Como o racismo me faz ver racismo em tudo.

Kinaya Black
Kinaya Black
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6 min readMar 10, 2019

Uma das frases mais ouvidas durante essa pouca vida que já vivi sem dúvidas foi: “vocês veem racismo em tudo!” Não é fácil ver racismo em tudo, não é fácil conviver com pessoas rebaixando toda uma trajetória de luta, o tempo todo, em diversos campos, inclusive nas artes.

O foda é que o racismo é um sistema onde sua estrutura já está tão enraizada que parece algo banal, normal, a sociedade é assim e pronto, não tem como mudar. Realmente pode ser que não consigamos mudar essa merda toda nos próximos anos, pelos eleitores que quiseram um salvador da pátria, altamente misógino, racista e homofóbico para cuidar do Brasil, cujo a maioria da população é composta por pessoas que este já afirmou repudiar.

Certa vez eu estava resolvendo as atividades escolares com minha irmã, na de português havia uma questão para pintar as borboletas de acordo com as cores do poema de Vinicius de Moraes:

“Brancas
Azuis
Amarelas
E pretas
Brincam
Na luz
As belas
Borboletas.

Borboletas brancas
São alegres e francas.

Borboletas azuis
Gostam muito de luz.

As amarelinhas
São tão bonitinhas!

E as pretas, então…
Oh, que escuridão! ”

Passei minha infância ouvindo poemas assim, básicos, mas que se você olhar direitinho tem muito mais entre suas linhas, crianças não têm suas consciências formadas, são influenciadas facilmente, sim, isso é uma atividade do 1° ano do fundamental, destinada à crianças de 6 e 7 anos de idade. Eu lembro muito bem, quando eu tinha essa mesma idade, quando a professora nos entregava os lápis de cor, as meninas nunca queriam o preto, elas chegavam a nem encostar, como se ele fosse sujar, algumas diziam que era cor de menino, porém nossa atual ministra disse que é azul. Eu estudava com um monte de burguês, em uma das melhores escolas da minha cidade, de onde tirei minha irmã ao fazer minha mãe perceber que não era tão boa assim para a humanização dela.

Por qual motivo as borboletas brancas são alegres e francas e as pretas só escuridão? É simples, devido a rima! Ora! Se você não sabe ainda, ou nunca esteve numa sala de aula do infantil ou nunca estudou psicologia do desenvolvimento, as crianças são seres que até a idade dos 7 anos não conseguem compreender logicamente conceitos ou manipular as informações que chegam em sua mente, desta forma, a construção da personalidade da criança vai de acordo com sua interação com o meio cultural/social e as experiências vividas. O que estou querendo dizer é basicamente que: crianças que têm contatos com situações desse tipo, que a faz pensar que a cor preta só traz escuridão e ela crescer em um meio que leva o racismo como algo comum e não negativo, esta vai começar a reproduzir tais coisas até que atinja uma idade de internalização e isso será um problema se ninguém for lá e fazer ela conhecer o correto e o preconceito. E se ninguém fizer isso, esse ser vai se tornar mais um preconceituoso do nosso país. Isso fica ainda pior e mais doloroso quando a criança recebe o estímulo de que sua cor é ruim, que seu cabelo é ruim, sua casa é ruim e por aí vai..

Não estou dizendo aqui que o poeta é racista, vai ver ele nem se deu conta do que escreveu, do que poderia passar, afinal a arte é subjetiva e essa é sua principal característica. Assim como também não chamo os autores de best sellers de racistas por não colocarem nenhum personagem negro como mocinha e galã, nem como coadjuvantes.

Porém, todos nós sabemos qual é o corpo desejado! O corpo branco de Hollywood.

Mas qual é o corpo objetificado e sexualizado? O corpo preto da favela.

Quem não quer um tanquinho e olhos verdes? Quem não quer um cabelo liso ao vento? Isso mesmo, pessoas que já passaram pela desconstrução do estereótipo de beleza/vida branco. E mesmo tirando a máscara branca, às vezes ainda nos pegamos querendo um nariz mais fino, eu tenho o nariz fino, e tem cerca de alguns meses apenas que deixei de afinar ele quando eu me maquiava.

Outra vez, eu estava em um curso, e a professora começou a falar neguinho do mesmo modo como falamos fulano, darei um exemplo “ah, neguinho faz um evento e já se chama de produtor”, do mesmo modo que ela poderia ter dito: ah, fulano faz um evento e já se chama de produtor. Fica o mesmo sentido. Logo olhei pra uma amiga, e ela disse que também tava achando muito estranho, porém ela me falou que conhecia a professora e sabendo quem ela era, descartava possível pejoração do termo neguinho. Eu acatei, porém cada vez que aquela mulher falava aquilo na aula, eu me sentia incomodada e foi por pouco que não levantei a mão pra sugerir que ela trocasse o termo. Encarei como uma gíria, numa sala de maioria branca, não minto que me senti um pouco ‘posmod’ ao problematizar algo do tipo, tão menor, mas que estava me deixando muito desconfortável. Eu deixei o que eu achei que iam achar de mim, me calar. Coisa que não é normal.

O racismo me faz ver racismo até nos elogios que recebo, um dos motivos pelos quais eu evito filas, não é o tempo que eu gasto esperando elas andarem e sim as pessoas que ficam atrás ou na minha frente, quando elas se viram ou fazem eu me virar, ao ver elas tocando no meu cabelo. Eu tenho cachos 3b e 3c, que eu considero altamente comuns de serem “mais aceitáveis” na sociedade e mesmo assim, já recebi convites para raspar! As pessoas me olham, olham meu cabelo, tocam e dizem que acham lindo, que queriam ter um cabelo assim, que tentam cachear, e ficam tocando e com os olhos brilhando, mas não são cheios de admiração e sim de exotização, se você acha que não sabemos a diferença de uma admiração para uma exotização e para uma objetificação, você está precisando saber melhor o que é viver na nossa pele, pois eu tenho todo o prazer do mundo de dizer obrigada com um sorrisão, quando um senhor na rua passa e fala, oh cabelo bonito, nós sabemos reconhecer tudo isso, e é por isso que o racismo me faz ver racismo em tudo, pois antes de compreender melhor o olhar das pessoas e suas atitudes, eu dizia obrigada à quem queria me reprimir ou me fazer ser de outro mundo.

São diversas situações, até mesmo fictícias, eu aprendi a ler muito cedo, eu gosto de ler até hoje, e literatura é minha vida, mas até a idade adulta eu nunca tinha me identificado com nenhum personagem literário fisicamente e todas as leituras me faziam querer embranquecer, sou potterhead doente, e sempre falei que eu era filha da Bellatrix Lestrange, pois não existia ninguém que eu me identificasse, era chato, eu sempre inventei meu personagem nos livros e imaginava eu ao lado dos protagonistas lutando, não sou de ler romance! Sempre fizeram hora comigo, pois a Bellatrix não tinha filha, hoje eu passo na cara, uma Hermione negra na peça de adaptação do 8° livro da série e pasmem, Bellatrix tem uma filha sim! (spoiler, desculpa aí se não sabia ainda)

Vivo dizendo que agora eu existo! E eu existo mesmo, o negro passa a existir quando começa a ocupar os lugares que os brancos ocupam, pois só assim eles passam a nos enxergar, mas é como BK’ diz “sendo rico eu ia continua sendo o mesmo, roupas caras eu ia continuar sendo o mesmo, rico ou pobre eu sou alvo do mesmo jeito. E os irmão se adequando. Meus irmãos, até quando?

Nós precisamos colocar na nossa cabeça que viver não é sobreviver e é só isso que tivemos feito ao longo da história. Pensar antes de falar, pensar antes de agir, pensar no outro, é isso que a gente precisa. É complicado falar a sociedade é racista, numa mesa redonda, e ter que ouvir alguém da plateia dizer, “eu não sou racista, não me inclua nisso” . Mana, se você não é racista, qual é a da incomodação? Subentende-se logicamente que a partir do momento que falo que a sociedade é racista eu me refiro ao sistema, não à pessoa A ou B, mas é foda, quando temos que explicar até isso, pra não parecer que temos racismo reverso, que aliás nem existe. E é assim que o racismo me faz ver racismo em tudo, o pior é que ele também me faz sentir!

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Kinaya Black
Kinaya Black

Kinaya Black é o pseudônimo de Gisele Sousa Santos. Escritora desde quando se entende por gente. Mestra em Literatura Comparada e pesquisadora afrofuturista.