Não encenem nosso sofrimento

Kinaya Black
Kinaya Black
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4 min readSep 29, 2019
Imagem retirada do google

Quantas apresentações sobre pessoas negras negras você já viu?

Quantas dessas apresentações foram sobre nossos feitos?

Quantas dessas apresentações foram sobre a escravização?

Período junino, o sertão ganha muitas cores para além do verde, quando chove, devido às festas de São João. É um momento muito bonito de se assistir, onde temos vários campeonatos de quadrilhas juninas e todas devem carregar um tema na canção e encenação. São grupos que mesmo sem um bom financiamento, conseguem fazer bonito. Foi numa dessas festas que esse texto veio na minha cabeça, eu já havia pensado sobre esse assunto antes, porém foi diante de uma encenação que esse chega de sofrimento e estereótipos chegou gritante.

Liberdade, era algo assim que a quadrilha pregava, fiquei logo interessada mas também com os dois pés atrás pelo que eu já havia visto antes. Mais uma vez iriam retratar a escravização, mas não só isso como também a diáspora africana e o relacionamento inter-racial, onde o mocinho era branco. Nada contra casais inter-raciais, tenho até amigos que são. Os problemas começaram a surgir ao longo da apresentação, não vou nem citar a ruma de brancos fantasiados como negros.

As pessoas que estavam no navio negreiro dançavam, felizes, cheias de ouro no pescoço. Lembrei de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, onde muitos não sabiam para onde estavam sendo levados e achavam que era uma tal terra prometida. Lembrei disso e pensei, será que eles estão embasando nisso? Fica aí o questionamento. Porém, pensem na plateia, as pessoas que assistiam aquilo em sua grande maioria não faziam ideia dessa condição de pensamento, ou seja, para eles ficaria como se os negros não tivessem sofrido dentro daquele local hostil e insuficiente de vida que eram os navios do tráfico.

Eles chegam à fazenda, onde ocorre o famoso casamento matuto, e mais uma vez vemos o estereótipo sobre o homem branco e a mulher negra, onde temos o relacionamento entre uma escrava e um filho de senhor do engenho. Dentro disso, lembrei de Fanon, onde em pele negra, máscaras brancas, ele explora esse tipo de relacionamento, que não anula o racismo e que é plenamente uma forma de embranquecimento e aceitação do povo negro na sociedade. Seja dentro dessa perspectiva como também entre o homem negro e a mulher branca.

Estamos cansados de ver isso. Estamos cansados de sermos chamados para falar em espaços e nos darem uma pauta que revive todo o sofrimento de um povo. Queremos escolher nossos próprios temas de fala. Essa apresentação é só mais uma que ocorre sempre pelo Brasil todo. E sabe um dos grandes motivos de isso ser perpetuado? É justamente o fato de termos pessoas brancas ou pessoas sem consciência de raça em lugares de poder, seja como um professor em um 20 de novembro ou uma dirigente de revista de moda que resolve comemorar seu aniversário em cima do sofrimento de um povo ou uma mulher branca que usa acessórios que remetem à tortura sofrida pelos escravizados, ou uma mãe, que fantasia seu filho disso.

Tive o prazer e honra de ouvir Ailton Krenak em uma de suas palestras, e que homem sábio, não consigo arrancar de mim nada que ele falou, de tão realista que é sua fala, e forte para os demais que não compreendem tal lugar de fala. Krenak falou algo que sempre pensei em dizer, disse que em “Portugal, foi o único lugar onde ele se referia às pessoas brancas e elas sabiam que eram brancas”. Aqui no Brasil é diferente, os brancos não se tocam de seus atos racistas e ficam como lagartixas balançando a cabeça, entrando por um ouvido e saindo por outro, alguns ainda se atentam e começam a se policiar, lindo! Quanto mais brancos pensarem em suas atitudes com pessoas negra, melhor.

O motivo pelo qual estamos revivendo isso várias vezes são os brancos que não têm consciência da amplitude de exemplos negativos que encenar a escravização ou o sofrimento do povo negro causa à pessoas que ainda estão se afirmando enquanto negras.Você iria querer ser visto como uma pessoa bem sucedida ou como uma pessoa que só sofre na vida?

Sabemos que somos negros desde o primeiro contato com o mundo, o que não sabemos é se um dia iremos nos amar tanto para enfrentarmos esse mundo e dizer para ele que estamos no presente e não no passado.

Encenar o passado, estamos nesse ciclo desde quanto tempo? Infelizmente, não querem apresentar um passado de luta e de vitórias, mesmo que pequenas para a quantidade de pessoas negras que continuam sendo mortas até hoje. Mas há histórias inspiradoras, e diversas formas de trabalhar isso. Se você quiser falar sobre vidas negras, saiba que vidas negras ainda não despertadas, importam. Já que estamos falando sobre passado, é importante citar sobre reinventar passados, criar novas histórias, criar ficções onde vencemos, que tal estimular a criatividade de seus alunos ou grupo, ter criatividade é uma capacidade que o mundo pede cada vez mais.

Olha pro passado, pro presente e pensa no futuro do negro. O que aparece na sua cabeça? Como você acha que estaremos daqui a cem anos? Espero que tenha pensado que estaremos vivos. Pois é isso que quero pensar também, me parece difícil quando saio de minha realidade sertaneja e vejo os grandes centros urbanos nos matando como piolhos da sociedade. É por acreditar que estaremos vivos que estudo sobre afro-futurismo (movimento presente nas artes que cria novos futuros ou recria passados para a população negra através de elementos futuristas e de ficção científica), e que peço que parem de encenar nosso sofrimento para vidas negras que ainda estão conhecendo o amar sua negritude.

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Kinaya Black
Kinaya Black

Kinaya Black é o pseudônimo de Gisele Sousa Santos. Escritora desde quando se entende por gente. Mestra em Literatura Comparada e pesquisadora afrofuturista.