As memórias carnavalescas da infância. (Que não ficaram no passado)

Kinaya Black
Kinaya Black
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5 min readMar 6, 2019

Chegou o fim do carnaval!! Todo ano é a mesma coisa, vários artistas lançaram suas músicas. Geralmente a que pega é aquela de alguém que a maioria dos brasileiros nunca nem ouviu falar. E esse ano nem hit teve. Cada canto do país tem seu modo de curtir o carnaval, porém existem coisas em comum em todas essas manifestações: o assédio, a homofobia, o racismo e de quebra o desrespeito que vem pregado nos preconceitos. Esse texto é sobre todas as manifestações carnavalescas que vi durante minha infância e que só fizeram sentido depois que cresci, porém, o sentido não é bom e o pior, é sem noção, mas compreensível por saber a realidade social e sexista que vivemos.. meio confuso, não é? Mas é a verdade, Bolsonaro que o dia, mais sem noção que esse cara no poder, só a população brasileira que o elegeu. Realmente, o brasileiro precisa ser estudado e mais importante que isso, estudar a própria história. Mas vamos falar das memórias (que não são só memórias, pois continuam acontecendo)..

Homens heterossexuais que se vestem de mulheres durante o carnaval e passam o resto do ano inteiro desrespeitando, agredindo e menosprezando mulheres e pessoas LGBTQ+. Esses homens são os mesmos homens que não conseguem olhar para o melhor amigo e dizer: você está muito bonito hoje! Pois foi ensinado que um homem não pode achar outro homem bonito, porém eles aprenderam que no carnaval pode tudo! E lá estão eles se vestindo de minorias. Eles aprenderam que qualquer sinal de afeto para com outro homem é sinal de falha da masculinidade e isso é algo terrível (na cabeça deles) para a sociedade, para a família e por aí vai. É o tipo de homem que vai começar a namorar e ter um relacionamento seco, a base de sexo e foto ao lado da mulher e de bebidas e olhe lá se a mão dele estiver na coxa dela.

Nunca gostei dessa mão na coxa, é um símbolo do poder masculino sobre o nosso corpo, uma vez que sua mão fica próxima a parte do nosso corpo que eles mais gostam. Isso é visto em muitos filmes, inclusive. Mas esse parágrafo contém uma definição inteiramente minha.. Para você pode ser só um carinho..

Enfim, são esses homens que vão cruzar a vida de mulheres e deixar nelas uma marca, e não será boa.
Via isso com frequência no carnaval da minha cidade e nos canaviais que passam na televisão, eu nunca passei o carnaval em outro estado, mas isso a globo mostra. E mostrava demais, hoje, com a pressão dos movimentos sociais as emissoras estão mudando seu modo de mostrar o carnaval, até os humoristas estão mudando seu modo de fazer os outros rirem, ainda bem, mas isso é pano pra outro texto.

Outra “fantasia” que eu via muito e hoje eu sei que ainda existe, pois eu continuo vendo, são os pseudo-índios, quantas pessoas já vestiram seus filhos de índio ao mesmo tempo que estavam apoiando a matança dos verdadeiros donos do Brasil? O índio só é lembrado no seu dia e no carnaval, um total desrespeito aos nossos ancestrais. Sei que existe muito movimento indígena pelo Brasil, porém há uma carência enorme dos povos indígenas atuando em diversas áreas.

Recentemente(2018) eu fiquei muito feliz em saber da inauguração da primeira escola de cinema indígena do Nordeste, que fica no Ceará, que também é o meu estado. É inacreditável que no Brasil em pleno 2019, ainda tem gente que acha que todos os índios vivem como quando as caravelas chegaram aqui. Meu povo, adquirir novos conhecimentos, se apropriar de novas ferramentas não os faz “perderem" suas culturas, muito pelo contrário, é enriquecedor e mais uma forma de transmitir suas raízes e também preserva-las. E voltando, não, índio não é fantasia para você curtir o carnaval enquanto eles estão cada vez mais desaparecendo do nosso país, por culpa de nós mesmo, que falo mais uma vez, não conhecemos a própria história.

E a globeleza? Toda garota negra nascida nos anos 90, cresceu ouvindo as pessoas perguntarem se ela seria uma globeleza quando crescesse. Ninguém “aparentemente” ligava para uma mulher negra praticamente nua sambando na tv, mas nenhuma mulher se imaginava no lugar dela, sambando nua pro Brasil inteiro. Ah, eu me lembro os comentários: tenho coragem não! Isso é uma quenga! Só uma mulher dessa pra ter essa coragem!
E a mulher negra lá, sambando com um sorrisão no rosto, ao mesmo tempo que a imagem exótica e sexualizada dela estava sendo propagada, dela não, de todas as mulheres negras.

Não julgo as mulheres que já foram globeleza nessa época da nudez, afinal elas estavam ali trabalhado. Eu puxo o saco das pessoas que pensaram e colocaram uma negra, nua, sambando pra milhões de pessoas representando o carnaval brasileiro. Vamos raciocinar, as mulheres negras cresceram em uma sociedade que sexualiza seus corpos desde muito cedo, somos o grupo social que mais sofre assédio sexual e violência. Porém nem as próprias mulheres negras se dão conta de que estão sonhando com o corpo objetificado pela sociedade, quando sonham em ser a famosa “negona", pois ainda possuem na cabeça o estigma do agradar macho e como se agrada macho? Pelo sexo e como farei isso? Com meu corpo!

Dentro dessas perguntas, nós podemos ver que a busca pelo corpo negro exótico é um reflexo da solidão da mulher negra, onde essas mulheres já têm consciência desse abandono, que por incrível que pareça é feito tanto por homens negros como não negros, e devido isso, a saída é o corpo, é apelar pro sexual.

E assim vai, como um dominó, quando somos crianças já sentimos a exclusão desde as brincadeiras, crescemos vendo exemplos de mulheres negras que são tidas como exóticas e queremos ser como elas, para não sofrer o abandono afetivo, que de afetivo não possui nada, e acabamos contribuindo ainda mais com o sistema sexista e para o machismo ao escolhermos caras que só têm essa mesma visão e não escolher lutar contra isso e tentar abrir a cabeça desses machos.

É a memória mais forte de carnaval, que se pendurou na minha vida por anos, até eu entender que eu nunca seria uma negona, ah não ser que eu colocasse silicone, o que não cabe no meu orçamento, e o pior foi que entendi que eu não preciso ter esse corpo pra ser objetificada… não sei se é triste, frustrante, ou revoltante, é tudo junto numa vontade de mudar.

Não podemos negar a origem do samba, e o quão forte ele está presente no sangue das pessoas, mas nem toda mulher negra sabe sambar, como os gringos acham que todo brasileiro samba. Mas é gratificante ver as sambistas se articulando para resgatar sua cultura ao menos tempo que compreendem que seus corpos, mesmo que estejam à mostra no carnaval, não são pedaços de carne sem valor. Finalizando, tenho que dizer que pelo que escrevi e por outras coisas, vale sempre lembrar que mesmo após o carnaval o NÃO continua sendo NÃO!

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Kinaya Black
Kinaya Black

Kinaya Black é o pseudônimo de Gisele Sousa Santos. Escritora desde quando se entende por gente. Mestra em Literatura Comparada e pesquisadora afrofuturista.