branco, coisa que me incomoda, mas que já existia desde os anos 60 e olhe lá se muito antes nós não já tivéssemos afrofuturistas, já li sobre isso em algum artigo mas como não tenho fontes agora não me demoro.

Nnedi ainda em seu texto sobre a definição de futurismo africano assume que: O Africanfuturism é semelhante ao “Afrofuturism”, da mesma forma que os negros no continente e na diáspora negra estão todos conectados por sangue, espírito, história e futuro. A diferença é que o futurismo africano está especificamente e mais diretamente enraizado na cultura, história, mitologia e ponto de vista da África, que se ramifica na diáspora negra, e não privilegia ou centraliza o Ocidente.

Gostaria de saber como Nnedi acha que estamos privilegiando o Ocidente, talvez pelo fato de nossas histórias se passarem no único lugar que temos vivência de mundo? Molefi Kete Asante em seu livro Afrocentricidade afirma que “a afrocentricidade é a convicção de que o povo africano estará no centro da história pós-moderna. É a nossa história, nossa mitologia, nossas ideias criativas e nosso ethos como expressão de nossa determinação coletiva.” Asante leva em conta que os povos da diáspora também são povos africanos, além disso consegue explanar sobre as diferentes experiências de vidas que há entre os povos da diáspora e os povos do continente. Você consegue unir o afrofuturismo à afrocentricidade e reconhecer que há diferentes experiências de vidas negras ao redor do mundo e isso não torna as produções afro diaspóricas menos afrocêntricas?

Ao criar um novo conceito para classificar suas obras, Nnedi também cria um muro entre a experiência de autores da diáspora que não possuem todo um conhecimento cotidiano de África como ela tem. Por mais que a autora reconheça que somos todos ligados ao continente, sua definição de futurismo africano exige que haja um conhecimento muito maior do que o que chega para nós.

Concordo com Fábio Kabral quando ele diz que a autora cunhou um termo para falar da mesma coisa, afinal se você for atrás de estudos e teóricos de afrofuturismo vai perceber que o movimento não evidencia separar o que é feito em África e o que é feito no ocidente e sim busca uma estratégia de união e religação à nossa raiz africana realçando as diferentes experiências de vida de um povo que foi separado sem ter a oportunidade de dizer: adeus, te vejo no futuro.

Referências:

Ytasha L. Womack — Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture.

Molefi Kete Asante -Afrocentricity: The Theory of Social Change.

Texto da autora Nnedi Okorafor: http://nnedi.blogspot.com/2019/10/africanfuturism-defined.html

Texto do autor Fábio Kabral sobre o assunto: https://medium.com/@ka_bral/afrofuturismo-vs-africanfuturism-8966a8c5579f

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Kinaya Black
Kinaya Black

Kinaya Black é o pseudônimo de Gisele Sousa Santos. Escritora desde quando se entende por gente. Mestra em Literatura Comparada e pesquisadora afrofuturista.