Kinaya Black
Kinaya Black
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4 min readJan 14, 2020

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As horas vermelhas: Uma distopia para mulheres americanas, mas uma realidade para as brasileiras.

Foto autoral.

A capa desse livro traz quase uma diss para O Conto de Aia, que faz um tempinho que li e não me impactou tanto quanto a mídia queria, ou como o feminismo branco prega. As horas vermelhas também foi escrito por uma mulher branca mas não entrou no hype das manas como o citado anteriormente. Ambos se tratam de escritas e experiências branca, mas o foco não é esse e sim o fato de As Horas Vermelhas se tratar de uma distopia americana que reflete simbolicamente a realidade de mulheres brasileiras.

Sinopse do livro: Neste romance ferozmente imaginativo, o aborto é mais uma vez ilegal nos Estados Unidos, a fertilização in vitro é proibida e uma emenda constitucional concede direitos de vida, liberdade e propriedade a todos os embriões. Em uma pequena cidade pesqueira no Oregon, cinco mulheres muito diferentes vivem os dramas causados por essas novas imposições do governo enquanto levantam questionamentos relacionados à maternidade, identidade e liberdade. Ro, uma professora solteira de ensino médio, está tentando ter um bebê sozinha, enquanto também escreve a biografia de Eivør, uma exploradora polar do século XIX pouco conhecida. Susan é mãe frustrada de dois filhos, presa em um casamento desmoronando. Mattie, filha adotiva de pais apaixonados e uma das melhores alunas de Ro, descobre estar grávida sem saber a quem recorrer. E Gin é a talentosa curandeira da floresta, responsável por juntar os destinos dessas mulheres quando é presa e levada a julgamento em uma caça às bruxas moderna e frenética.

Daí você já tira que é uma narrativa que deve ser bem amarrada e construída, porém fica confusa em alguns pontos. Inclusive há até um “Muro Rosa” entre EUA e Canadá para que mulheres não busquem esse país para abortarem, se forem pegas há várias consequências. E se você não sabe a fronteira entre esses dois países é tranquila em relação ao México por exemplo.

Mas perceba que o livro trata da nossa realidade uma vez que no Brasil não podemos abortar e que qualquer procedimento de fertilização ou até mesmo ligação não é acessível para a maioria das mulheres e ainda mais é necessário um homem. Bens eu até entendo ser necessário para tais procedimentos, mas um homem? Não podemos negar que somos feitos por um homem e uma mulher, inclusive são eles quem possuem o poder de escolha do sexo, mas faço parte dos 5,5 milhões de pessoas que não possuem nome do pai na certidão de nascimento.

Pelo número de abandono paternal brasileiro não deveríamos precisar da assinatura de um homem para decidir sobre nosso corpo ou nossa vida.

Famílias chefiadas por mães e avós estão em crescimento (dados do IBGE) e isso não quer dizer que são famílias desestruturadas, podem até ser por conta do sistema de marginalização que coloca a maioria das mulheres trabalhadoras e mães solteiras em situação de precariedade. Domésticas devem ter carteira assinada, mas a primeira coisa que aconteceu quando isso entrou em vigor foi o crescimento de diaristas.

A burguesia não quer encontrar quem limpa sua privada comendo no mesmo restaurante que frequentam, eles querem sempre ficar acima dos empregados.

Respeito muito os “pais solteiros”, num país desse cuidar dos filhos sozinhos é uma forma também de combater o machismo internalizado, mesmo que eles não percebam isso. Só pra não deixar passar que os homens não são todos iguais e que principalmente na comunidade negra, muitos homens têm repensado sua masculinidade e suas atitudes. Falta muito ainda para termos a tal equidade, mas eu confio na organização da população negra.

Quando comecei a leitura brinquei dizendo que Leni Zumas se inspirou na realidade de mulheres brasileiras para criar uma distopia para os EUA. As pessoas pensam nos EUA como o melhor país do mundo, mas pelas notícias é uma merda. Durante a leitura fiquei refletindo sobre a questão do aborto não ser ilegal lá. Em dados divulgados pelo ministério da Saúde cerca de uma mulher morre a cada dois minutos por conta de aborto inseguro. Legalizar o aborto para mim não é sinônimo de assassinato, muito pelo contrário.

Ninguém aceita que uma mulher que vive numa “cracolândia” da vida possa abortar, mas as mesmas pessoas que a condenam por engravidar ou pela vida que leva não vão mover uma unha para ajudar aquela criança quando nascer, a ter uma perspectiva de vida diferente. E os números só crescem. Minha mãe e eu somos a favor do aborto, mas isso diferente do que o povo pensa não quer dizer que iremos fazer isso. Ser a favor do aborto é uma forma de empatia com outras mulheres, não tenho coragem de abortar, não quero nunca nem sofrer um aborto espontâneo, mas tenho plena consciência que deveríamos ter políticas de saúde sobre isso abertas para toda a população.

Quem tem dinheiro no Brasil pode fazer tudo, inclusive viver que é algo que a maioria da população não faz, a maioria da população apenas sobrevive. Queria que a narrativa de Leni Zumas entrasse na mídia como a de Margaret Atwood, mas ler uma distopia que lembra muito a realidade brasileira é cutucar demais a ferida nacional e histórica. E ninguém quer ser cutucado ao ponto de ter que pensar no outro, ou melhor na outra.

Leia a resenha do livro na minha página do instagram.<-

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Kinaya Black é o pseudônimo de Gisele Sousa Santos. Escritora desde quando se entende por gente. Mestra em Literatura Comparada e pesquisadora afrofuturista.