[CONTO] de Exulansis.

Kinaya Black
Kinaya Black
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5 min readJan 26, 2019

Fazia tempo que eu não lia tuas cartas. Foi na faxina, pra mudança, eu estou deixando a casa que moramos por quase sete anos, eu estou deixando a casa que tanto nos amamos, eu estou deixando todas as marcas do nosso amor para o novo morador passar mãos de tintas e apagar por fim todas as vezes que você e eu corremos um atrás do outro. Minhas unhas passavam pela parede, fazendo aquele ruído que você odiava, até chegarmos ao nosso quarto, e você me jogava na cama com força, e vinha pra cima de mim, olhava nos meus olhos.

- Te amo.

- Eu também te amo.

Você me beijava suavemente como se nossos lábios estivessem se unindo naquela dança que logo iria começar, como se nosso ritmo nunca fosse parar, mas nós passávamos do anoitecer até a madrugada dançando ao som alto da nossa canção, como se não tivéssemos vizinhos. Você tocava meu cabelo com força, como se não quisesse mais soltar, assim como minha cintura ao mesmo tempo. Nós tínhamos a sincronia de uma orquestra em cima de uma cama, mas quando a música parava, você me deixava por um banho gelado e eu por mais um pedaço de pizza, agora já frio. Uma hora, já tarde, o cansaço nos atingia e íamos novamente pra cama, dessa vez nossos corpos colados ficavam e parecia que éramos anjos dormindo, entregues profundamente ao sonhos, mas você nunca lembrava dos seus.

Todas as manhãs eu te acordava dizendo onde meus pensamentos estiveram enquanto meus olhos estavam fechados e você me beijava sem deixar eu terminar e eu sabia que iríamos tocar música novamente. Quando finalmente cada um tomava seu banho e que tínhamos que pensar no que comer, você dizia que queria café. Eu nunca gostei de café, provavelmente você deve está com um copo de café com leite ao lado do computador, como sempre esteve e sempre que eu te beijava eu sentia o gosto. Ainda bem que você não cheirava a café, mas não é sempre que meu nariz funciona, então eu posso está equivocada.

Nunca trabalhamos juntos em nada, nossos passatempos eram completamente diferentes, eu lia e você nunca passava da página 42, talvez esse livro ainda esteja dentro da sua mochila e você nunca terminou de ler. É você era assim, nunca terminava nada, e foi por isso que eu quem tive de terminar tudo que existia entre nós.

Nós não tínhamos uma relação saudável. Você não acredita nisso, mas é verdade, um relacionamento só é saudável se for bom para os dois, e há anos eu já não estava bem. Com o passar do tempo, vi o quanto era estressante a vida a dois. Eu tinha um sonho, e esse sonho me destruiu completamente por vezes. Nós tínhamos tantas coisas diferentes, seus referenciais eurocêntricos e as minhas afro diaspóricas, deixei de conversar muitos assuntos importantes pra mim pra dar espaço pros seus assuntos importantes, como se os meus não fossem.

Às vezes as pessoas dizem que o amor é uma doença, pois a gente fica totalmente ludibriado com o outro e com fixação em fazer ele ficar feliz a todo custo, o meu era deixar de lado minha negritude para me encaixar nos seus gostos. Eu não tinha oportunidade de mostrar as obras que para mim eram fodas, pois para você tudo que eu curtia era clichê de minoria. Era assim, era assim mesmo. Eu conheci o mundo branco através dos seus olhos e isso não foi minha porta de entrada e sim minha decisão de saída.

Existem vários motivos para o fim de um relacionamento, nem todo fim é culpa de traição, a maioria de casais que só se separam após um dos dois procurar um outro alguém é talvez maior até que os casais que vivem felizes a maior parte do tempo. Eu demorei para entender isso, infelizmente. Se o companheiro te faz mal, então ele não deve continuar sendo sua maior companhia. E isso pode acontecer em todas as relações afetivas. Mesmo eu deixando de lado o meu ser, eu adorava me inserir nos seus espaços, eu estava sendo a garota negra nas vestes de brancas que você sempre quis. E me falaram que você até hoje procura essa garota branca, de cabelo curto e que goste das mesmas coisas de branco como você.

Uma vez, me senti péssima após ver suas postagens sobre mulheres que você achava lindas, e não tinha nenhuma negra, assim como também não tinha nenhuma mulher gorda. E você nunca entendeu a diferença de pautas na luta das mulheres negras e dos demais padrões físicos de beleza. Isso é lamentável, e eu cansei de tentar explicar as pautas do meu movimento, e eu fui ficando cansada cada dia a mais, e o amor, que na verdade poderia nem ser, também se cansou de se manifestar para alguém que não valorizava meu ser.

Preciso dizer que por muitas vezes chamei você de esquerdomacho nas suas costas. Como ri agora, ao lembrar disso. Mas é verdade, e você nunca admitiu, porém nem precisava, havia um grande abismo entre o que você pensava e o que você mostrava. Por mais que dissesse para mim que me achava linda, para os outros sempre se referia às minas brancas como lindas quando estava com os amigos, mesmo acompanhado de mim. Eu resolvi vender a casa, não por querer me livrar da sua lembrança, pois você foi a maior lição da minha vida.

Você foi o primeiro e único branco que namorei assumidamente, e todos da minha família gostavam de você, diferente dos meus anteriores, que eram negros. E eu nunca tive coragem de dizer para eles que você foi o único que me bateu e que quando você saiu da nossa casa você foi até meu trabalho e me segurou pelos pulsos como se esse ato fosse me fazer querer voltar. Abrindo um parêntese, os algoritmos trabalham muito bem, pois nesse exato momento que escrevo, começou a tocar Black Effect, do The Carters, ou seja, Beyoncé e Jay-z, uma música que fala de amor e do lugar que eles chegaram, num EUA altamente racista, não tão diferente do BR, automaticamente lembrei do quanto nós não a reconhecíamos como feminista, e o quanto eu odiava ver várias amigas negras a endeusando, e da mesma forma automaticamente após ler e estudar sobre mulheres negras e classe econômica, eu percebi o quanto eles são um casal que mostram para a sociedade o lugar que conseguiram chegar, e isso é foda para mim, hoje.

Vender essa casa é como me despregar de todos os sentimentos que me faziam me apagar. E nós tivemos momentos ótimos aqui dentro, preciso reconhecer que você foi uma das pessoas mais importantes da minha vida, você é o grande responsável pelo que eu me tornei, pela mulher negra que eu sou hoje. Acho muito legal quando eu vejo grandes ativistas que são casadas com homens brancos, mas nós não conseguimos seguir esses exemplos, chegou um ponto que a raça veio antes da classe sim, e eu sei que você odeia essa frase. Você já me mandou várias vezes via facebook.

É incrível como eu consigo rir dessa situação, mas já dizia uma comunidade do orkut: depois que passa, a gente ri. É, nós fomos felizes aqui, e acho que tá na hora de outras pessoas deixarem marcas nessas paredes brancas. Enfim, era só para dizer que achei um comprador, e já estamos finalizando os papéis, as burocracias que você nem gosta, por isso deixou nos meus braços. Em breve envio a sua parte do dinheiro, era apenas isso. Fica bem.

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Kinaya Black
Kinaya Black

Kinaya Black é o pseudônimo de Gisele Sousa Santos. Escritora desde quando se entende por gente. Mestra em Literatura Comparada e pesquisadora afrofuturista.